quinta-feira, 21 de junho de 2018

Tungstênio


Dhalia concede movimento à maestria de Quintanilha


(Brasil, 2018) Direção: Heitor Dhalia. Com Fabrício Boliveira, Wesley Guimarães, José Dumont.

Por João Paulo Barreto

 “Bom é quando não tem erro. O negócio é meter logo bomba, pai!” A frase simbólica proferida pelo narrador enquanto pescadores trapaceiam no mar da cidade baixa, às margens do Forte de Monte Serrat, reverbera na vida de todos os personagens de Tungstênio, novo filme de Heitor Dhalia. E o peso da tensão oriunda das explosões a matar os peixes parece afetar não somente àqueles que estão próximos, mas se alastra como uma teia na vida de outros indivíduos, colocando-os em situações limítrofes. E essa série de narrativas paralelas é algo que o longa exibe de modo constante, quase frenético, e com uma fluidez palpável, passando de um arco para o outro e retornando ao seu ponto, sem atropelos.

Dhalia, a partir da obra original de Marcello Quintanilha, captou de modo pungente a criação do seu autor. O que o espectador presencia na tela é um encadeamento de histórias lineares e não lineares, com flashbacks distantes e recentes, tudo em uma urgência que, apesar de sua velocidade, consegue se tornar fluída na narrativa, sem confusão para o espectador. Oriunda de uma história em quadrinhos na qual Quintanilha explora ao máximo as formas de contar uma saga através dessa arte específica, Dhalia tinha em mãos o desafio de transformar em imagens em movimento aquela graphic novel que já possuía uma estrutura com enquadramentos cinematográficos. Mas não que isso torne fácil o trabalho do diretor. O desafio aqui é ainda maior na busca de tentar transcrever em movimentos reais algo que parecia já possuí-los nas páginas impressas.

Seu Ney (Dumont) libera a fúria repreendida

Na história, Seu Ney (um José Dumont inspirado) deixa subir-lhe à cabeça a arrogância dos tempos de militarismo ao exigir que os dois pescadores sejam autuados pela pesca predatória. Caju, jovem com pequenos furtos e tráfico no currículo, é a vitima da raiva do homem. Acaba aceitando forçadamente ajudá-lo e telefona para um conhecido, Richard, policial truculento que vai até a praia em busca dos meliantes que pescam com bomba. É neste ponto que a violência que parece ligar a todos e mantê-los em um mesmo patamar se confirma como fio condutor do filme. A explosão de fúria abarca a todos. Tungstênio ilustra bem o fato de que a mesma truculência que abarca militares reformados como Ney, atua de forma igual na conduta de Richard (Fabrício Boliveira, insano). A violência vicia. Pode ficar adormecida por um período, mas sempre está ali à espreita, buscando escapar. E na obra de Quintanilha, quando ela escapa, é implacável em seu estrago, algo que Dhalia ilustra com maestria. 

Fabrício Boliveira na pele de Richard: truculência militar de geração para geração

A cidade de Salvador, aqui, pode até ter berimbaus ao fundo, como que a ilustrar seu calor e trânsito infernais, mas foge de qualquer clichê global de baianidade e povo condenado a ser feliz. Aqui, é cobra comendo cobra. A voz over de Milhem Cortaz não pega o espectador pela mão de modo didático. Ela se faz presente como um comichão a incomodar e mostrar com ainda mais crueza aquela realidade. Caju é surrado pelo militar reformado e busca sua vingança contra aquela agressão. Mas, ao mesmo tempo, rouba um telefone de uma trabalhadora e engana um amigo que vende geladinho. Não há autopiedade que dure muito tempo quando sobreviver fala mais alto. E que se danem os escrúpulos. Caju é um exemplo dessa sobrevivência forçada. Apanha na cara de vários, mas que só ousa se vingar de um. No seu papel, Wesley Guimarães consegue trazer uma frustração pulsante. Desde a falta que faz seu pai, morto sete anos antes, até o ódio e admiração simultâneos que sente por Richard, o rapaz transmite tais sentimentos de forma a captar a atenção do espectador sem os estereótipos comuns quando soteropolitanos são representados. Um achado.

Sem redenção, Tungstênio é tão pesado quanto o metal de seu título. Qualquer esperança de final feliz quando um encontro inesperado é presenciado por Caju com um olhar de curiosidade e quase satisfação cai por terra no seu desfecho virulento e brutal que deixa as marcas não só no personagem quanto no público. “O negócio é meter logo bomba, pai!”. E foi justamente isso que Dhalia e Quintanilha fizeram aqui.


* Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 21/06/2017




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