sexta-feira, 9 de agosto de 2024

5ª MOSTRA DE CINEMA CONTEMPORÂNEO DO NORDESTE - OFICINA DE CRÍTICA DE CINEMA

 

Exercício de escrita crítica proposto para a
Oficina de Crítica de Cinema na 5ª edição da
Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste

Ministrante: João Paulo Barreto


Anderson Moreira, Thacyla Mendes e Gustavo Simas


*    *    *
Café, Pépi e Limão


Texto de Gustavo Simas. 

O livre arbítrio como privilégio

Longa baiano Café, Pépi e Limão escancara a ilusão da escolha em adolescentes em situação de vulnerabilidade


"É só você ler e assinar."
"Mas eu não sei ler."
"E assinar seu nome você consegue?"
"Sim, assinar eu consigo."

 Assinar um documento sem saber o que ele contém. Fazer escolhas, na pele de uma criança, sem ter um rastro de ideia das consequências.

A frase proferida no filme pelo pai de Café, em cárcere, acaba como um espelho da realidade dos personagens que Adler Paz e Pedro Léo trazem no longa de 2022: uma prisão abstrata, abusiva e cruel que forçam Café, Pépi e Limão a assinarem os ‘termos e condições’ invisíveis de uma vida na periferia de Salvador.

A ilusão da escolha e o livre-arbítrio como um privilégio indisponível e distante.

Via de regra, a abordagem de um cineasta ao filmar personagens em situações trágicas e contextos de vulnerabilidade é sempre sensível. O pesar a mão demais ou ‘de menos’, automaticamente ativa um olhar atento da vivência dos espectadores e críticos sobre a precisão e/ou cuidado acerca da realidade retratada. Em termos menos prolixos, é muito mais fácil errar.

Como abordagem para lidar com esse desafio, os diretores o colocam como um filme de contrastes. Contraste através da linguagem cinematográfica e do contraste social mais evidente.

 O contraste separa o filme em momentos. É extremamente habilidoso nas cenas iniciais, de mais leveza e até humor. Somos introduzidos ao universo desses personagens, Pépi, Café e Limão através de uma ótica de ingenuidade esperada da idade, e uma fluidez nos diálogos sem cortes, sustentadas pelas atuações impecáveis das crianças, que parecem um documentário.

A natureza handheld da câmera é igualmente inteligente para traduzir essa franqueza nos momentos leves como também para suportar a ansiedade, drama e sofrimento da trama que se desenrola.

Parto do ponto que os cineastas lidaram bem com o desafio do contraste. A câmera sempre tremida e flutuante traz uma naturalidade crua nas tomadas que é admirável, e nos outros aspectos, insistem em rejeitar artifícios fáceis para falar sobre uma realidade dura.

Em um tema essencialmente sensível, seria mais cômodo usar artifícios diversos como ‘muleta do drama’ para tornar o filme mais comovente, mas a escolha deliberada de não usar trilhas e recursos para emocionar a qualquer custo parece muito acertada. Nesse sentido, sinto uma certa franqueza ao espectador.

A ausência desses elementos não fazem falta, e sim tentam construir a natureza particular de crueldade, incômodo e aflição conforme o filme fica mais denso (confirmada pelo próprio diretor em papo após a sessão, na 5ª Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste).

Seja através do som da cidade, nos suspiros ofegantes e nos ruídos que permeiam a vida dos personagens, os sons soam como lembretes muito infelizes de uma "maldição" em que estão inseridos. A maldição do falso livre-arbítrio e a possibilidade de sair daquela realidade. A cena em que Pépi retorna para o viaduto, é reflexo dessa mensagem, é absolutamente primoroso na execução - por consequência, cruelmente doloroso assistir. As escolhas de Pépi nunca foram escolhas em primeiro lugar.

O desafio de não deixar a peteca cair até o ato final era enorme. O caminho escolhido foi o mais brutal e cru possível. Confesso que senti que o contraste equilibrado a partir de um ponto parece dar lugar ao ‘chocar pelo choque.’

O silêncio após o último frame, dá lugar, sim, ao incômodo, à revolta, e à tristeza. Mas não incomodaria que na mensagem final do filme tivéssemos pelo menos alguma fagulha ou sinal de resistência. Os adornos petistas e easter eggs do Lula nos cenários trazem um subtexto que muitos vão sorrir, mas diante de tanta crueldade apresentada, talvez era necessário um manifesto mais alto e definitivo além da tradução da nossa realidade quase de forma literal.

Afinal, em tempos como esses, a esperança nunca deveria deixar de ser uma convidada bem-vinda.



*    *    *

O Dragão da Maldade 
contra o Santo Guerreiro
(Antônio das Mortes)


Texto de Vanessa Elisbão


o coronel é cego

o professor assiste o sangue do guerreiro escorrer. o delegado é covarde - assim como o leão, aquele já famoso de outras histórias, mas nesse caso, sem a estrada que o leva por novos caminhos. aqui existe uma intenção de verdade que existe tal como um compromisso. um compromisso em dizer a verdade: miserável, subjugada e violenta. verdade que acontece no escuro. 

o ódio é só uma das cruzes da vingança (a outra é o amor, por sua vez). o professor existe e semeia a destruição, num solo à beira do caminho, reservado àqueles que ouvem, até sentem e vivem, mas não acreditam. ainda assim, semeia a destruição da ordem, do esperado, da regra, do silêncio ordenado e da obediência consentida. o jagunço se arrepende. santa bárbara tem as vestes de Oyá. tudo é uma batalha, mas a batalha não é tudo; existe como aquilo que produz o novo, como quem traz ao mundo um mundo novo, portanto, não é vazia. expressa uma ontologia metamórfica onde tudo é agitado internamente continua por ecoar em sons, cores e corpos novos. 

assim, as pessoas dançam, festejam e saem à rua, mas a justiça ainda é um teatro. o surrealismo aparece como ode ao mito, ao sonho, à possibilidade. ao futuro que sempre pode acontecer. como quando André Breton diz que a rebelião leva sua justificação em si mesma, completamente independente das chances que ela possui para modificar ou não o estágio de coisas que a determina; ela é a faísca ao vento, mas a faísca que busca a pólvora no paiol.

lindo.

(N.E. um adendo importante: as letras minúsculas são intencionais e revelam um posicionamento de recusa mesmo do maiúsculo. é político, quando penso em bell hooks que diz da recusa egoica intelectual, e estético também, simplesmente porque acho mais bonito.)



*    *    *


John Wick - Capítulo 4
Baba Yaga



Texto de  Anderson E. Moreira

O dia a dia e a saga de um assassino de aluguel  que voltou a ativa, nesse quarto filme da franquia o que eu pude observar que foi retirada a melancolia que tinha o primeiro filme e adição de mais cenas de porradaria e violência explicita. 

