terça-feira, 28 de setembro de 2021

Trinta anos sem Miles Davis

Miles

TRIBUTO Três décadas após sua súbita partida, Miles Davis conserva-se como um símbolo de inovação no jazz e de um artista que sabia valorizar sua própria música sem abrir (muitas) concessões

Por João Paulo Barreto

Em 28 de setembro de 1991, Miles Davis morreu devido a um acidente vascular cerebral. Dois meses antes, em 08 de julho, fazia sua última aparição pública. Tal aparição aconteceu na Suíça, mais precisamente no Montreux Jazz Festival, tradicional evento que acontece desde 1967 na homônima cidade europeia. A aparição calhou de ser justamente em um show capitaneado pela lenda viva Quincy Jones, e que viria a se tornar o clássico disco Miles & Quincy Live at Montreaux, lançado postumamente, em 1993. No palco, porém, um Miles combalido, distante, com certa dificuldade em concentrar-se nas partituras e no domínio do trompete, instrumento que sempre foi sua ferramenta revolucionária. Ao seu lado, também no trompete, mas servindo de guia para as notas do seu mestre, Wallace Roney, pupilo de Miles, acompanhava o mentor, tocando alguns dos arranjos naquele que seria um dos últimos shows de Davis.

Havia algo de muito simbólico naquele momento há trinta anos. Miles não gostava de revisitar o passado. Seguia em frente a cada trabalho lançado. Foi assim desde o começo, quando trabalhou com seus ídolos Charlie "Bird" Parker e Dizzy Gillespie em meados da década de 1940, período no qual Miles ainda frequentava o prestigiado conservatório de música, Juilliard, em Nova York. Porém, se dedicava com mais paixão não à aulas, que perdia com frequência, mas às noites nos clubes de jazz tocando Bebop, uma da variações do ritmo. Foi com essa mesma vontade de experimentação (e sentindo não mais conseguir acompanhar a velocidade de Parker e Gillespie no Bebop)  que, nos anos posteriores, Davis focou na criação de um novo grupo. Com essa formação, e sob a batuta do arranjador Gil Evans, o trompetista trouxe ao mundo o seu primeiro clássico, não por acaso, batizado de Birth of the Cool. Gravado entre 1949 e 1950, as faixas chegaram a ser lançadas individualmente, mas compiladas sob o marcante nome e reunidas como coletânea em 1957.

Miles durante sua última apresentação, em julho de 1991

Nesse período da segunda metade da década de 1940, Miles tocou na França, no Paris International Jazz Festival, fase na qual se maravilhou com a cidade-luz e sua vida cultural, tendo uma percepção de mundo muito diferente daquela que tinha em seu próprio país, onde o racismo era evidente. Na Europa, viveu um romance com a cantora Juliette Gréco, e conviveu com figuras como Sartre e Picasso. Ao voltar para a América, foi atingindo como um golpe pela depressão que o levaria a afundar-se na heroína. Conseguiria superar com a ajuda de seu pai. Mas seria algo temporário, infelizmente. No decorrer dos anos, gravou diversos trabalhos com o selo Prestige (de 1951 a 1961) e, em seguida, com a Columbia (de 1955 a 1976), através da qual traria à vida seus registros musicais mais conhecidos, como Kind of Blue (1959); Someday My Prince Will Come (1961); In a Silent Way (1969) e, claro, o período no qual trouxe a fusão com o rock e os shows para multidões. Dessa fase, seu trabalho lançado em 1970, o emblemático do Jazz Fusion, Bitches Brew, é o que mais se destaca.

REENCONTRO COM QUINCY

Mas, voltando ao simbólico momento derradeiro de sua vida em 1991, aquele show de julho aconteceu a partir a insistência do amigo de longa data, Quincy Jones. Após uma década na qual as concessões citadas na linha fina desse texto surgiram em alguns dos seus trabalhos mais ligados ao pop rock (o disco de 1985, You're Under Arrest, trazia versões de músicas de Cyndi Lauper e Michael Jackson, para se ter uma ideia), e com seu disco "Doo-Bop", lançado em 1992, trazia Miles em um encontro com o hip-hop, tão popular naquele período, não seria de se surpreender que Davis pudesse revisitar alguns de seus clássicos.

