sábado, 16 de outubro de 2021

Halloween Kills


 O Mal em Nós

ESTREIA Halloween Kills, segunda parte da nova trilogia baseada no clássico de John Carpenter, faz valer seu subtítulo ao elevar o nível de violência gráfica e trazer novos monstros para além de Michael Myers            

Por João Paulo Barreto

Desde seu primeiro longa de 2018, a nova trilogia Halloween  joga com as rimas visuais e temáticas oriundas de seu original, o homônimo sucesso dirigido por John Carpenter  em 1978. São enquadramentos perceptíveis em sua relação com o longa que consolidou a carreira do diretor de Eles Vivem, como aquele em que vemos alguém observando de longe, do lado de fora de uma escola, uma aluna em sua sala de aula, ou modo como as calmas ruas da fictícia Haddonfield, Illinois, são retratadas em oposição à bizarra presença de um brutamontes usando um macacão imundo e uma máscara aterrorizante. Mas para além disso, essa revisita ao universo "carpenterniano" proposta pelo cineasta David Gordon Green não fica somente nesse aspecto de homenagem e gracejos visuais direcionados aos fãs atentos, mas, sim, consegue trazer elementos inovadores para uma já combalida proposta de cinema de horror e suspense com assassinos em séries. Nessa continuação, apropriadamente batizada de Kills (do inglês, "matar"), Green abraça o estilo slasher de cinema (termo que define filmes com muita sanguinolência e ferocidade). Trata-se de um trabalho brutal, sim, que agrada a um público restrito. Mas a discussão antropológica oferecida aqui avança mais profundamente do que apenas ao espetáculo de violência visual dentro dessa proposta de cinema. 

Desconsiderando as várias(e infelizes) continuações, a nova trilogia (sim, há outro filme em produção e previsto para 2022) iniciada há três anos centrou sua ação exatamente quatro décadas depois dos acontecimentos trágicos daquela noite de Dia das Bruxas em 1978. O serial killer Michael Myers está encarcerado e tem sua transferência para outra instituição agendada. Um casal de documentaristas visita o lugar pra uma entrevista, o que, claro, funcionará como o gatilho para despertar aquele monstro. Na outra extremidade daquele espectro, Laura Stroode (Jamie Lee Curtis) ainda carrega os traumas daquele dia no final da década de setenta. Reclusa, antissocial e paranóica (com razão, claro), Laura vive em uma fortaleza na qual prepara-se para o dia em que o mal a visitará de novo. Solitária, perdeu a guarda da filha, pois o serviço social a julgou incapaz de criá-la. Claro que os estafantes treinamentos de autodefesa aos quais fez a criança passar não a ajudaram nesse sentido. É neste ponto que o filme de 2018 começa, sendo que o reencontro entre Laura e Michael não será surpresa para ninguém.

Myers resolvendo pendências com os bombeiros

VIOLÊNCIA (QUASE) GRATUITA

Ainda em relação ao modo como a violência nesse novo Halloween é inserida de maneira mais brutal do que se tornou comum em filmes com propostas de horror que em tempos  recentes chegaram aos cinemas, a percepção é de que a simples história criada por John Carpenter há mais de quarenta anos alcançou um patamar superior neste imaginário. Claro que houve releituras sofríveis da história de Michael Myers no decorrer dessas quatro décadas, mas a presença daquela máscara de expressão nula do assassino, cujo olhar frio (propositalmente, creio) se assemelha um pouco ao modo como a idosa Laura Strode parece avaliar seus arredores, permite uma abordagem mais profunda do que se passa na mente daquele assassino precoce.

