sábado, 26 de junho de 2021

Fargo


 Bem vindo a Fargo


TELEVISÃO Série baseada em clássico filme dos Irmãos Coen chega a sua quarta temporada  trazendo o "melhor" da estupidez humana em atos e ambições que sempre encontram o trágico

Por João Paulo Barreto

Joel e Ethan Coen são mestres em criar personagens idiotas. E isso não é uma descrição simplória do talento dos autores do texto de obras densas como Onde os Fracos Não Têm Vez e Inside Llewyn Davis. Mas para além da genial escrita por trás do homicida comportamento calculista de um Anton Chigurh ou do talento absurdamente sem sorte de um Llewyn Davis, é nos imbecis cometendo idiotices que a caneta dos dois irmãos traça suas melhores linhas. Mas, mais do que isso, a dupla de roteiristas e diretores sabe utilizar a estupidez humana como mote para a ganância que se torna uma violenta e assassina psicopatia.

Suas comédias de ácido humor sombrio e repletas de uma tragicomicidade brutal são plenas de imbecis perigosos justamente por não saberem que são imbecis. Em seu clássico de 1996, Fargo, por exemplo, a dupla de cineastas nos apresentou a Jerry Lundegaard, fracassado vendedor de carros que sonha em abrir o próprio negócio, mas vive sob a sombra do sogro rico e arrogante que não perde qualquer oportunidade de lembrá-lo da sua insignificância. Na figura de William H. Macy, que interpreta Jerry,tal insignificância ganha a forma física perfeita de alguém cuja ambição só não é maior que a tal imbecilidade citada acima. Na inóspita e fria região de Fargo, Minnesota, sob centímetros de neve constante, Jerry crê ser uma boa ideia contratar dois sequestradores para levar sua esposa e, assim, pedir o resgate ao sogro milionário. Sabemos que aquilo não vai dar certo, não é? A imagem de Jerry em sua roupa de baixo tentando escapar pelo basculante do banheiro enquanto a polícia o arrasta para dentro, é simbólica justamente por tornar palpável sua trágica estupidez.

Marge e Norm - Felicidade para além da ganância 

"Tudo isso por um pouco de dinheiro? Há mais na vida que um pouco de dinheiro, sabe? E aqui estamos. E está um belo dia. Eu não consigo entender". Ao ouvirmos essa afirmação da policial gestante Marge Gunderson (Frances McDormand, em seu primeiro Oscar) para o assassino  que acaba de prender, o silencioso sequestrador Gaer Grimsrud (Peter Stormare), entendemos toda a ideia por trás daquela proposta de história. Em sua última cena, com Marge e seu marido sob os cobertores e comentando que falta pouco para o dia do nascimento de seu bebê, Joel e Ethan Coen desenham preciosamente o que queriam mostrar à sua audiência após aqueles 100 minutos repletos de risos nervosos e (muito) sangue.

VARIAÇÕES NO TOM

Fargo, a série, aprofunda tal proposta de modo a nos fazer refletir sobre essa ideia dos limites da estupidez e, também, nos dá os vislumbres de como as personalidades dos seres criados pelos Coen podem evoluir para novas figuras. Algumas tão estúpidas e imbecis quanto o pobre Jerry, mas outras tão gélidas e aterrorizantes quanto Anton Chigurh. E, de brinde, desenvolve esses monstros contidos nas duas figuras, tanto as patéticas quanto as já monstruosas por natureza. Noah Hawley, criador da série baseada no homônimo filme dos Coen, percebeu esse potencial  de desenvolvimento dos personagens de Fargo e soube aprofundar brilhantemente essa proposta de desnudar cordeiros que se tornam lobos, bem como escancarar a psicopatia dos já assumidamente predadores.

Lester e Malvo: momento gatilho

Na primeira temporada, conhecemos Lester Nygaard (papel que coube como uma luva no carismático hobbit, Martin Freeman). Logo no episódio piloto, vemos o encontro de Lester com Lorne Malvo (um assustador Billy Bob Thornton). Aos poucos, entendemos quem naquele inusitado encontro é o lobo e quem é o (quase) cordeiro. Ao centrar seu texto na desconstrução de Lester, focando em suas humilhações e frustrações, e usando o gatilho do encontro com o manipulador Malvo, o roteirista Hawley entrega de cara o potencial trazido pela fagulha dos Coen no clássico de 1996. E se usei uma aparente clichê metáfora de lobos e cordeiros, não foi por acaso. Nas observações de Malvo diante da humanidade que ele menospreza e na meta de levar o caos àqueles que visa manipular, a ideia de se considerar um predador em busca da própria sobrevivência é evidente. E perceber como Lester abraça a psicopatia oferecida por Malvo é um dos trunfos da temporada inicial.