Mas vale ressaltar também que dentro do longa com roteiro de Michael Finch, Shay Hatten e direção de Chad Stahelski pode se encontrar alívios cômicos para tentar arrancar uma gargalha do seu espectador na sala de cinema. 

E, sim, isso aconteceu comigo! Principalmente com o próprio John interpretado por Keanu Reeves e o outro personagem chamado de Rastreador / Sr. Ninguém, interpretado pelo ator Shamier Anderson e seu cachorro fiel escudeiro. 

Nessas idas e vindas depois de um ano que assisti o capítulo 4 tive um estalo desse filme após participar de uma oficina critica de cinema essa tal cena me chamou atenção! Não que as outras com seus planos sequencias bem executados e o ritmo frenético da câmera na mão não chame a atenção de quem assiste, 

Mas a luta nas escadas faz com que a gente sinta na pele aquela adrenalina, e transpondo para o lado social da coisa como eu vi ali eu consegui imaginar um trabalhador que acorda cedo todo santo dia e sobe cada degrau para alcançar uma boa condição de vida, matando um leão e varias outras situações por dia e chega um momento que ele cai e volta novamente lá do começo! 

É o que acontece todo santo dia com as pessoas na sociedade que não desiste e sobe novamente.



*    *    *


American Fiction





Quando a representatividade se torna caricatura

Texto de Thacy Mendes

A representatividade realmente representa? Ou é apenas ilustrativa?

Com abordagem humorística para discussões sérias, "American Fiction" discorre sobre o papel da representatividade, do pensamento crítico e o perigo dos estereótipos raciais.

O longa dirigido por Cord Jefferson - que teve a façanha de ser indicado ao Oscar logo com seu primeiro filme - conta a história de Monk, um escritor e intelectual que, ao enfrentar dificuldades para vender seus livros, decide assumir um pseudônimo e escrever uma história dotada de estereótipos atribuídos a pessoas negras. Sua intenção era apenas fazer uma piada com os editores, entregando a eles uma obra de má qualidade, contudo, para sua surpresa, a obra é aclamada pela editora, e após a publicação também é abraçada pelo público.

Agora, é importante ressaltar o contexto envolvido na dificuldade do escritor para publicar suas obras. Segundo seu agente, os livros de Monk não eram "negros o suficiente" para as demandas do mercado literário. Nesse ponto questionamos o perigo dos estereótipos e o real valor da representatividade.

O que seria "negro o suficiente"? E com qual regra esse valor é medido? A história que Monk escreve como forma de piada é baseada em crimes e com linguagem pautada em xingamentos. Ainda assim, este livro foi tratado como revolucionário e inovador, tanto pelo público como por autoridades do meio literário.

Enquanto isso, era dito que os outros livros de Monk não atendiam as demandas do mercado literário. Mas então o que mercado busca? Uma representatividade que promova a diversidade ou algo que apenas perpetue a visão de pessoas brancas?

O cenário apresentado em American Fiction denuncia uma representatividade que só importa quando atende a requisitos pré-definidos.

Como o rapper brasileiro Baco Exu do Blues diz na canção Bluesman: "eles querem um preto com arma pra cima, num clipe da favela gritando 'cocaína' Querem que nossa pele seja a pele do crime".

Em determinada cena, Monk vai para uma livraria e percebe que os livros escritos por pessoas negras são todos catalogados como "literatura afroamericana", independente do gênero ou tema, já os livros de autores brancos são devidamente organizados em suas categorias. Essa cena destaca como a literatura (e a arte, de forma geral) de autores negros é frequentemente marginalizada e confinada a um nicho específico, independentemente do conteúdo. Aqui está exposta a tendência de reduzir a identidade negra a uma única categoria, ignorando a diversidade e a complexidade das suas experiências e narrativas, perpetuando a desigualdade e indo contra a tudo aquilo que a representatividade propõe.

O longa também reflete quanto ao pensamento crítico envolvido no consumo da arte, ainda mais quando o protagonista questiona outros personagens negros que também consideraram aquele livro como revolucionário. Refletimos sobre o que consumimos? Prestamos atenção na mensagem transmitida e em como impacta o mundo a nossa volta? Sabemos o que cada obra está comunicando? Ou apenas nos contentamos com o superficial que satisfaz nosso consumo e gera engajamento?

A ficção da trama cutuca a realidade de diversas maneiras. Com tantas camadas envolvidas em apenas 117 minutos de filme, não é a toa que American Fiction levou para casa a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2024.










sábado, 13 de novembro de 2021

Caça-Fantasmas: Mais Além


 Quem você vai chamar?

ESTREIA Caça-Fantasmas: Mais Além foca no impacto junto a uma nova geração recém apresentada aos elementos clássicos do longa original. O resultado, porém, é de marejar os olhos de quarentões

Por João Paulo Barreto

Nostalgia vende. Essa máxima do mercado pode se aplicar, também, a diversos aspectos do cinema feito atualmente, quando franquias são reinventadas, personagens ressurgem mais velhos nas versões mais madura de seus próprios interpretes,  e a mesma ideia original que surgiu nos anos 1970 e 1980 é requentada agora no século XXI. Porém, o que proponho refletir aqui não é esse requentar barato de ideias, mas, sim, o aspecto de conceder conclusões a tramas cujos arcos iniciais (que foram fechados, sim, mas sempre fica aquele comichão de curiosidade pelo que poderia vir depois) foram apresentados em uma década tão prolífica no cinema estadunidense de entretenimento quanto a da Era Reagan.

Quando lançaram, em 1984, a comédia de ação Os Caça-Fantasmas, Ivan Reitman, Dan Aykroyd e Harold Ramis, nas funções respectivas de diretor e roteiristas, talvez não tivessem noção do potencial que a criação deles teria no imaginário popular da cultura pop durante os anos que se seguiram. Com uma continuação homônima que repetia a mesma estrutura e que, convenhamos, foi feita para não perder o timing da febre gerada pelo original (mesmo tendo estreado cinco anos depois), personagens como Peter Venkman, Raymond Stantz, Egon Spengler e Winston Zeddemore fincaram raízes no afeto de vários cinéfilos que viriam a crescer reconhecendo a música tema do filme, cantada por Ray Parker Jr, e cujo refrâo, "Who you gonna call?", serve de chamada para esse texto;  o som da sirene da ambulância adaptada como viatura de caça aos fantasmas; a armadilha retangular de confinamento dos seres sobrenaturais; o som e gosma trazidos por figuras como geléia, o fantasma que deixa um rastro de ectoplasma por onde passa, bem como o sorriso ingênuo do monstro de marshmallow, sem falar, claro, da mochila de prótons cujo canhão atira raios que não se devem cruzar entre si (mas que se torna a solução em momentos de emergências).

