sábado, 29 de junho de 2019

Turma da Mônica - Laços



Ode à infância 


Transposição real para as telas, Turma da Mônica - Laços dialoga tanto com geração 
que cresceu com os personagens quanto com crianças do presente


Por João Paulo Barreto

Seria fácil se render ao sentimento de nostalgia ao citar as origens do interesse pela leitura e pelos quadrinhos como um todo que a minha geração teve com as histórias criadas por Maurício de Sousa para falar de Turma da Mônica – Laços, filme que transporta para uma versão de carne e osso os adoráveis personagens criados pelo desenhista há mais de meio século.

Sim, claro que há esse sentimento ao visitar o cinema acompanhado por um monte de crianças que conhecem a turma em meios digitais e já convivem com o mundo virtual muito à frente dos primórdios das histórias em quadrinhos que Mônica e Cia me trouxeram lá nos anos 1980.

Ver tal criação ainda alcançar gerações tão novas impressiona, realmente. Mas, bem mais além, assistir a Laços nessa sala repleta de crianças te faz perceber, como um adulto trintão, o fato de que o filme de Daniel Rezende consegue se conectar tão bem a uma geração de crianças e pré- adolescentes de contatos culturais tão fugazes quanto a espiada constante no smartphone ou a necessidade deslocada de se existir socialmente na internet..

Assim, reconhecer a turma da Mônica na figura da menina dentucinha, da Magali comilona, do Cascão sujinho ou do Cebolinha traquina e de fala com letras trocadas, todos em um século XXI no qual crianças não correm mais durante o recreio, preferindo olhar para telas de celular, dá ao filme de Rezende uma autenticidade impar justamente pela fidelidade ao seu material original no qual a ideia de infância era tão bem inserido quando a comparamos aos exemplos citados acima.

Fafá Rennó e Paulo Vilhena como os Cebolas

TRANSPOSIÇÃO MINUCIOSA

Experiente montador, Rezende tinha em mãos uma oportunidade de utilizar a linguagem de cinema para transparecer a arte sequencial original. O receio, pelo menos para mim, era de que se rendesse a artifícios publicitários, quando inserções literais de quadrinhos no cinema remetem às histórias impressas. O que é observado em Laços, porém, é uma referência minuciosa ao Limoeiro, local fictício onde se passam as aventuras da turminha. Utilizando sua câmera e o ritmo de seus enquadramentos (as sequências de corridas de Mônica atrás dos meninos deixam isso evidente) fazem com que os cenários repletos de árvores e arbustos, juntamente com as casas baixas tão marcantes nas páginas dos gibis, surjam de maneira a permitir que os leitores relacionem os ambientes de maneira orgânica. Estão lá as versões físicas daquelas páginas e tudo é calcado em uma aparência real, valendo-se de uma direção de arte precisa que recria aquele universo sem necessariamente referenciá-lo de forma exageradamente estilizada ou que force uma relação às páginas.

Dito isso, restava o desafio de encarnar seus quatro principais personagens em crianças que tornassem a identificação com seu público alvo exata e, da mesma forma, desse a esses leitores adultos citados anteriormente a oportunidade de enxergar naquelas versões as mesmas características com as quais cresceram absorvendo. Fisicamente, diga-se, todos os quatro estão perfeitos.

Cebolinha, por razões obvias, perde seu visual carequinha, mas ganha uma ligação direta aos cinco fios nos cabelos arrepiados de Kevin Vechiatto. Este, inclusive, demonstra um trabalho cuidadoso em suas falas com R e L trocados, algo que pontua bem a atuação do menino. Além do fato de mantê-lo sempre em um olhar compenetrado, referenciando a personalidade calculista do Cebolinha dos quadrinhos. Já Cascão, que tem na figura de Gabriel Moreira sua versão física, demonstra através do ator uma cumplicidade bem orgânica com o melhor amigo e uma naturalidade nas falas que chama a atenção. Laura Rauseo, na pele da comilona Magali, consegue transparecer bem tanto o apetite voraz da pequenina quanto o fato de como aquilo é incomum. Um diálogo dos quatro acerca dessa característica da Magali denota bem essa ideia do filme em aprofundar os dramas dos quatro personagens.

Por último, Giulia Benitte dá à Mônica uma doçura da infância, mas colocando seu comportamento explosivo contra o bullying de Cebolinha e de outras crianças como uma característica que surge como um manifesto do longa acerca dos perigos dessa prática. Uma pena que não chegue a ser mais aprofundado. Em uma cena específica, por exemplo, quando lágrimas surgem dentro da fúria infantil de Mônica, uma discussão mais exata sobre esse assunto até se ensaia, mas acaba se perdendo diante da movimentação de sua história.

Rodrigo Santoro na pele do Louco: fidelidade à proposta original do personagem

LOUCURA INTROSPECTIVA

Livremente baseada no excelente quadrinho de Vitor e Lu Cafaggi, Laços traz um ótimo momento de introspecção, quando o Louco, excêntrico personagem vivido por Rodrigo Santoro, oferece enigmas que remetem a Lewis Carroll e sua Alice. Na figura escandalosa do personagem, um inusitado senso de realidade, quando o mesmo salienta o fato de que Cebolinha conversa com um estranho e tanto ele quanto seus amigos estão numa floresta à noite e sozinhos.

Denotando a consciência infantil de Cebolinha, algo que sempre marcou o personagem nos quadrinhos, Louco é uma das mais encantadoras e misteriosas figuras saídas da mente de Maurício de Sousa. Nesta adaptação, carecia por mais tempo em tela, principalmente por permitir dar ao filme essa oportunidade de reflexão lúdica acerca dos desafios da infância. Talvez se a obra não investisse em uma cena totalmente descartável e fora de timing, quando o grupo encontra menina rivais de Mônica no meio da floresta e precisam resolver isso em uma competição com Sansão e outras pelúcias, sobraria mais tempo em tela para que o personagem pudesse ser melhor aproveitado.

Em seu final, uma relação daquela infância que começa a ser deixada para trás, quando um ensaio da maturidade surge no simbolismo dos laços deixados nas florestas durante a busca pelo cachorrinho Floquinho, e o último momento coloca seus quatro personagens centrais em um ponto de passagem, quando a presença do outro é percebida com outros olhos. Na figura de Cebolinha continuando com seus rabiscos de planos infalíveis, a vontade de permanecer mais um pouco naquele período tão mágico. Sim, é difícil não adentrar no território das lembranças infantis quando se trata de temas tão importantes quanto aquele período da vida.

Corrigindo a primeira linha, adentrar nas lembranças nostálgicas nunca é fácil.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/06/2019



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