Joatan Nascimento Foto: Ailton Cruz

O trompetista alagoano, mas radicado na Bahia desde 1987, Joatan Nascimento, lembra do dia que viu aquele momento marcante há trinta anos. "Ali foi uma coisa incrível porque ele quis fazer algo a que se negou a vida inteira. E o Quincy Jones fala uma coisa interessante. Que de alguma forma, Miles sentiu que tinha que fazer aquilo. Talvez porque era uma das poucas coisas que ele não tinha feito na vida e que não seria exatamente negativo, mas, sim, algo a mostrar que Miles é tão maior do que até mesmo alguns conceitos que defendeu a vida toda. Quem esperava que Miles fizesse isso? Quando a vida toda ele dizia que não poderia olhar para o passado?", afirma Joatan, que também atua como professor-doutor de Trompete, Improvisação e Percepção Musical na Escola de Música da UFBA e como músico da Orquestra Sinfônica da Bahia.

Joatan é ainda mais incisivo ao falar da importância daquele momento e em como aquilo foi um símbolo marcante para a despedida de Miles desse mundo. "Ele não podia mais fazer a música que tinha feito. Mas, de repente, Miles vai e faz. Surpreende nesse quesito. E, de fato, ele já não tocava como tocava no anos 1950. Aquele tipo de música que fez com (o produtor e arranjador) Gil Evans. Como instrumentista, é incrível isso. Você, com uma determinada idade, visitar uma coisa que fez lá atrás, quando era mais jovem. Com um outro tempo, um outro ritmo, outra saúde, outra disposição, outro corpo. Eu fiquei muito surpreso quando vi aquilo. Quando o vi tocando e relembrando aquelas coisas. Pouco tempo depois, ele morre. Eu guardei essas palavras do Quincy Jones: 'Miles sabia que tinha que fazer aquilo', desabafa Joatan.

FIDELIDADE A SI MESMO

Miles Davis era um músico fiel à sua própria trajetória e legado. Sua agressividade e frieza tinha muito a ver com o modo como precisou se impor em um país racista e violento como os Estados Unidos. Soube explorar ao máximo seu poder de criação dentro do jazz e passou a fundi-lo a outros estilos. A sua identificação era voltada para o seu som e somente para ele. Tal identificação dentro de uma fusão com outros estilos musicais também guia a carreira de Joatan, tendo consciência de Brasil e de ser brasileiro destacada sempre como norte. "Miles me passou uma coisa muito importante que foi ser eu mesmo. Esse é um conceito que eu acho muito valioso. Quando eu penso, vejo e ouço Miles, e comparo com o que acontecia naquela época, Miles era Miles", finaliza Joatan, cuja raiz musical dentro do manacial dos ritmos populares brasileiros ajudou a moldar essa mesma fidelidade.

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 29/09/2021





segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Rex Schindler


Rex Schindler teve sua biografia escrita pelo jornalista Giovanni Giocondo

Adeus a um gigante


DESPEDIDA Aos 99 anos, morre Rex Schindler, produtor, roteirista, argumentista, diretor e nome fundamental da cinematografia baiana nos anos 1960 e para o surgimento do Cinema Novo

Por João Paulo Barreto

Faleceu ontem, aos 99 anos, em decorrência de falência múltipla de órgãos, o produtor baiano Rex Schindler. Talvez seu nome, para o atualmente frívolo e mal informado público, não desperte grande alarde. Mas a dívida que a História do Cinema Baiano tem com ele é imensa. Um dos pioneiros na produção no estado, e vasta trajetória dentro da nossa cinematografia Rex foi um dos profissionais responsáveis pelo Ciclo Baiano, produzindo obras pilares do cinema realizado aqui. Médico por formação, atuou, também, como engenheiro no ramo da construção civil nos anos 1950, tendo usado parte do dinheiro ganho nessa área para bancar filmes que se tornariam pilares.

