quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Jojo Rabbit


Amargo Amadurecer


Com tocante abordagem, diretor de Thor: Ragnarok constrói em Jojo Rabbit um brilhante estudo da perversa influência nazista em mentes facilmente manipuláveis

Por João Paulo Barreto

Em um equilíbrio preciso entre comédia satírica, drama e reflexão social, o roteirista (indicado ao Oscar por esse trabalho) e diretor Taika Waititi coloca sua adaptação do livro de Christine Leunens, Caging Skies (ainda sem tradução no Brasil), como um pontual alerta para a (des)construção manipuladora de caráter e a alienação de mentes em formação através da propaganda ideológica fascista visando a construção de um pretenso herói.

Tal “herói” é o ídolo do pequeno Johannes Betzler, o Jojo Rabbit do título. Na imaginação fértil do pequeno Jojo (o estreante Roman Griffin Davis), o dito herói se torna seu melhor amigo, alguém que reflete seus medos e conforta suas inseguranças. Na imagem do garoto que levanta todos os dias diante de um pôster de Adolf Hitler na parede, quem surge como esse amigo imaginário é o próprio tirano nazista, a quem Jojo chama pelo primeiro nome, Adolf. Nesse olhar infantil perante o chefe do terceiro reich, um reflexo exato da maneira como muitos supostos ídolos são enxergados por aqueles que lhes seguem cegamente. E o que o filme de Waititi faz de maneira notável com esse uso do olhar infantil em tal construção da figura de um pretenso ídolo é refletir neste mesmo olhar toda a manipulação ideológica de um povo.

Sam Rockwell, Scarlett Johansson e Roman Griffin Davis: perdidos na Alemanha nazista

DILEMA

Jojo Rabbit inicia com imagens da euforia do povo alemão nos anos 1930 diante da figura de Hitler. Ao irônico som de Komm Gib Mir Deine Hand, versão alemã que os Beatles gravaram para seu hit I Wanna Hold Your Hand, uma amostra de como tal propaganda política criava essa tal euforia diante um patriotismo nocivo e um ufanismo manipulador. A mídia constrói ídolos para o bem e para o mal, é o que se conclui ao escutar a canção da banda inglesa enquanto o pequeno Jojo, na corrida pelas ruas da pequena cidade alemã, se convence de seu potencial a caminho do acampamento para jovens nazistas.

Aqui,há um claro dilema que o filme oferece à sua audiência. Tal dilema, inicialmente contraditório, logo se esvai diante da compreensão que temos da mensagem que o cineasta e ator Taika Waititi almeja trazer. É possível, uma obra de cinema, cujo alcance é tão massivo e popular, suavizar a imagem de um genocida como Adolf Hitler? (E observar o próprio diretor assumir o personagem denota bem sua coragem de encarar a discussão plantada).  

O diretor Taika Waititi encarna o amigo imaginário de Jojo na figura de Hitler

Convém analisar, nesse processo, que aquela figura é fruto da imaginação de uma criança dentro da sua já manipulada mente. Alguém cujos ídolos lhe foram plantados por uma maquina ideológica e midiática. E isso em um período no qual o alcance de tal máquina se restringia a poucas vias de divulgação, mas cuja força era tão impressionantemente massiva quanto a das fake news digitais dos anos 2010, capazes de vencer eleições e arrasar vidas. Assim, tal “suavização” restringe-se à mente de uma criança que, aos poucos, começa a perceber que as ideias oriundas de tal influência não condizem com a sua real natureza humana.

Tal reflexão acerca do modo como um garoto imagina Hitler, inclusive, nos permite um vislumbre de como adultos, em suas mentes não tão ingênuas, mas, ainda assim, tão ignorantes quanto, enxergam aquele e, atualmente, outros ditadores.

RIMAS DOLOROSAS

Na figura da mãe de Jojo, Scarlett Johansson (indicada ao Oscar pelo papel) interpreta Rosie, uma rebelde contra a guerra que se disfarça de simples dona de casa cujo marido luta no front italiano. Os conflitos entre ela e seu filho, cuja doutrinação nazista escapou de seu controle (“Ele demorou três semanas para superar o fato do avô não ser loiro”, afirma ela em ótimo timing cômico) demonstram o poder de uma propaganda que supera até mesmo a influência familiar. No entanto, em um regime assassino, que elimina qualquer voz dissonante, resta a ela, em um ato de proteção, apenas aceitar o comportamento do filho e torcer para que a maturidade o encontre.

A dolorosa pista dos sapatos de Rosie a surgir como uma dilacerante recompensa

A relação entre ambos, entretanto, é um dos pontos altos da obra, como o diretor Waititi desenhando belas rimas visuais, como, por exemplo, os pijamas idênticos, algo que reflete, ainda, um pouco da ligação tenra entre os dois, sentimento que resiste ao ódio plantado pela influência nazista. Ainda nesse aspecto das rimas, há, claro, os sapatos de Rosie. Constantemente destacados em alguns momentos do filme, tais enquadramentos servem como uma pista cuja recompensa ao final servirá para um doloroso ponto de fissura na tal maturidade amarga e forçada para a vida do pequeno Jojo.

“Não é um bom momento para ser um nazista”, afirma o carente melhor amigo de Jojo, o fofucho Yorki. Essa frase, mesmo que proferida por um personagem tão adorável, é um pontuar do roteiro de Waititi para uma, infelizmente, ainda necessária afirmação. É preciso não esquecer jamais o que foi o movimento nazista alemão durante a Segunda Guerra, pois, só assim, ele não poderá se repetir. Mesmo que nazistas e pretensos “secretários da Cultura” utilizem discursos parafraseados da propaganda fascista alemã como meio de divulgação de sua deturpada ideologia.

Citando o cineasta mineiro Affonso Uchoa no caso acima: “Quem nasceu para camundongo, nunca chega a ratazana”. A ratazana manipuladora e de ideais fascistas ainda governará por mais três anos, infelizmente.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/02/2020

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