Claro que é necessário levar em consideração aspectos relacionados ao investimento que o filme possui e a busca por classificações indicativas menores que permitam uma maior bilheteria. Aqui, a faixa etária de 16 anos a limitar a entrada no cinema já garante que parte da brutalidade vista na tela seja mais esperada. Mas no caso do imaginário proposto pela obra original de John Carpenter e Debra Hill, que co-escreveu o filme original ao seu lado, é algo que vai além. O mal presente dentro da sociedade que neste novo filme se apresenta tão evidente surgia de maneira subliminar nas páginas originais da dupla de roteiristas originais. Myers surgia mascarado, à luz do dia, entre arbustos de uma cidade supostamente calma e pacata. Mais do que isso, ele era a personificação de algo que existe nas entrelinhas daquele lugar. Nesta nova leitura, desde o momento no filme de 2018 em que o psiquiatra se revela também um psicopata curioso pela sensação de se tornar um assassino serial,  até o ponto em que a sociedade local decide tomar para si o status de júri, juiz e carrasco, notamos como o lema "Evil Dies Tonight" (o mal morre hoje à noite), desde sua concepção, não se aplica de modo concreto. Ao contrário. O mal apenas muda de personificação.

Laura e família em fuga: vingança contra Myers

GATILHOS PSICÓTICOS

Utilizando como um dos seus cenários o hospital para onde as vítimas de Michael Myers são levadas ao final do primeiro filme, Halloween Kills aproveita para criar a mesma rima narrativa proposta em suas imagens a emular os filmes da série original. Apesar do filme de 1981, Halloween 2 - O Pesadelo Continua, e o roteiro de John Carpenter, terem sido desconsiderados no aspecto narrativo do mais novo longa, é curioso observar que o mesmo hospital onde se passava a ação no fraco longa sequência do hit de 1978 volta a ser um dos cenários principais aqui.

E é justamente lá que a citada proposta de estudo da natureza humana ganha corpo no roteiro do filme dirigido por David Gordon Green. As cenas nas quais vemos uma multidão perseguir alguém pelos corredores e escadas do hospital, dispondo de armas em punho, aos gritos insanos de morte e sem qualquer certeza de se tratar do real serial killer a solta na cidade, descreve bem o que acontece com uma sociedade que idolatra armas e a ideia de se fazer justiça com as próprias mãos. A tragicidade e simbolismo na reflexão que toda aquela sequência traz para Halloween Kills aprofunda a experiência de um filme assumidamente "gore" levando-a para algo ainda mais rico: quem são os reais psicopatas naquela cidade? Michael Myers, pelo visto, não está sozinho.   


*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 17/10/2021



sábado, 2 de outubro de 2021

Sem Tempo para Morrer


 Adeus, Bond

ESTREIA Último filme da franquia 007 com Daniel Craig como protagonista, Sem Tempo Para Morrer encerra a parceria com o ator em uma mistura de tragicidade, ternura e brutalidade ao subverter marcas registradas da série

Por João Paulo Barreto

Com cinco filmes no currículo vivendo o agente secreto" Bond... James Bond" na sua versão mais brutal e, ao mesmo tempo, humanizada do sedutor com permissão para matar, Daniel Craig pode se orgulhar de, realmente, ter sido o seu melhor interprete. Calma, melhor interprete depois de Sean Connery, foi o que eu quis dizer. Mas isso é outra história (polêmica) dentro da roda de fãs.

A citação ao escocês Connery na abertura desse texto sobre o trabalho que fecha o ciclo do inglês Craig como o combalido soldado a serviço de vossa majestade não foi por acaso. Sem Tempo Para Morrer encerra um ciclo que vai além da presença do ator no papel central da trama. O filme dirigido por Cary Joji Fukunaga (do ótimo Beasts of no Nation)  insere elementos narrativos e uma quebra de expectativa em sua surpreendente conclusão. São elementos dramáticos até então inéditos na filmografia do personagem criado por Ian Fleming. Esse texto, claro, não tem tempo para spoilers (com trocadilhos) e não vai revelar quais são tais elementos, mas deixo claro que são pontos que tornam especiais as quase três horas de projeção.