Os projetos de produção de cinema alavancados por Schindler faziam parte de uma proposta de trazer para a Bahia uma infraestrutura fílmica local, visando valorizar a cultura do estado e dando condições a uma indústria que conseguisse se manter a partir dos trabalhos realizados aqui. Participante do Clube de Cinema da Bahia, movimento cineclubista iniciado na mesma década, Rex era um dos sócios mais atuantes, tendo frequentado sessões ao lado de Glauber Rocha, cujo primeiro longa-metragem, Barravento, de 1962, produziu. Além deste, também produziu clássicos como A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1963), ambos dirigidos por Roberto Pires, outro precursor do cinema feito aqui. Alguns anos depois, Rex viria a atuar como produtor associado em outro marco de Roberto Pires, a inspirada ficção científica Abrigo Nuclear (1981).

Cartaz de Barravento (1962) - Produção de Schindler e direção de Glauber

CADEIRA À GLAUBER

Sobre Barravento, o cineasta, diretor de Fotografia e conservacionista, Roque Araújo, que trabalhou como eletricista no filme de estreia de Glauber Rocha, conta uma história curiosa sobre como seu amigo Rex Schindler foi de suma importância para a carreira daquele que viria ser o grande nome do Cinema Brasileiro. Schindler frequentava a loja de confecções masculinas que pertencia a Adamastor Rocha, pai de Glauber, no Centro de Salvador. "Ele criou uma amizade grande com o Rex, que tinha um escritório ali em frente, na Rua Chile. E o Glauber falou: 'O senhor é engenheiro, constrói casa, emprega dinheiro, por que não emprega no cinema?' E aí convenceu o Rex Schindler a produzir filmes", relembra Roque Araújo. Um desses filmes seria justamente Barravento. Lançado em no começo dos anos 1960, o filme seria dirigido pelo grande Luiz Paulino dos Santos, mas este deixou o projeto após um desentendimento. Rex ofereceu a cadeira de diretor a Glauber Rocha, que até então era produtor-executivo. O longa-metragem de estreia de Glauber foi o terceiro filme rodado na Bahia, após Redenção e A Grande Feira, ambos do cineasta Roberto Pires. Rex foi o argumentista e co-produtor, junto a Braga Neto, deste segundo. Além deste, criou o argumento de Tocaia no Asfalto, que teve roteiro assinado pelo diretor Pires, e cuja produção Rex dividiu com David Singer.

PAI DO CINEMA NOVO

Além de produtor, Rex Schindler também dirigiu. Seu rico documentário, Bahia Por Exemplo, lançado em 1969, traz imagens e entrevistas de diversos artistas baianos oriundos de vários campos, como Jorge Amado, Dorival Caymmi Caribé, Mario Cravo Jr. e Olga de Alakete, bem como registros de manifestações culturais e religiosas. O documentário conta, ainda, com cenas das gravações de Deus da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, cuja cessão foi feita por Roque Araújo. "Eu tinha algumas cenas de Glauber lá em Milagres. A gente Quando a gente estava fazendo O Dragão da Maldade, o tempo ficou nublado e ficamos mais de 50 minutos aguardando o sol voltar para fazermos a cena. Glauber ficou dirigindo, ensaiando, etc. Então, eu tinha essa cena e cedi para o filme de Rex", relembra Roque.

Documentário Bahia Por Exemplo, dirigido por Schindler em 1969
 

Protagonista de Barravento, o ator e diretor Antônio Pitanga deu vida ao intenso Firmino, figura chave da narrativa dirigida por Glauber. Ao lembrar de Rex Schindler, Pitanga destaca a importância do produtor como um dos precursores da cinematografia baiana. "A morte do Rex Schindler, essa pessoa centenária como o cinema é, nos dá muita tristeza e dor. Foi um grande que apostou no Glauber Rocha. Ele representa para todos nós uma geração, um movimento do Cinema Novo. Com certeza. A gente fala que o gênio do Cinema Novo foi o Glauber. O Rex Schindler foi o pai do Cinema Novo", crava Antônio Pitanga, que também trabalhou sob a alçada da produção de Schindler no clássico A Grande Feira, quando viveu o inesquecível Chico Diabo.