McKenna Grace, Logan Kim e Finn Wolfhard: diálogo com novos fans 

REINVENTAR-SE

Os quatro personagens citados acima, aliás, conseguiram fincar tamanha presença justamente pela química que se equilibrava entre a seriedade cômica e o humor rasgado de seus interpretes que, além dos dois atores/roteiristas citados, tinha na presença de Bill Murray o principal pilar do seu humor ácido e sagaz. A junção e carisma daquelas três figuras, que logo ganharia o reforço de Winston (o comediante Ernie Hudson, ocupando lugar recusado por Eddie Murphy), era suficiente para que deixássemos de lado a fragilidade do roteiro do filme, o modo como o conflito se resolve tão facilmente em seu ato final e toda a massificação de sua música tema.

Após uma divertida versão feminina lançada há cinco anos, cujo foco não era em um resgate da trama do original, mas, sim, uma reinvenção dos mesmos elementos, Caça-Fantasma: Mais Além investe em uma redescoberta dos atributos que fizeram a obra de 1984 um filme tão encantador em sua simplicidade. Assim, a busca por elementos que liguem as duas tramas separadas por trinta e cinco anos vai além do parentesco dos dois jovens protagonistas com o Dr. Egon Spengler, cuja escolha de elenco acerta na mosca ao escalar Finn Wolfhard e McKenna Grace como seus netos (além de talentosos, suas aparências físicas são idênticas à do jovem Harold Ramis). Jason Reitman, filho do diretor Ivan Reitman, acompanhou o pai ainda criança nas gravações do filme original e, agora, assume a cadeira levando esse legado. Reitman confirma ao espectador uma percepção evidente: a de que sabe o valor afetivo para muitas pessoas daqueles elementos que surgem em tela. Mas, o mais importante, junto com o co-roteirista Gil Kenan (que dirigiu a fraca refilmagem Poltergeist ) sabe reutilizar tais elementos para além do preciosismo.

Monstro de marshmallow em sua versão pocket

MANTENDO-SE ORIGINAL

Deste modo, quando vemos surgir em tela a viatura caçadora, que ganhou um assento ejetor e um mini carrinho assistente controlado remotamente e que pode levar a armadilha captora para mais próximo das criaturas sobrenaturais;  ou quando nos deparamos com uma adaptação dos canhões de prótons para algo ainda mais potente dentro de sua utilidade de conter as forças advindas de outras dimensões; ou, ainda, quando certos personagens surgem em tela ocasionando o que defini  na linha fina desse texto como "marejar de olhos quarentões", bom, aí está um equilíbrio tênue que Caça-Fantasmas: Mais Além conseguiu alcançar: o de saber ser original ao reaproveitar em uma história eficiente e inovadora marcas tão conhecidas de uma franquia, mas, ainda assim, saber valorizar e homenagear com tamanho afeto algo que significa tanto na Cultura Pop.

São raras as situações que títulos adaptados para o português são felizes em suas versões nacionais. Aqui, o Afterlife do original em inglês. ao contar com diversas possibilidades de tradução dentro de uma proposta mais pesarosa que esse novo caça-fantasmas possui, cai como uma luva quando optam pela adaptação como, simplesmente, Mais Além. É justamente essa sensação de trajetória desafiadora que o filme nos mostra. E foi onde sua proposta de revisita chegou. 


*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 14/11/2021 


 

 

sábado, 6 de novembro de 2021

Eternos


 Eram os Deuses... HERÓIS?

ESTREIA Eternos traz a oscarizada diretora Chloé Zhao à frente de uma previsível e pouco empolgante (apesar de rica visualmente) adaptação da clássica HQ criada pelo lendário Jack Kirby    

Por João Paulo Barreto

É curioso pensar no fato de que o universo cinematográfico dos Estúdios Marvel, agora, inicia sua nova fase após treze anos de sucesso destacando um enfoque mais profundo em seus personagens menos conhecidos. Após investir pesado em medalhões como Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Viúva Negra, Hulk, cujas aparições e desenvolvimentos culminaram no confronto com o vilão Thanos, observar a equipe criativa liderada por Kevin Feige, o poderoso chefão da bilionária máquina de super-heróis, dando destaque a seus personagens menos conhecidos, interpretados muitas vezes por atores ainda em ascensão (e com salários bem menores que os dos astros das primeiras fases, obviamente) denota justamente uma clara ideia de remexer no fundo do baú para encontrar os tesouros perdidos. E esse baú, de fato, possui pepitas.

Desde a estreia da atual fase com Mestre do Kung Fu (sim, tenho idade suficiente para me referir a Shang-Chi pelo modo como a revista da finada editora Abril, Heróis da TV, o batizou) até chegar nessa adaptação do clássico desenhado e roteirizado pelo eterno Jack Kirby, Eternos é mais um exemplo dessa busca pela Marvel por popularizar para novas gerações seus heróis mais obscuros. Junto com essa busca, os estúdios, também, trazem louváveis inclusões de personagens de diversas etnias, classes sociais e orientações sexuais. Como nova equipe de super-heróis, os Eternos possuem exemplos bem específicos dessa nova leva que a Disney visa emplacar para a próxima década em um mundo de entretenimento pós pandemia no qual, infelizmente, os lançamentos no cinema ficarão em segundo plano em detrimento do canal de streaming da empresa. Mas será que tal vontade de emplacar novos nomes, heróis e poderes se confirma?

Semi-deuses também amam

FICOU NA PROMESSA

Eternos é um filme menos promissor neste sentido, mesmo possuindo seus atrativos visuais fantásticos dentro de uma nova proposta cósmica trazida pela Marvel desde a inserção cômica dos Guardiões da Galáxia. Tal foco, diga-se de passagem, é algo que empolga por nos fazer pensar nas possibilidades que os estúdios podem criar com personagens como Galactus e Surfista Prateado (principalmente dentro dos aspectos filosóficos propostos por mais esse do "Rei" Jack Kirby). O problema, aqui, é o modo simplório como o filme de Chloé Zhao decide estruturar e basear quase todos os seu longos 157 minutos. Assim, o filme se torna uma série de diálogos expositivos sobre as origens de seus personagens e alternando com os embates entre as criaturas batizadas de deviantes e os semi-deuses, os Eternos, que, supostamente, têm como missão única de existência impedir a ascensão de tais criaturas no decorrer dos milênios. Sim, havia semi-deuses na Terra que seriam capazes de impedir Thanos, mas qual seria graça se resolvêssemos as coisas assim, não é mesmo?