Bond e Paloma: sem tempo para morrer em Cuba

E sendo o derradeiro longa de Craig, a relação com o primeiro filme de James Bond, Contra o Satânico Dr. No, estrelado por Sean Connery há quase sessenta anos, chega ao espectador de modo a salientar o tal full circle (ciclo fechado) na ideia da despedida do ator e, também, aplacar um pouco da sensação agridoce diante das escolhas dos roteiristas aqui. Mas, ainda bem, não são alusões obvias ao longa de Connery, mas elementos que trazem a ideia do simbolismo desse momento dentro do universo temático 007. Assim, não por acaso, vemos o agente surgir em determinado momento na Jamaica, mesmo país no qual Sean Connery se deparou pela primeira vez com a organização terrorista Spectre, que tem, também, um impactante desfecho aqui.

MEMÓRIAS EM CINZAS

O tom dessa derradeira abertura já é entregue de cara no tradicional prólogo antes da introdução musical que traz a canção tema do longa (dessa vez, interpretada por Billie Eilish, que não repete a intensidade de Adele em Skyfall, mas se sai bem). Na Itália, aposentado do serviço secreto, Bond tenta viver sem olhar por cima dos ombros à espreita de perigos ao lado da companheira Madeleine (Léa Seidoux), que conhecemos no longa anterior, Spectre (2016). Em uma bela metáfora, a população do paradisíaco local italiano vive um ritual de queima de memórias e fechamento de ciclos, ao incinerar objetos e papéis com lembranças que querem deixar para trás. Bond, ao fazer o mesmo, tem uma surpresa explosiva bem de acordo com a vida que levou e que é impossível de se apagar com um simples fósforo a torná-la cinzas.

Remi Malek como Safin: remanescente da Spectre

O passado volta a assombrá-lo na figura da citada organização Spectre, cujo líder, Blofeld, vivido pelo sempre excelente Christoph Waltz, segue ativo apesar de atrás das grades. E o passado do grupo tem laços trágicos com a própria Madeleine e a ligação com o remanescente membro terrorista, Lyutsifer Safin (Remi Malek). Mesclando a paranoia dos nonorobôs bem antes de negacionistas anti-vacina virarem a atual epidemia de imbecis, a trama de Sem Tempo Para Morrer (que foi gravado antes da pandemia) se vale bem dessa tal proposta de arma perfeita ao adaptá-la para o universo de James Bond.

ATUALIZAÇÃO PARA O FUTURO

Mesmo com a proposta de lançar uma versão feminina do 007 sendo pincelada aqui, faz falta vermos as habilidades de luta de Nomi, a agente que ocupou o lugar de Bond com o famoso número que concede licença para matar. Lashana Lynch, que já conhecíamos de Capitã Marvel, poderia ter tido destaque físico semelhante ao de Ana de Armas, cuja presença no papel da agente secreta Paloma, demonstra perfeitamente como James pode muito bem ser salvo quando a situação realmente aperta para seu lado. Apesar de não ser provável que o agente secreto masculino seja aposentado em detrimento de uma presença feminina exclusiva em seu filme, vai ser muito bem vindo novas inclusões de personagens femininas tão fortes quando Nomi e Paloma nos futuros filmes com James Bond (sim, ele voltará. A tradicional frase alertando isso está no final dos créditos).

 Nomi (Lashana Lynch) a agente que ocupou o lugar de Bond 

Sem Tempo Para Morrer encerra como uma despedida à altura para Daniel Craig e tudo o que sua presença trouxe para a franquia que, convenhamos, perdeu um pouco de sua força motriz com alguns dos filmes de seu predecessor, Pierce Brosnan. Ao mesmo tempo, este mais recente exemplar representa uma das poucas despedidas dramáticas realmente pesadas para o homem James Bond, que, com Daniel Craig, descobrimos que pode sangrar e sofrer tanto quanto aqueles outros antagonistas cujas vidas ele tirou. Mas o que ele perde nessa despedida, o que ele deixa escapar por entre os dedos, é algo bem mais simbólico do que isso. A sensação full circle ganha um outro (e até então inédito para 007) significado aqui.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, doa 03/10/2021