McGregor e seus dois personagens: dupla estupidez 

MITOLOGIA

Na segunda temporada,um retorno ao passado daquela gelada região estadunidense, quando conhecemos personagens ainda jovens que se desenvolveram no primeiro ano da série, permite a Hawley e sua equipe de roteiristas brincarem com a proposta de mitologia que o universo Fargo contém. E isso sem megalomania ou fuga da proposta de desconstrução de  peças centrais de suas histórias. Nas figuras vividas pelo casal Ed e Peggy Blumquist, nos anos 1970, o seriado aplica à risca a sua proposta de explorar a estupidez humana nos limites que a mesma alcança a barbárie. E Jesse Plemons e Kirsten Dunst captam com precisão tanto a imbecilidade dos cordeiros quanto a sagacidade dos lobos que seus papéis possuem.

Jesse Plemons e Kirsten Dunst: a prova de que idiotas se atraem

Ewan McGregor e David Thewlis roubam o destaque da terceira temporada.  O primeiro, interpretando irmãos gêmeos, amplia  exponencialmente a proposta "fargoniana" de perigosa estupidez humana. Já o britânico Thewlis, com seu repugnante e enigmático V.M Varga, figura cuja caracterização física causa um planejado (e contraditoriamente bem-vindo) asco na audiência, denota precisamente a proposta estanque da série em caracterizar o predador diante de suas presas. É mais um personagem a concretizar a ideia de construção da sedutora perversão oferecida a ingênuos imbecis.

Chris Rock no papel de um dos chefes da máfia nos anos 1950

Seguindo por um caminho inesperado em sua última temporada, Fargo optou por não mais abordar a ideia da dualidade contida no encontro entre idiotas dissimulados e aproveitadores sagazes. E isso de modo acertado, friso. Afinal, foram três arcos fechados seguindo  essa opção. Aqui, a ideia de mergulhar na proposta mitológica do universo criminal contido em sua premissa, ganha um novo patamar, com a série se apresentando como um estudo profundo da máfia, algo que já havia sido pincelado na sua segunda temporada. A quarta traz o comediante Chris Rock em incomum (mas eficiente) tom dramático, como um dos chefes em rixa com grupos étnicos rivais. Ainda estão lá, porém, os frágeis camundongos de mentalidades duvidosas e as serpentes traiçoeiras prontas para o bote. Fargo sempre vai estar repletas deles.

Mas convém lembrar do gelo fino sobre o qual ambos os tipos caminham.



*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/06/2021



CineOP 2021


 Cinema de Ouro

FESTIVAL Com homenagem ao ator Chico Diaz e presença de filmes baianos, tradicional Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, começa hoje e reafirma a importância da memória e do resgate histórico do audiovisual brasileiro                     

Por João Paulo Barreto

A partir de hoje, e indo até a próxima segunda-feira, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, a popular CineOP, acontece na sua décima sexta edição. Pelo segundo ano consecutivo, porém, ainda devido às imprescindíveis restrições decorrentes da pandemia, as tradicionais sessões que aconteceriam na  belíssima cidade mineira e Patrimônio Cultural da Humanidade não vão trazer o bônus do encontro presencial entre público, Cinema e História. Assim, a CineOP 2021 será, novamente, realizada on-line diretamente no site do evento. Conhecida pelo seu perfil de resgate histórico e afetivo da memória do Cinema Brasileiro, a Mostra de 2021 contará com um total de 118 filmes divididos entre curtas, médias e longas metragens que não somente trazem esse resgate, mas como focam em produções contemporâneas que dialogam com o urgente presente da realidade do país.