Tais semi-deuses, aliás, parecem mais perdidos que os próprios humanos que pretendem defender. E olha que eles, supostamente, são os que detêm as respostas para as questões do universo. Assim, no decorrer dos séculos até a época atual, Sersi (Gemma Chan), Ikaris (Richard Madden), Thena (Angelina Jolie), Ajak (Salma Hayek), Druig (Barry Keoghan), Phastos (BrianTyree Henry) dentre outros, após finalmente conter a ameaça dos deviantes, entram em "modo de vida humano", com seus trabalhos e paixões humanas, bem como com a rendição aos boletos do capitalismo, mas tendo que voltar ao batente de salvadores quando as criaturas ressurgem no século XXI.

De todos os heróis citados, os dois  últimos são os que mais atraem a atenção da audiência dentro de aspectos mais profundos. Druig, capaz de manipular mentalmente pessoas fazendo com que elas sigam suas ordens mentais, compreende como a humanidade não é capaz de evoluir sozinha; e Phastos, cuja pressa em levar seu conhecimento e inteligência como influência nessa mesma evolução humana acaba por ser responsável mais pelo avanço bélico da raça do que pelo seu ascender como seres conectados com a própria essência que os faz humanos (a cena em que ele contempla entre lágrimas a destruição da bomba atômica em 1945 é um dos poucos momentos de real peso emocional do longa).

Phatos contempla a estupidez humana 

OTIMISMO DE FANBOY

Apesar desse modo automático de direção e de um roteiro simplório no aspecto de um maior desenvolvimento de seus personagens (vá lá, são dez super-heróis a serem aprofundados), Chloé Zhao consegue, em seu resultado, trazer um filme que faz jus à proposta da Marvel de adentrar em um universo interestelar de suas páginas.

Em seu arco final, a ideia baseada em um aspecto gigantesco de figuras interplanetárias (como a dos Celestiais), novamente nos faz imaginar o poder que os estúdios têm em mãos. De suas páginas desenhadas e escritas há 45 anos, é até empolgante pensar que Jack "Rei" Kirby estaria feliz com as possibilidades que esse apenas pouco promissor começo trará para os próximos escapes de diversão que são os filmes oriundos dos quadrinhos da Casa das Ideias.

 *Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 07/11/2021



 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Marighella


 A censura perdeu

ESTREIA Marighella, primeiro trabalho de Wagner Moura na direção de longas metragens, chega finalmente aos cinemas após sofrer perseguição de um governo mentiroso e fadado ao fracasso

Por João Paulo Barreto

A nova visita a Marighella dentro de uma sala de cinema gerou um impacto ainda mais forte. A anterior foi há onze meses, em uma sessão especial que aconteceu no então Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha, a primeira do filme em um cinema do Brasil, na Semana da Consciência Negra do ano passado. Em um final de ano como o do catastrófico 2020, quando as mortes pela pandemia cresciam exponencialmente, verbas de vacina (como viemos a descobrir alguns meses depois) eram desviadas e a falta de perspectivas de um país perdido desesperava os mais atentos, a sessão de Marighella, na minha primeira visita ao Cine Glauber após meses de confinamento, bateu pesado neste escriba.

Corta para esse final de 2021, e o sentimento em relação ao que acontece ao nosso redor não mudou muito. Porém, após a segunda dose da vacina (mas ainda usando máscara em locais públicos, evitando aglomerações e podendo sair de casa com mais regularidade), a comparação com aqueles últimos meses do ano passado, quando a pancada dirigida por Wagner Moura me fez deixar combalido a Sala 1 do Glauber, é inevitável. No entanto, a sessão para imprensa da obra acabou por causar resultado semelhante àquele inicial do ano passado. Para quem sabe reconhecer a fragilidade de nossa democracia e percebe os riscos de um Brasil desgovernado por fanáticos, as duas horas e meia de projeção de Marighella nos traz para essa realidade de maneira brutal.

Moura dirige Seu Jorge em cena de Marighella

Depois de embargos da Secretaria de Cultura do governo brasileiro e imbróglios burocráticos gerados de modo proposital pela Ancine gerida pelo atual executivo, a obra dirigida por Wagner Moura alcança seu público após quase três anos da data inicial prevista para sua estreia, que seria no começo de 2019. "O fato de você ser atacado pelo governo de um país porque você fez um filme é um negócio que temos que parar para pensar em como é algo extraordinariamente louco. Quando você tem um presidente e membros de um governo que te atacam porque você fez um filme, diz muito mais sobre o tempo que a gente está vivendo do que sobre o filme em si. Porque é um filme", explica Wagner Moura em entrevista ao A TARDE por ocasião da sua visita a Salvador para uma sessão especial para convidados no Teatro Castro Alves.  O diretor, dentro desse constatar estupefato  da perseguição de um governo contra seu trabalho, não esmaece: "Claro que eu não facilito para ele. Porque eu sou combativo. E não faria nenhum sentido se eu não fosse. Porque eu sou assim. Porque eu acho que vivemos um momento muito sério no país de hoje. Então, é hora de todo mundo que puder, vir para o combate, mesmo. Tem que ir para o enfrentamento", afirma Moura.

RECONSTRUÇÃO

Baseada no denso livro escrito por Mário Magalhães, a cinebiografia de Marighella levada às telas por Wagner Moura é um de um estampido que ecoa muito tempo depois de seus créditos finais. É um filme alerta para os riscos que nos ameaçam como um país que deu voz e poder a projetos de ditadores e genocidas por convicção. Na sua abertura, um letreiro nos fala sobre as perdas de liberdades que os militares impuseram logo após retirar João Goulart do poder em 1964 sob o pretexto de salvar o Brasil da "corrupção e da ameaça comunista". A promessa de novas eleições após um ano do golpe militar, claro, não foi cumprida. O Brasil amargou 21 anos sob a alçada sanguinária da ditadura.

O estampido citado acima é daqueles de cenas explosivas, sim, mas a dureza de Marighella se faz presente ainda mais forte em seus momentos de ternura, como quando Clara e Carlos se despedem, e o deputado deixa uma fita gravada para seu filho, que não pôde reencontrar como lhe prometeu. Em outro ponto, engolimos em seco o momento em que vemos as lágrimas do homem dentro do carro voltando de Cachoeira, cidade do Recôncavo, onde teve que deixar o filho após este perceber e alertar o pai da emboscada dos militares. Tais momentos doloroso reverberam com mais força que os tiros e bombas que explodem no decorrer daquela trajetória do grupo de homens e mulheres que decidiu não aceitar os desmandos tirânicos e assassinos de uma corja sanguinária de militares.