Rex Schindler deixa um legado imenso como produtor. Investidor, soube, com inteligência e cuidado pelas artes, trazer capital financeiro à inicial e, até então, inexistente indústria cinematográfica baiana. Por coincidência, partiu justamente na mesma época na qual o cinema que leva o nome de Glauber, e que teve exibições de obras produzidas por Schindler quando ainda se chamava Cine Guarany, perdeu o patrocínio de um banco. Triste acaso.

Que o tempo nos traga mais pessoas como Rex Schindler. O Cinema precisa mais delas e menos de banqueiros.

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 21/09/2021





 

 

 

 

sábado, 18 de setembro de 2021

Cry Macho

O Cavaleiro Solitário

CINEMA Aos 91 anos, Clint Eastwood volta a atuar e dirigir com Cry Macho, filme que reflete sua própria perenidade e reminiscências do passado, mas que carece de um roteiro à altura do cineasta

Por João Paulo Barreto

São diversos os sinais lançados por Cry Macho, mais recente trabalho da lenda viva Clint Eastwood, para que, na visita ao filme, sigamos por uma estrada de reflexão acerca das experiências de vida; arrependimentos; perdas e ganhos; erros e acertos, bem como sobre os anseios por dias melhores, mesmo quando a contagem desse tempo parece se aproximar de um fim. As imagens do seu protagonista dirigindo sua caminhonete pareada a cavalos que correm livremente; a sutil mensagem de ida ao sul, algo comum a pássaros em busca de calor e conforto; além, claro, da ideia do homem que perdeu seus laços e que apenas espera a chegada da morte, mas que tem uma última missão (mesmo que quase suicida) a cumprir. Todos estes pontos de reflexão enriquecem o mais novo trabalho de Eastwood. Mas tal riqueza de aspectos acaba sendo ofuscada por um roteiro com poucos atrativos emocionais para suprir essa expectativa do que pode ser o último longa do cineasta de 91 anos.

Mas há de se fazer uma separação aqui quando a proposta é a de se analisar os méritos dessa nova empreitada do diretor de Os Imperdoáveis, filme que também trazia um cowboy (e assassino aposentado, claro) que é contratado para um serviço que o faz sair de sua inércia para cumprir esse supostamente último papel em vida. Diferente do clássico western dirigido por Clint há trinta anos, a história de Cry Macho não rende o mesmo tipo de profundidade em uma reflexão sobre a passagem do tempo e o esgotamento do mesmo. Neste novo filme, há, sim, toda essa profunda análise da velhice, um encontro com fantasmas do passado e uma merecida nova chance para um combalido homem. Mas a história que leva tal redenção à frente decepciona um pouco pela falta de profundidade de seus outros personagens centrais para além de seu protagonista, o único, aqui, que parece ser tridimensional.

Mike e Rafa - Personagens com contrastes de desenvolvimento

COADJUVANTES RASOS

Mike Milo, vivido pelo próprio diretor, é um peão de rodeios desempregado, viúvo e sem filhos, que se vê em uma encruzilhada de sua vida. Idoso e sem quaisquer perspectivas, aceita retribuir a ajuda de um amigo, e dirige do Texas ao México para buscar o filho do mesmo, um garoto que supostamente sofre abusos de sua mãe. Apesar de focar em um inevitável (e até previsível) laço afetivo que surgirá entre o adolescente e o idoso, o roteiro de Nick Schenk, baseado no livro de N. Richard Nash, não se esforça muito para tornar crível o suposto sofrimento pelo qual passa o jovem, bem como torna o personagem confuso na definição de suas emoções. Da mesma forma, a inserção da mãe do garoto na trama apenas confirma certa preguiça em desenvolver mais camadas para tais figuras, colocando-a apenas como alguém que descreve o filho como um monstro (algo que até decepciona quando finalmente conhecemos o frágil e inseguro adolescente que batizou de Macho seu galo de estimação).