A Bahia marca seu lugar com diversas obras, tais quais O Amor Dentro da Câmera, filme de Lara Beck Belov e Jamille Fortunato. O registro sobre o amor de Orlando e Conceição Senna, parceiros de vida e de cinema foi destaque no BAFICI desse ano.  A Casa e a Rua, de Taise Andrade Ribeiro, documentário que aprofunda a identidade cultural e a relação existente entre os moradores de Cruz das Almas e a tradicional, porém proibida,  guerra de espadas; Coleção Preciosa, filme de Rayssa Coelho e Filipe Gama, obra que já havia sido destaque no É Tudo Verdade desse ano, e que aborda a história de Ferdinand Will Flick, de Vitória da Conquista, conhecido morador local que, durante 52 anos, reuniu impressionante acervo de itens cinematográficos que, hoje, fazem parte do Museu Pedagógico - Casa Padre Almeida, também em Conquista. Outro filme baiano presente no CineOP é Reduto, de Michel Santos, que denuncia a ação predatória de conhecidas empresas na cidade de Luís Eduardo Magalhães (antiga Mimoso do Oeste). Fechando a presença do estado no festival, a Mostra Educação traz o trabalho de Brenda Andrade com o filme Irreal, registro em Cachoeira, cidade do recôncavo, e que aborda a insegurança de uma jovem em sua rotina de retorno do trabalho.

Cena de Máquina do Desejo - Zé Celso e o Teatro Oficina

HOMENAGEM

Chico Diaz, ator brasileiro cuja carreira no cinema, palcos e TV já transcorre um período de quase quarenta anos, é o homenageado da CineOP desse ano. Durante a entrevista coletiva concedida na apresentação da mostra, o artista, que nasceu na Cidade do México, mas cresceu no Brasil, pontuou sua trajetória de interprete de personagens oriundos das mais diversas regiões brasileiras, saudando a Bahia e Salvador como lugares que lhe permitiram um fortalecimento dessa identidade como um interprete das mais variadas expressões nacionais.

"Você me emociona muito me lembrando da Bahia", declara Chico ao começar a falar de sua relação afetiva com o estado, terra onde viveu um tempo. "Ninguém sabe, mas eu sou baiano. Queira ou não queira, eu sou e serei sempre baiano. Assim como eu sou pernambucano, como eu sou paraguaio, como eu sou peruano, mexicano e chileno. Na verdade, a Bahia, para mim, é uma fonte de primeira do Brasil. O Brasil inteiro se constitui fundamentalmente de uma Bahia pelas nossa origens, pela nossa história. A potência do povo brasileiro, nas manifestações culturais, vai da dança, vai ao cinema, vai ao teatro, vai às artes pictóricas. E eu sempre me identifiquei com a questão da nação soteropolitana e com a Bahia como um todo", explica o ator ao ser perguntado sobre essa influência de nossa região na criação de suas performances com personagens locais em trabalhos como Dona Flor e Seus Dois Maridos, versão televisiva  dos anos 1990, na qual interpretou o hilário Mirandão, bem como, mais recentemente, com papéis de destaque em produções cinematográficas como Travessia e Anjos do Sol.

Chico Diaz é o homenageado da Mostra CineOP 2021

EIXOS CONTEMPORÂNEOS

Neste ano, a CineOP trouxe na sua Mostra Contemporânea a divisão dos filmes em quatro eixos: 
“Passado em investigação”, “Memórias das artes brasileiras”; "Indígenas e as imagens: entre o passado e o presente” e “Os espaços e os vestígios da história”. Nos quatro, e em especial nos dois primeiros eixos citados, cumpre seu papel de foco na tanto na História passada do Brasil quanto nas reverberações atuais dessa mesma história, alertando sua audiência quanto aos riscos de repetição das mesmas tragédias históricas do século XX, bem como celebrando pessoas que, dentro das Artes, lutaram contra a opressão do regime militar.




Um dos curadores da mostra, Francis Vogner, comenta o processo curatorial de escolha de filmes que abordam a história do Teatro Oficina e a trajetória de Zé Celso; a estrada dentro das artes percorrida por Conceição e Orlando Senna, bem como a história de Alzira Espíndola. "A arte brasileira, a tendência é, e eu entendo perfeitamente, é tentar a arte como essa resistência a períodos obscuros da vida brasileira. Ao mesmo tempo, com o seu modo de vida e a sua atitude, estar na contra-mão desses regimes e da truculência de um regime político específico. No caso dessas pessoas, é a ditadura militar", explica Francis, e complementa: "Essas figuras todas estão no embate ao sistema que se coloca. E isso se prova com a obra, mas prova-se, também, em fazer da vida parte da obra. A obra vem da vida e a vida se dirige à obra. Acho que isso que é muito interessante. A gente não está lidando com artistas que separam isso", pontua o curador.