Carlos e Clara: momentos antes da tormenta

HINO EM BRADO

Marighella se torna um filme símbolo de um momento em que o Brasil se vê quase perdido. Quase. A força de sua cena durante os créditos finais, quando é cantando com força o hino nacional, esse outro símbolo que, de alguns anos para cá, foi cooptado por forças mal intencionadas e mesquinhas, traz esse sentimento de que merecemos mais do que esse país levado para trás por mentiras, notícias falsas, obscurantismo e negacionismo. Wagner Moura traz em sua fala uma força semelhante àquela dos personagens ao bradar o nosso hino. "Eu acho que o Brasil já vive um momento em que nos demos conta de que a eleição de 2018 foi pedagógica. A nossa história, a História do Brasil, é também absolutamente violenta, autoritária, golpista, racista. Bolsonaro sintetiza esse Brasil elitista que, em determinado momento, os eleitores foram às ruas dizer: 'esse Brasil existe. Olhem para esse Brasil que ele existe.' E esse Brasil é sintetizado na figura de Bolsonaro. Agora, eu acho que esse mesmo país é muito mais do que isso. E esse mesmo país, hoje, olha para isso e diz: 'Não é esse o Brasil que queremos.' Nós nos defrontamos com isso. Somos um país mestre em camuflar as coisas. É o país da lei da anistia. É o país do racismo disfarçado. E Bolsonaro mostrou que o Brasil é um país com um histórico terrível. Só que a gente está olhando para isso e todas as pesquisas dizem que não queremos mais", pontua o cineasta e  afirma: "Eu sou muito otimista com 2022. Vamos ter que reconstruir um país. Vai ser um trabalho muito duro, porque andamos para trás. Foi algo devastador em todas as áreas. Mas é assim. Vamos reconstruir e caminhar para vocação que eu vejo que é a desse país: a de um lugar exemplo para o mundo", completa.

Depois daquele dia em novembro do ano passado, quando as incertezas e medos eram mais densos, sair de um cinema depois de uma sessão de Marighella em outubro de 2021 traz uma novas perspectivas para um futuro menos sombrio em nosso país.  

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 03/11/2021



sábado, 16 de outubro de 2021

Halloween Kills


 O Mal em Nós

ESTREIA Halloween Kills, segunda parte da nova trilogia baseada no clássico de John Carpenter, faz valer seu subtítulo ao elevar o nível de violência gráfica e trazer novos monstros para além de Michael Myers            

Por João Paulo Barreto

Desde seu primeiro longa de 2018, a nova trilogia Halloween  joga com as rimas visuais e temáticas oriundas de seu original, o homônimo sucesso dirigido por John Carpenter  em 1978. São enquadramentos perceptíveis em sua relação com o longa que consolidou a carreira do diretor de Eles Vivem, como aquele em que vemos alguém observando de longe, do lado de fora de uma escola, uma aluna em sua sala de aula, ou modo como as calmas ruas da fictícia Haddonfield, Illinois, são retratadas em oposição à bizarra presença de um brutamontes usando um macacão imundo e uma máscara aterrorizante. Mas para além disso, essa revisita ao universo "carpenterniano" proposta pelo cineasta David Gordon Green não fica somente nesse aspecto de homenagem e gracejos visuais direcionados aos fãs atentos, mas, sim, consegue trazer elementos inovadores para uma já combalida proposta de cinema de horror e suspense com assassinos em séries. Nessa continuação, apropriadamente batizada de Kills (do inglês, "matar"), Green abraça o estilo slasher de cinema (termo que define filmes com muita sanguinolência e ferocidade). Trata-se de um trabalho brutal, sim, que agrada a um público restrito. Mas a discussão antropológica oferecida aqui avança mais profundamente do que apenas ao espetáculo de violência visual dentro dessa proposta de cinema. 

Desconsiderando as várias(e infelizes) continuações, a nova trilogia (sim, há outro filme em produção e previsto para 2022) iniciada há três anos centrou sua ação exatamente quatro décadas depois dos acontecimentos trágicos daquela noite de Dia das Bruxas em 1978. O serial killer Michael Myers está encarcerado e tem sua transferência para outra instituição agendada. Um casal de documentaristas visita o lugar pra uma entrevista, o que, claro, funcionará como o gatilho para despertar aquele monstro. Na outra extremidade daquele espectro, Laura Stroode (Jamie Lee Curtis) ainda carrega os traumas daquele dia no final da década de setenta. Reclusa, antissocial e paranóica (com razão, claro), Laura vive em uma fortaleza na qual prepara-se para o dia em que o mal a visitará de novo. Solitária, perdeu a guarda da filha, pois o serviço social a julgou incapaz de criá-la. Claro que os estafantes treinamentos de autodefesa aos quais fez a criança passar não a ajudaram nesse sentido. É neste ponto que o filme de 2018 começa, sendo que o reencontro entre Laura e Michael não será surpresa para ninguém.

Myers resolvendo pendências com os bombeiros

VIOLÊNCIA (QUASE) GRATUITA

Ainda em relação ao modo como a violência nesse novo Halloween é inserida de maneira mais brutal do que se tornou comum em filmes com propostas de horror que em tempos  recentes chegaram aos cinemas, a percepção é de que a simples história criada por John Carpenter há mais de quarenta anos alcançou um patamar superior neste imaginário. Claro que houve releituras sofríveis da história de Michael Myers no decorrer dessas quatro décadas, mas a presença daquela máscara de expressão nula do assassino, cujo olhar frio (propositalmente, creio) se assemelha um pouco ao modo como a idosa Laura Strode parece avaliar seus arredores, permite uma abordagem mais profunda do que se passa na mente daquele assassino precoce.

Claro que é necessário levar em consideração aspectos relacionados ao investimento que o filme possui e a busca por classificações indicativas menores que permitam uma maior bilheteria. Aqui, a faixa etária de 16 anos a limitar a entrada no cinema já garante que parte da brutalidade vista na tela seja mais esperada. Mas no caso do imaginário proposto pela obra original de John Carpenter e Debra Hill, que co-escreveu o filme original ao seu lado, é algo que vai além. O mal presente dentro da sociedade que neste novo filme se apresenta tão evidente surgia de maneira subliminar nas páginas originais da dupla de roteiristas originais. Myers surgia mascarado, à luz do dia, entre arbustos de uma cidade supostamente calma e pacata. Mais do que isso, ele era a personificação de algo que existe nas entrelinhas daquele lugar. Nesta nova leitura, desde o momento no filme de 2018 em que o psiquiatra se revela também um psicopata curioso pela sensação de se tornar um assassino serial,  até o ponto em que a sociedade local decide tomar para si o status de júri, juiz e carrasco, notamos como o lema "Evil Dies Tonight" (o mal morre hoje à noite), desde sua concepção, não se aplica de modo concreto. Ao contrário. O mal apenas muda de personificação.