Mike e o galo de nome Macho do título 

PROTAGONISTA SALVA

Assim, o esforço afetivo  e foco da audiência centra-se totalmente em Mike, cuja história de vida é trazida à superfície no decorrer daquela viagem, e seu apelo emotivo ganha mais força ao vermos como a trama vai desenhando um futuro feliz para os últimos anos do veterano peão de rodeios. Vale dizer que o Mike Milo que Clint encarna aqui é alguém diferente do Walt Kowalski, de Gran Torino, filme de 2008 cujo roteiro é do mesmo Nick Schenk. Mas trata-se de um personagem que não se difere tanto do Earl Stone, de A Mula, filme mais recente que também conta com Eastwood como ator principal e diretor. Da mesma forma que no papel do condutor de drogas para dentro dos Estados Unidos na obra de 2018, (também escrita por Schenk, diga-se de passagem), temos uma semelhante motivação para seu protagonista, alguém que se encontra em um ponto sem muitas perspectivas e percebe algo a que pode dedicar-se com mais energia.

Tais comparações, aqui, no entanto, são feitas pela simples percepção de que o mesmo parece se passar com Eastwood, que, obviamente, possui muito mais perspectivas em seus  próximos e últimos anos de vida, mas que pode nos dar algo bem mais profundo e de acordo com sua trajetória do que este apenas mediano Cry Macho.

E confesso que ver Clint Eastwood sentado em um cavalo, ao 91 anos, em terras mexicanas, mesmo que em cena mais calma e sem galopes, só nos faz pensar no que ele faria em um derradeiro e legitimo revisitar ao faroeste, algo que brilhantemente fez há trinta anos dedicando aquele trabalho aos mestres Sergio Leone e Don Siegel, que o guiaram em seus passos como diretor.


*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 19/09/2021


domingo, 5 de setembro de 2021

A Última Floresta


 Existir como Povo

CINEMA A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, narra em formato hibrido de documentário a  urgente, lendária e real história dos Yanomamis, povo massacrado pelo garimpo ilegal

Por João Paulo Barreto

A frase que estampa o topo dessa página vem de um apelo feito pelo líder político e xamã Yanomami, o escritor Davi Kopenawa, por ocasião de sua visita como palestrante convidado  na prestigiada universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em maio de 2019. Na sua fala aos acadêmicos, trecho que de maneira  pungente encerra A Última Floresta, do cineasta Luiz Bolognesi, Davi falou sobre a característica sovina do comportamento do homem branco. "Vocês que vivem aqui na outra margem, não enxergam. Pensam que na floresta tudo é bonito. Mas os brancos que são autoridades liberaram o garimpo em nossas terras", alertou Davi, naquele distante mês de maio, cinco meses após o genocida e atual governo federal tomar posse.

Davi continuou sua fala pontuando o modo como a autoridade não indígena usa a palavra "importante" no sentido de designar mercadorias. "Apesar de ter muitas mercadorias, o branco não divide. São sovinas. Fazer muita mercadoria faz mal para a floresta. Para nós, importante são os animais da floresta, a fertilidade. Importante é dividir o alimento entre o nosso povo, nossa forma de viver e nossa existência como povo ", explicou o líder Yanomami.           

Davi Kopenawa, xamã espiritual e líder dos Yanomamis

Em todos os seus breves 76 minutos, A Última Floresta, filme que estreia na próxima quinta, (e que ficará disponível gratuitamente, também, no dia 30/09, no Itaú Cultural Play), traduz em imagens essa mesma consciência: a da básica necessidade de se existir. A de uma básica condição a se pleitear como ser humano: a condição da vida. O filme, logo em seu letreiro inicial, explica que "os Yanomamis vivem em um território no norte do Brasil e sul da Venezuela há mais de mil anos, e que quinhentos anos antes desses dois países existirem, eles já estavam lá". Hoje, o povo indígena busca por fazer valer o direito de permanecer naquelas terras sem correr riscos de envenenamento por mercúrio, sem correr riscos de serem assassinados por garimpeiros armados, nem de terem suas mulheres estupradas e filhos mortos, como aconteceu em 1986, quando jazidas de ouro foram descobertas. O resultado foi a invasão de 45 mil garimpeiros e o assassinato de 1500 a 1800 indígenas.

