Ode à infância
Transposição real para as telas, Turma da
Mônica - Laços dialoga tanto com geração
que cresceu com os personagens
quanto com crianças do presente
Por João Paulo Barreto
Seria fácil se render ao sentimento de nostalgia ao citar as
origens do interesse pela leitura e pelos quadrinhos como um todo que a minha
geração teve com as histórias criadas por Maurício de Sousa para falar de Turma da Mônica – Laços, filme que
transporta para uma versão de carne e osso os adoráveis personagens criados
pelo desenhista há mais de meio século.
Sim, claro que há esse sentimento ao visitar o cinema acompanhado
por um monte de crianças que conhecem a turma em meios digitais e já convivem
com o mundo virtual muito à frente dos primórdios das histórias em quadrinhos
que Mônica e Cia me trouxeram lá nos anos 1980.
Ver tal criação ainda alcançar gerações tão novas impressiona,
realmente. Mas, bem mais além, assistir a Laços
nessa sala repleta de crianças te faz perceber, como um adulto trintão, o
fato de que o filme de Daniel Rezende consegue se conectar tão bem a uma
geração de crianças e pré- adolescentes de contatos culturais tão fugazes
quanto a espiada constante no smartphone ou
a necessidade deslocada de se existir socialmente na internet..
Assim, reconhecer a turma da Mônica na figura da menina
dentucinha, da Magali comilona, do Cascão sujinho ou do Cebolinha traquina e de
fala com letras trocadas, todos em um século XXI no qual crianças não correm
mais durante o recreio, preferindo olhar para telas de celular, dá ao filme de
Rezende uma autenticidade impar justamente pela fidelidade ao seu material original
no qual a ideia de infância era tão bem inserido quando a comparamos aos
exemplos citados acima.
Fafá Rennó e Paulo Vilhena como os Cebolas |
TRANSPOSIÇÃO MINUCIOSA
Experiente montador, Rezende tinha em mãos uma oportunidade de
utilizar a linguagem de cinema para transparecer a arte sequencial original. O
receio, pelo menos para mim, era de que se rendesse a artifícios publicitários,
quando inserções literais de quadrinhos no cinema remetem às histórias
impressas. O que é observado em Laços, porém,
é uma referência minuciosa ao Limoeiro, local fictício onde se passam as
aventuras da turminha. Utilizando sua câmera e o ritmo de seus enquadramentos
(as sequências de corridas de Mônica atrás dos meninos deixam isso evidente) fazem
com que os cenários repletos de árvores e arbustos, juntamente com as casas
baixas tão marcantes nas páginas dos gibis, surjam de maneira a permitir que os
leitores relacionem os ambientes de maneira orgânica. Estão lá as versões
físicas daquelas páginas e tudo é calcado em uma aparência real, valendo-se de
uma direção de arte precisa que recria aquele universo sem necessariamente referenciá-lo
de forma exageradamente estilizada ou que force uma relação às páginas.
Dito isso, restava o desafio de encarnar seus quatro principais
personagens em crianças que tornassem a identificação com seu público alvo
exata e, da mesma forma, desse a esses leitores adultos citados anteriormente a
oportunidade de enxergar naquelas versões as mesmas características com as
quais cresceram absorvendo. Fisicamente, diga-se, todos os quatro estão
perfeitos.
Cebolinha, por razões obvias, perde seu visual carequinha, mas
ganha uma ligação direta aos cinco fios nos cabelos arrepiados de Kevin
Vechiatto. Este, inclusive, demonstra um trabalho cuidadoso em suas falas com R
e L trocados, algo que pontua bem a atuação do menino. Além do fato de mantê-lo
sempre em um olhar compenetrado, referenciando a personalidade calculista do
Cebolinha dos quadrinhos. Já Cascão, que tem na figura de Gabriel Moreira sua
versão física, demonstra através do ator uma cumplicidade bem orgânica com o
melhor amigo e uma naturalidade nas falas que chama a atenção. Laura Rauseo, na
pele da comilona Magali, consegue transparecer bem tanto o apetite voraz da
pequenina quanto o fato de como aquilo é incomum. Um diálogo dos quatro acerca
dessa característica da Magali denota bem essa ideia do filme em aprofundar os
dramas dos quatro personagens.
Por último, Giulia Benitte dá à Mônica uma doçura da infância, mas
colocando seu comportamento explosivo contra o bullying de Cebolinha e de
outras crianças como uma característica que surge como um manifesto do longa
acerca dos perigos dessa prática. Uma pena que não chegue a ser mais
aprofundado. Em uma cena específica, por exemplo, quando lágrimas surgem dentro
da fúria infantil de Mônica, uma discussão mais exata sobre esse assunto até se
ensaia, mas acaba se perdendo diante da movimentação de sua história.
Rodrigo Santoro na pele do Louco: fidelidade à proposta original do personagem |
LOUCURA INTROSPECTIVA
Livremente baseada no excelente quadrinho de Vitor e Lu Cafaggi, Laços traz um ótimo momento de
introspecção, quando o Louco, excêntrico personagem vivido por Rodrigo Santoro,
oferece enigmas que remetem a Lewis Carroll e sua Alice. Na figura escandalosa
do personagem, um inusitado senso de realidade, quando o mesmo salienta o fato
de que Cebolinha conversa com um estranho e tanto ele quanto seus amigos estão
numa floresta à noite e sozinhos.
Denotando a consciência infantil de Cebolinha, algo que sempre
marcou o personagem nos quadrinhos, Louco é uma das mais encantadoras e
misteriosas figuras saídas da mente de Maurício de Sousa. Nesta adaptação, carecia por mais tempo em tela,
principalmente por permitir dar ao filme essa oportunidade de reflexão lúdica
acerca dos desafios da infância. Talvez se a obra não investisse em uma cena
totalmente descartável e fora de timing, quando o grupo encontra menina rivais
de Mônica no meio da floresta e precisam resolver isso em uma competição com Sansão
e outras pelúcias, sobraria mais tempo em tela para que o personagem pudesse ser
melhor aproveitado.
Em seu final, uma relação daquela infância que começa a ser
deixada para trás, quando um ensaio da maturidade surge no simbolismo dos laços
deixados nas florestas durante a busca pelo cachorrinho Floquinho, e o último
momento coloca seus quatro personagens centrais em um ponto de passagem, quando
a presença do outro é percebida com outros olhos. Na figura de Cebolinha
continuando com seus rabiscos de planos infalíveis, a vontade de permanecer
mais um pouco naquele período tão mágico. Sim, é difícil não adentrar no
território das lembranças infantis quando se trata de temas tão importantes
quanto aquele período da vida.
Corrigindo a primeira linha, adentrar nas lembranças nostálgicas
nunca é fácil.
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