Laura e família em fuga: vingança contra Myers

GATILHOS PSICÓTICOS

Utilizando como um dos seus cenários o hospital para onde as vítimas de Michael Myers são levadas ao final do primeiro filme, Halloween Kills aproveita para criar a mesma rima narrativa proposta em suas imagens a emular os filmes da série original. Apesar do filme de 1981, Halloween 2 - O Pesadelo Continua, e o roteiro de John Carpenter, terem sido desconsiderados no aspecto narrativo do mais novo longa, é curioso observar que o mesmo hospital onde se passava a ação no fraco longa sequência do hit de 1978 volta a ser um dos cenários principais aqui.

E é justamente lá que a citada proposta de estudo da natureza humana ganha corpo no roteiro do filme dirigido por David Gordon Green. As cenas nas quais vemos uma multidão perseguir alguém pelos corredores e escadas do hospital, dispondo de armas em punho, aos gritos insanos de morte e sem qualquer certeza de se tratar do real serial killer a solta na cidade, descreve bem o que acontece com uma sociedade que idolatra armas e a ideia de se fazer justiça com as próprias mãos. A tragicidade e simbolismo na reflexão que toda aquela sequência traz para Halloween Kills aprofunda a experiência de um filme assumidamente "gore" levando-a para algo ainda mais rico: quem são os reais psicopatas naquela cidade? Michael Myers, pelo visto, não está sozinho.   


*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 17/10/2021



sábado, 2 de outubro de 2021

Sem Tempo para Morrer


 Adeus, Bond

ESTREIA Último filme da franquia 007 com Daniel Craig como protagonista, Sem Tempo Para Morrer encerra a parceria com o ator em uma mistura de tragicidade, ternura e brutalidade ao subverter marcas registradas da série

Por João Paulo Barreto

Com cinco filmes no currículo vivendo o agente secreto" Bond... James Bond" na sua versão mais brutal e, ao mesmo tempo, humanizada do sedutor com permissão para matar, Daniel Craig pode se orgulhar de, realmente, ter sido o seu melhor interprete. Calma, melhor interprete depois de Sean Connery, foi o que eu quis dizer. Mas isso é outra história (polêmica) dentro da roda de fãs.

A citação ao escocês Connery na abertura desse texto sobre o trabalho que fecha o ciclo do inglês Craig como o combalido soldado a serviço de vossa majestade não foi por acaso. Sem Tempo Para Morrer encerra um ciclo que vai além da presença do ator no papel central da trama. O filme dirigido por Cary Joji Fukunaga (do ótimo Beasts of no Nation)  insere elementos narrativos e uma quebra de expectativa em sua surpreendente conclusão. São elementos dramáticos até então inéditos na filmografia do personagem criado por Ian Fleming. Esse texto, claro, não tem tempo para spoilers (com trocadilhos) e não vai revelar quais são tais elementos, mas deixo claro que são pontos que tornam especiais as quase três horas de projeção.

Bond e Paloma: sem tempo para morrer em Cuba

E sendo o derradeiro longa de Craig, a relação com o primeiro filme de James Bond, Contra o Satânico Dr. No, estrelado por Sean Connery há quase sessenta anos, chega ao espectador de modo a salientar o tal full circle (ciclo fechado) na ideia da despedida do ator e, também, aplacar um pouco da sensação agridoce diante das escolhas dos roteiristas aqui. Mas, ainda bem, não são alusões obvias ao longa de Connery, mas elementos que trazem a ideia do simbolismo desse momento dentro do universo temático 007. Assim, não por acaso, vemos o agente surgir em determinado momento na Jamaica, mesmo país no qual Sean Connery se deparou pela primeira vez com a organização terrorista Spectre, que tem, também, um impactante desfecho aqui.

MEMÓRIAS EM CINZAS

O tom dessa derradeira abertura já é entregue de cara no tradicional prólogo antes da introdução musical que traz a canção tema do longa (dessa vez, interpretada por Billie Eilish, que não repete a intensidade de Adele em Skyfall, mas se sai bem). Na Itália, aposentado do serviço secreto, Bond tenta viver sem olhar por cima dos ombros à espreita de perigos ao lado da companheira Madeleine (Léa Seidoux), que conhecemos no longa anterior, Spectre (2016). Em uma bela metáfora, a população do paradisíaco local italiano vive um ritual de queima de memórias e fechamento de ciclos, ao incinerar objetos e papéis com lembranças que querem deixar para trás. Bond, ao fazer o mesmo, tem uma surpresa explosiva bem de acordo com a vida que levou e que é impossível de se apagar com um simples fósforo a torná-la cinzas.

Remi Malek como Safin: remanescente da Spectre

O passado volta a assombrá-lo na figura da citada organização Spectre, cujo líder, Blofeld, vivido pelo sempre excelente Christoph Waltz, segue ativo apesar de atrás das grades. E o passado do grupo tem laços trágicos com a própria Madeleine e a ligação com o remanescente membro terrorista, Lyutsifer Safin (Remi Malek). Mesclando a paranoia dos nonorobôs bem antes de negacionistas anti-vacina virarem a atual epidemia de imbecis, a trama de Sem Tempo Para Morrer (que foi gravado antes da pandemia) se vale bem dessa tal proposta de arma perfeita ao adaptá-la para o universo de James Bond.

ATUALIZAÇÃO PARA O FUTURO

Mesmo com a proposta de lançar uma versão feminina do 007 sendo pincelada aqui, faz falta vermos as habilidades de luta de Nomi, a agente que ocupou o lugar de Bond com o famoso número que concede licença para matar. Lashana Lynch, que já conhecíamos de Capitã Marvel, poderia ter tido destaque físico semelhante ao de Ana de Armas, cuja presença no papel da agente secreta Paloma, demonstra perfeitamente como James pode muito bem ser salvo quando a situação realmente aperta para seu lado. Apesar de não ser provável que o agente secreto masculino seja aposentado em detrimento de uma presença feminina exclusiva em seu filme, vai ser muito bem vindo novas inclusões de personagens femininas tão fortes quando Nomi e Paloma nos futuros filmes com James Bond (sim, ele voltará. A tradicional frase alertando isso está no final dos créditos).