Cléber Eduardo, também curador da CineOP, enfatiza essa relação de tais artistas com seus modos questionadores de vida tem a ver mais com uma questão de atitude. "É uma atitude e um modo de vida que, sim, tem uma relação com a sociedade, com os seus momentos históricos vividos ao longo do anos. Mas, talvez, menos por uma questão de uma consciência, de uma obediência a princípios, de uma fidelidade a digamos, um programa, sabe? E muito mais por uma questão de atitude. Eu acho que todo o desdobramento é posterior a essa atitude existencial. É isso que, para mim, sobretudo, marca esses personagens, Orlando e Conceição Senna, Alzira, Zé Celso e o Teatro Oficina", explica Cléber. "É um modo de se colocar do ponto de vista particular, pessoal e público, já que são figuras públicas. E aí, sim, o desdobramento é, digamos, uma resistência, porque, enfim, estavam em um dado momento, num regime que essa atitude não era permitida. Então, estavam, inevitavelmente, do lado de lá. Mas, sobretudo, acho que pela sua atitude existencial e artística", finaliza o curador.

São artistas conscientes de suas funções sociais e do mundo em sua volta que precisamos, de fato, louvar.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 23/06/2021




sábado, 12 de junho de 2021

Meu Tio José



Roda Viva

CINEMA Abordando o horror da ditadura, Meu Tio José, dirigido por Ducca Rios, é o primeiro longa-metragem baiano a competir no prestigiado Festival Internacional de Animação de Annecy, na França

Por João Paulo Barreto

Havia um peso na vida do então garoto que viria a se tornar o diretor de cinema Ducca Rios. Tal peso era aquele da ausência de respostas pelo assassinato de seu tio, o artista gráfico e ativista político José Sebastião Rios de Moura, morto a tiros há 38 anos, em junho de 1983, em Salvador, quando o menino tinha apenas dez anos de idade. Tal ausência de respostas ainda permanece. Porém,  existe uma perceptível sensação de diminuição do peso carregado por anos após a perda de seu tio. "Larguei um peso que vinha carregando exatamente nesse momento. Ao soltar o filme para os festivais e, em breve, para o público, eu sinto um grande alívio. Por ter conseguido concretizar um objetivo tão antigo. Quando tomei consciência de que queria, realmente, fazer algo com o José Sebastião, foi por volta de 2010", explica Ducca, salientando a importância da vitrine representada pelo Festival de Annecy, que começa amanhã, seguindo até dia 19.

Na história de seu tio, que conhecemos através da óptica da criança Adonias, figura infantil de Ducca aos dez anos, vemos um homem que vai perdendo sua força motriz à medida que a ditadura militar, o autoritarismo e o fascismo avançam no Brasil de 1964 em diante. A partir das lembranças compartilhadas pela família de Adonias, conhecemos José na adolescência ainda em Teresina e, depois, desembarcando no Rio de Janeiro na efervescência cultural brasileira naquele começo dos promissores anos 1960. Após sua ida a Brasília, onde começa a atuar como professor da UNB, é quando envereda de vez na luta contra a ditadura, chegando a fazer parte do grupo que sequestrou o embaixador estadunidense Charles Elbrick, em 1969. Exilado e em fuga constante, José torna-se, também, exilado de si mesmo, sob o peso daquela roda viva. Retorna ao Brasil com a anistia, mas nunca conseguiu voltar a si mesmo. Torna-se introspectivo e silencioso, possivelmente ainda revivendo os dias de terror ditatorial. Em Salvador, é baleado dentro de uma farmácia por homens de terno e gravata. Morreria dias depois no hospital. Um crime que a polícia nunca buscou solucionar.

