domingo, 25 de agosto de 2019

Vermelho Sol


A indiferença diante do caos 


Vermelho Sol denuncia uma sociedade inerte e mesquinha perante 
terror ditatorial militar na Argentina dos anos 1970

Por João Paulo Barreto

Na imagem de uma casa tendo seus objetos de decoração, moveis e eletrodomésticos surrupiados por diversas pessoas em um silêncio sepulcral, é feito um desenho preciso da Argentina durante a segunda metade da década de 1970, período quando o golpe militar perpetrado pelo general Jorge Rafael Videla aconteceu. Naquele momento, o número de famílias que abandonavam suas casas devido a perseguições sofridas, bem como o número de desaparecidos e sequestrados crescia gradualmente.

É neste âmbito que, em Vermelho Sol, o diretor e roteirista Benjamin Naishtat constrói uma atmosfera de situações que parecem não se conectar. Tal aparente desconexão, na verdade, emula justamente a sensação de um país entregue a uma realidade mórbida, na qual o absurdo passa a ser encarado como algo comum. Assim, Vermelho, em seu singular título original, reflete tentativas de viver uma realidade baseada em indiferentes rotinas que não mais se sustentam, mas que se levam à frente por uma hipocrisia maquiada como insistência, com oportunismos desonestos e com uma maneira de  seguir seus dias olhando para o outro lado, para o próprio umbigo, se autodeclarando isento, ao invés de encarar o que se descortina no seu próprio entorno de terror e angústia diante da ausência daqueles que foram vitimados.

Soberba sequência de abertura com diálogo afiado e denunciador 

REALIDADE PLÁSTICA

É neste mundinho que vive o bem sucedido advogado Claudio (Darío Grandinetti, de Julieta e Fale com Ela). Após o público conhecê-lo durante uma impressionante sequência de abertura quando, diante de uma discussão em um restaurante, o homem enquadra um jovem que o tratara com arrogância, a impressão que se tem é a de alguém centrado e consciente do seu entorno. Porém, após um novo embate no estacionamento do lugar, situação com consequências trágicas e imediatas, o espectador percebe a real natureza de Claudio, quando este prefere omitir um socorro diante de uma fatalidade, mascarando o que aconteceu com uma furtiva ida ao deserto.

Na atitude do advogado, que logo lhe trará sérias consequências, o modo como os desaparecimentos de pessoas na Argentina do período passou a ser algo banalizado pela sua classe dominante, sendo essa justamente a crítica inserida no roteiro de Naishtat. Assim, em histórias secundárias que parecem não se conectar, como o arco envolvendo o interesse amoroso da filha do advogado, as performances dançantes da moça em uma pertinente alusão à violência masculina ou um crime passional cometido pelo seu namorado, Vermelho encontra sua principal reflexão na análise daquela realidade compostas por pessoas inertes diante do cerceamento de liberdades com consequentes fugas e o sequestro de indivíduos como fio condutor.

Utilizando a cor vermelha como uma clara alusão à paranóia manipuladora utilizada pelas ditaduras para alcançar apoio em sua escalada ao poder, Naishtat e o diretor de fotografia Pedro Sotero (conhecido pelos trabalhos com Kleber Mendonça Filho) inserem, inicialmente, uma paleta de cores em tons pastéis, algo que desenha de modo claro a monotonia disfarçada e a indiferença daqueles personagens. Assim, o choque ao vermos o rojo (vermelho) de seu título original dominar a tela de uma só vez quando da ocasião de um eclipse solar, a mensagem do choque necessário para fazer aquelas pessoas conscientes de seu entorno é pungente. Tão pungente e vermelho é o sangue nas mãos daqueles que seguem em suas vidas de não questionamento, de autodeclaradas omissões oportunistas diante de um futuro sombrio que se descortina.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 25/08/2019



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