 Nomi (Lashana Lynch) a agente que ocupou o lugar de Bond 

Sem Tempo Para Morrer encerra como uma despedida à altura para Daniel Craig e tudo o que sua presença trouxe para a franquia que, convenhamos, perdeu um pouco de sua força motriz com alguns dos filmes de seu predecessor, Pierce Brosnan. Ao mesmo tempo, este mais recente exemplar representa uma das poucas despedidas dramáticas realmente pesadas para o homem James Bond, que, com Daniel Craig, descobrimos que pode sangrar e sofrer tanto quanto aqueles outros antagonistas cujas vidas ele tirou. Mas o que ele perde nessa despedida, o que ele deixa escapar por entre os dedos, é algo bem mais simbólico do que isso. A sensação full circle ganha um outro (e até então inédito para 007) significado aqui.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, doa 03/10/2021



terça-feira, 28 de setembro de 2021

Trinta anos sem Miles Davis

Miles

TRIBUTO Três décadas após sua súbita partida, Miles Davis conserva-se como um símbolo de inovação no jazz e de um artista que sabia valorizar sua própria música sem abrir (muitas) concessões

Por João Paulo Barreto

Em 28 de setembro de 1991, Miles Davis morreu devido a um acidente vascular cerebral. Dois meses antes, em 08 de julho, fazia sua última aparição pública. Tal aparição aconteceu na Suíça, mais precisamente no Montreux Jazz Festival, tradicional evento que acontece desde 1967 na homônima cidade europeia. A aparição calhou de ser justamente em um show capitaneado pela lenda viva Quincy Jones, e que viria a se tornar o clássico disco Miles & Quincy Live at Montreaux, lançado postumamente, em 1993. No palco, porém, um Miles combalido, distante, com certa dificuldade em concentrar-se nas partituras e no domínio do trompete, instrumento que sempre foi sua ferramenta revolucionária. Ao seu lado, também no trompete, mas servindo de guia para as notas do seu mestre, Wallace Roney, pupilo de Miles, acompanhava o mentor, tocando alguns dos arranjos naquele que seria um dos últimos shows de Davis.

Havia algo de muito simbólico naquele momento há trinta anos. Miles não gostava de revisitar o passado. Seguia em frente a cada trabalho lançado. Foi assim desde o começo, quando trabalhou com seus ídolos Charlie "Bird" Parker e Dizzy Gillespie em meados da década de 1940, período no qual Miles ainda frequentava o prestigiado conservatório de música, Juilliard, em Nova York. Porém, se dedicava com mais paixão não à aulas, que perdia com frequência, mas às noites nos clubes de jazz tocando Bebop, uma da variações do ritmo. Foi com essa mesma vontade de experimentação (e sentindo não mais conseguir acompanhar a velocidade de Parker e Gillespie no Bebop)  que, nos anos posteriores, Davis focou na criação de um novo grupo. Com essa formação, e sob a batuta do arranjador Gil Evans, o trompetista trouxe ao mundo o seu primeiro clássico, não por acaso, batizado de Birth of the Cool. Gravado entre 1949 e 1950, as faixas chegaram a ser lançadas individualmente, mas compiladas sob o marcante nome e reunidas como coletânea em 1957.

Miles durante sua última apresentação, em julho de 1991

Nesse período da segunda metade da década de 1940, Miles tocou na França, no Paris International Jazz Festival, fase na qual se maravilhou com a cidade-luz e sua vida cultural, tendo uma percepção de mundo muito diferente daquela que tinha em seu próprio país, onde o racismo era evidente. Na Europa, viveu um romance com a cantora Juliette Gréco, e conviveu com figuras como Sartre e Picasso. Ao voltar para a América, foi atingindo como um golpe pela depressão que o levaria a afundar-se na heroína. Conseguiria superar com a ajuda de seu pai. Mas seria algo temporário, infelizmente. No decorrer dos anos, gravou diversos trabalhos com o selo Prestige (de 1951 a 1961) e, em seguida, com a Columbia (de 1955 a 1976), através da qual traria à vida seus registros musicais mais conhecidos, como Kind of Blue (1959); Someday My Prince Will Come (1961); In a Silent Way (1969) e, claro, o período no qual trouxe a fusão com o rock e os shows para multidões. Dessa fase, seu trabalho lançado em 1970, o emblemático do Jazz Fusion, Bitches Brew, é o que mais se destaca.

REENCONTRO COM QUINCY

Mas, voltando ao simbólico momento derradeiro de sua vida em 1991, aquele show de julho aconteceu a partir a insistência do amigo de longa data, Quincy Jones. Após uma década na qual as concessões citadas na linha fina desse texto surgiram em alguns dos seus trabalhos mais ligados ao pop rock (o disco de 1985, You're Under Arrest, trazia versões de músicas de Cyndi Lauper e Michael Jackson, para se ter uma ideia), e com seu disco "Doo-Bop", lançado em 1992, trazia Miles em um encontro com o hip-hop, tão popular naquele período, não seria de se surpreender que Davis pudesse revisitar alguns de seus clássicos.

Joatan Nascimento Foto: Ailton Cruz

O trompetista alagoano, mas radicado na Bahia desde 1987, Joatan Nascimento, lembra do dia que viu aquele momento marcante há trinta anos. "Ali foi uma coisa incrível porque ele quis fazer algo a que se negou a vida inteira. E o Quincy Jones fala uma coisa interessante. Que de alguma forma, Miles sentiu que tinha que fazer aquilo. Talvez porque era uma das poucas coisas que ele não tinha feito na vida e que não seria exatamente negativo, mas, sim, algo a mostrar que Miles é tão maior do que até mesmo alguns conceitos que defendeu a vida toda. Quem esperava que Miles fizesse isso? Quando a vida toda ele dizia que não poderia olhar para o passado?", afirma Joatan, que também atua como professor-doutor de Trompete, Improvisação e Percepção Musical na Escola de Música da UFBA e como músico da Orquestra Sinfônica da Bahia.

Joatan é ainda mais incisivo ao falar da importância daquele momento e em como aquilo foi um símbolo marcante para a despedida de Miles desse mundo. "Ele não podia mais fazer a música que tinha feito. Mas, de repente, Miles vai e faz. Surpreende nesse quesito. E, de fato, ele já não tocava como tocava no anos 1950. Aquele tipo de música que fez com (o produtor e arranjador) Gil Evans. Como instrumentista, é incrível isso. Você, com uma determinada idade, visitar uma coisa que fez lá atrás, quando era mais jovem. Com um outro tempo, um outro ritmo, outra saúde, outra disposição, outro corpo. Eu fiquei muito surpreso quando vi aquilo. Quando o vi tocando e relembrando aquelas coisas. Pouco tempo depois, ele morre. Eu guardei essas palavras do Quincy Jones: 'Miles sabia que tinha que fazer aquilo', desabafa Joatan.