José Sebastião chega ao local fatídico 

"A transmutação, digamos assim, do José começa a acontecer na UNB. Porque começa a repressão de um lado, com os setores conservadores encampados pelos militares. Eles começam a dar mostras que não vão deixar o Brasil seguir pelo caminho democrático, e acabam dando um golpe. E aquilo ali é um golpe, realmente. Uma cisão, em 1964, na personalidade do José. Eu não sei como me colocar na pele dele, mas imagino isso. Imagino que ele, vendo o povo sem saída,  viu a si mesmo sem saída. Porque você não ter democracia é você não ter saída. É você não poder se expressar. É você não poder opinar. Não existe voto. Não existe direito. Então, você é o que?",  reflete Ducca Rios ao pensar na situação pela qual passou seu tio.

ANIMAÇÃO

Ao optar por contar a história de seu tio José através da animação, Ducca Rios contou com uma ferramenta de liberdade criativa que o permitiu ilustrar o pensamento infantil e o choque de uma maturidade alcançada tão precocemente pela dor da morte de maneira ao mesmo tempo lúdica e calcada nessa dura realidade. "Usamos em Meu Tio José momentos de ilusão, de delírio quando a animação vai para um ad libitum completo. Mas o mais presente é o real. A estética do real. E dentro dessa estética, imprimimos essa opinião a partir da escolha do preto e branco, que tem duas questões que eu gostaria de ressaltar. Uma é óbvia que é a ditadura militar. É um período preto e branco da História brasileira. Sem cor. E a outra é a força da mídia impressa. No filme, estampamos manchetes nos prédios, nas casas e em muros", pontua o diretor.

Família prestes a receber a notícia

Wagner Moura é quem dá voz ao José Sebastião. O filme conta, ainda, com outros atores baianos, como Bertrand Duarte, Jackson Costa e Evelin Butchegger. Ducca Rios explica que Moura gravou sua participação em Meu Tio José no dia seguinte ao encerrar os trabalhos de direção em Marighella, seu filme de estreia como diretor. "Ele já estava com a vivência atrás das câmeras como diretor, mas estava mergulhado naquele período, entendendo quem era o Marighella, e sabia o que era a clandestinidade. Imagine a clandestinidade, quando as pessoas não podiam falar com seus familiares, e não tinham acesso nenhum, porque não existia internet. No máximo, um telefone, se não presença física", salienta o diretor, descrevendo a experiência com o ator. "Ele percebeu quem era o José. Foi muito fácil para ele entender. Eu já observei outros papéis do Wagner. Ele entra nos personagens e você não reconhece mais a pessoa. Ele tem essa capacidade de não rotular o personagem. Ele realmente constrói personagens diferentes. Ele imprime a sua personalidade, claro, mas não dá pistas de quem ele é quando está dentro do personagem.  Isso é muito raro em atores", elogia Ducca.  

O diretor Ducca Rios


HISTÓRIA SE REPETE

Idealizado em 2010, em um período cuja conjuntura brasileira era outra, a animação é lançada em um ano como o de 2021, década que se inicia repetindo as mesmas armadilhas de uma oportunista situação política que, agora, já não mais flerta com o fascismo, mas, sim, o assume completamente. "Eu nunca imaginei que lançaria esse filme em um momento como esse. É uma coincidência ruim para o país. Para o filme, acaba passando uma coisa meio profética que, para mim pelo menos, não existe em Meu Tio José. Acho que foi uma conspiração do universo para esse filme ser lançado neste momento, quando estamos vivendo uma época que nos remete a momentos que aconteceram antes do golpe de 1964. Gente indo para a rua em 'Marcha para a Família', entendeu? Uma marcha para a família que, na verdade, esconde ideais super retrógrados. Gente pedindo cassação do STF. 'Mais bíblia, menos constituição.' Isso é uma loucura! Estamos dentro de um processo distópico de volta ao passado inacreditável. Acho que tem muita gente indo para a rua e pedindo intervenção militar porque não sabe o que é. Não sabe o quão ruim é isso. É um caminho perigosíssimo. Perigosíssimo! Para todos! É um caminho que leva ao abismo", alerta.

Nas melodias das músicas de Chico Buarque, desconstruídas em versões instrumentais a dividir os capítulos do filme, além da pulsante versão de Apesar de Você na voz de Lirinha, Meu Tio José nos deixa introspectivos ao seu final. Mas esperançosos de que "apesar de você", poderemos voltar a sorrir.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 13/06/2021