DOC. HIBRIDO

O roteiro do filme, assinado por Davi Kopenawa e Luiz Bolognesi, cria uma estrutura documental hibrida, com inserções de uma dramatização da lenda dos irmãos Omama e Yoasi, que deu origem ao povo Yanomami no começo do mundo. O filme se desenvolve no contar de tal história em um aspecto lúdico e fantasioso. Mas, juntamente com esse momentos, a realidade dos riscos que correm aquelas pessoas chega ao espectador de modo direto. São os momentos nos quais vemos a rotina daquelas pessoas com suas crianças, os adultos e idosos em suas atividades comuns às suas realidades e existências. E é pensar em como aquilo tudo é ameaçado por uma ganância destruidora que nos traz ao aspecto denunciatório e impactante da obra.

Uma dos irmãos criadores dos Yanomamis 

Junto a tais momentos lúdicos, a realidade áspera se apresenta. Surge nos trechos nos quais Davi esclarece aos companheiros de aldeia os riscos da presença de garimpeiros, com o envenenamento dos rios com mercúrio, bem como com a sedução oriunda dos objetos oferecidos pelo homem branco.  Assim, A Última Floresta apresenta para sua audiência a importância da causa de defesa dos Yanomamis em dois pilares fundamentais para a compreensão da sua prioridade.

O primeiro pilar surge do aspecto cultural. Quando o filme se propõe a levar ao espectador uma parte da cultura dos povos Yanomamis com a dramatização de suas lendas, ele nos oferece um vislumbre dessa riqueza. E ao utilizar a própria floresta como cenário e integrantes da tribo como atores a representar aqueles personagens, Kopenawa e Bolognesi criam uma linguagem que, apesar não incomum no cinema, possui um aspecto único naquele hibridismo entre documentário e ficção. E isso é justamente pelo peso de simbolizar um povo que enfrenta um genocídio real de seus integrantes.

É neste ponto de representação que está o segundo pilar da obra: o do aspecto da denúncia. A conscientização para o que acontece desde muito tempo com a ganância cega que mata, queima e destrói um povo para que as riquezas materiais de suas terras sejam extraídas, deixando um rastro de sangue e destruição. Vale frisar que, mesmo após o reconhecimento legal das terras Yanomamis pelo governo brasileiro em 1992, um novo massacre aconteceu no ano seguinte, com garimpeiros matando a golpes de facão e tiros 16 indígenas, entre estes crianças, mulheres e idosos, em um episódio que ficou conhecido como Massacre de Haximu.

O filme, porém, ao invés de inseri-las em imagens de arquivo, traz essas informações ao final, em letreiros explicativos. E tal opção de Bolognesi em sua montagem não poderia ser mais acertada por conta não somente de seu impacto, mas por manter a obra em um aspecto de, mesmo sendo um filme denúncia, ter em sua estrutura um foco na valorização da vida de quem habita aqueles momentos registrados por uma câmera que nunca é intrusiva. 

O ser mítico Thuëyoma (Roseane Yanomami) .ao lado de Omama (Nilson Wakari)

GRANDIOSIDADE

No filme, a criança pede à mãe um pedaço de beiju, iguaria feita da mandioca assada. O idoso varre o terreno. Um grupo de homens entra em um transe ritualístico ao visitar suas consciências como povos eternos. São pequenas inserções que nos permite penetrar naquele mundo. A Última Floresta sai desse ambiente para a universidade de Harvard a partir de um corte sutil entre o céu amazônico e o estadunidense.  E lá está Davi caminhando pelo campus e seguindo para o auditório onde apresentará seu discurso de alerta e um pedido de socorro destinado a acadêmicos de diversas partes do mundo do homem branco.

Davi, em seu discurso que abre esse texto, fala da importância da floresta. A imagem que nos vem à mente é a que inicia o filme, quando a grandiosidade daquela natureza nos impressiona e encanta tanto através do que vemos quanto do que ouvimos nos sons que nos guiam por aquele verde. Davi, deslocado em seu quarto de hotel, vai à janela e escuta os sons urbanos. Lembra de toda a sua luta para que seu povo pudesse viver em paz longe daqueles sons que se tornam o que prenuncia o genocídio trazido pelo garimpo de homens brancos.

Brancos bem menos civilizados do que aqueles para os quais falou o xamã Yanomami.


*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 05/09/2021