FIDELIDADE A SI MESMO

Miles Davis era um músico fiel à sua própria trajetória e legado. Sua agressividade e frieza tinha muito a ver com o modo como precisou se impor em um país racista e violento como os Estados Unidos. Soube explorar ao máximo seu poder de criação dentro do jazz e passou a fundi-lo a outros estilos. A sua identificação era voltada para o seu som e somente para ele. Tal identificação dentro de uma fusão com outros estilos musicais também guia a carreira de Joatan, tendo consciência de Brasil e de ser brasileiro destacada sempre como norte. "Miles me passou uma coisa muito importante que foi ser eu mesmo. Esse é um conceito que eu acho muito valioso. Quando eu penso, vejo e ouço Miles, e comparo com o que acontecia naquela época, Miles era Miles", finaliza Joatan, cuja raiz musical dentro do manacial dos ritmos populares brasileiros ajudou a moldar essa mesma fidelidade.

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 29/09/2021





segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Rex Schindler


Rex Schindler teve sua biografia escrita pelo jornalista Giovanni Giocondo

Adeus a um gigante


DESPEDIDA Aos 99 anos, morre Rex Schindler, produtor, roteirista, argumentista, diretor e nome fundamental da cinematografia baiana nos anos 1960 e para o surgimento do Cinema Novo

Por João Paulo Barreto

Faleceu ontem, aos 99 anos, em decorrência de falência múltipla de órgãos, o produtor baiano Rex Schindler. Talvez seu nome, para o atualmente frívolo e mal informado público, não desperte grande alarde. Mas a dívida que a História do Cinema Baiano tem com ele é imensa. Um dos pioneiros na produção no estado, e vasta trajetória dentro da nossa cinematografia Rex foi um dos profissionais responsáveis pelo Ciclo Baiano, produzindo obras pilares do cinema realizado aqui. Médico por formação, atuou, também, como engenheiro no ramo da construção civil nos anos 1950, tendo usado parte do dinheiro ganho nessa área para bancar filmes que se tornariam pilares.

Os projetos de produção de cinema alavancados por Schindler faziam parte de uma proposta de trazer para a Bahia uma infraestrutura fílmica local, visando valorizar a cultura do estado e dando condições a uma indústria que conseguisse se manter a partir dos trabalhos realizados aqui. Participante do Clube de Cinema da Bahia, movimento cineclubista iniciado na mesma década, Rex era um dos sócios mais atuantes, tendo frequentado sessões ao lado de Glauber Rocha, cujo primeiro longa-metragem, Barravento, de 1962, produziu. Além deste, também produziu clássicos como A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1963), ambos dirigidos por Roberto Pires, outro precursor do cinema feito aqui. Alguns anos depois, Rex viria a atuar como produtor associado em outro marco de Roberto Pires, a inspirada ficção científica Abrigo Nuclear (1981).

Cartaz de Barravento (1962) - Produção de Schindler e direção de Glauber

CADEIRA À GLAUBER

Sobre Barravento, o cineasta, diretor de Fotografia e conservacionista, Roque Araújo, que trabalhou como eletricista no filme de estreia de Glauber Rocha, conta uma história curiosa sobre como seu amigo Rex Schindler foi de suma importância para a carreira daquele que viria ser o grande nome do Cinema Brasileiro. Schindler frequentava a loja de confecções masculinas que pertencia a Adamastor Rocha, pai de Glauber, no Centro de Salvador. "Ele criou uma amizade grande com o Rex, que tinha um escritório ali em frente, na Rua Chile. E o Glauber falou: 'O senhor é engenheiro, constrói casa, emprega dinheiro, por que não emprega no cinema?' E aí convenceu o Rex Schindler a produzir filmes", relembra Roque Araújo. Um desses filmes seria justamente Barravento. Lançado em no começo dos anos 1960, o filme seria dirigido pelo grande Luiz Paulino dos Santos, mas este deixou o projeto após um desentendimento. Rex ofereceu a cadeira de diretor a Glauber Rocha, que até então era produtor-executivo. O longa-metragem de estreia de Glauber foi o terceiro filme rodado na Bahia, após Redenção e A Grande Feira, ambos do cineasta Roberto Pires. Rex foi o argumentista e co-produtor, junto a Braga Neto, deste segundo. Além deste, criou o argumento de Tocaia no Asfalto, que teve roteiro assinado pelo diretor Pires, e cuja produção Rex dividiu com David Singer.

PAI DO CINEMA NOVO

Além de produtor, Rex Schindler também dirigiu. Seu rico documentário, Bahia Por Exemplo, lançado em 1969, traz imagens e entrevistas de diversos artistas baianos oriundos de vários campos, como Jorge Amado, Dorival Caymmi Caribé, Mario Cravo Jr. e Olga de Alakete, bem como registros de manifestações culturais e religiosas. O documentário conta, ainda, com cenas das gravações de Deus da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, cuja cessão foi feita por Roque Araújo. "Eu tinha algumas cenas de Glauber lá em Milagres. A gente Quando a gente estava fazendo O Dragão da Maldade, o tempo ficou nublado e ficamos mais de 50 minutos aguardando o sol voltar para fazermos a cena. Glauber ficou dirigindo, ensaiando, etc. Então, eu tinha essa cena e cedi para o filme de Rex", relembra Roque.

Documentário Bahia Por Exemplo, dirigido por Schindler em 1969
 

Protagonista de Barravento, o ator e diretor Antônio Pitanga deu vida ao intenso Firmino, figura chave da narrativa dirigida por Glauber. Ao lembrar de Rex Schindler, Pitanga destaca a importância do produtor como um dos precursores da cinematografia baiana. "A morte do Rex Schindler, essa pessoa centenária como o cinema é, nos dá muita tristeza e dor. Foi um grande que apostou no Glauber Rocha. Ele representa para todos nós uma geração, um movimento do Cinema Novo. Com certeza. A gente fala que o gênio do Cinema Novo foi o Glauber. O Rex Schindler foi o pai do Cinema Novo", crava Antônio Pitanga, que também trabalhou sob a alçada da produção de Schindler no clássico A Grande Feira, quando viveu o inesquecível Chico Diabo.

Rex Schindler deixa um legado imenso como produtor. Investidor, soube, com inteligência e cuidado pelas artes, trazer capital financeiro à inicial e, até então, inexistente indústria cinematográfica baiana. Por coincidência, partiu justamente na mesma época na qual o cinema que leva o nome de Glauber, e que teve exibições de obras produzidas por Schindler quando ainda se chamava Cine Guarany, perdeu o patrocínio de um banco. Triste acaso.

Que o tempo nos traga mais pessoas como Rex Schindler. O Cinema precisa mais delas e menos de banqueiros.

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 21/09/2021