sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Entrevista: Lázaro Ramos

Foto: Bob Wolfenson
          Apresentando documentário sobre o Bando de Teatro Olodum, 

Lázaro Ramos esteve na Mostra SP 2018



Ator, apresentador, cineasta e escritor, o baiano Lazaro Ramos mergulha na história dos 25 anos do Bando de Teatro Olodum em “Bando, Um Filme de” (2018), documentário em que assina a direção ao lado de Thiago Gomes e que busca “plantar uma semente de reconhecimento” sobre um projeto teatral que não apenas o moldou (“Eu fui cozido nesse caldo”) como é “um grupo de teatro com uma composição imensa de atores negros que tem a maior longevidade da América Latina”.

Criado em Salvador nos anos 90 em parceria com o Grupo Cultural Olodum, a companhia Bando de Teatro Olodum foi responsável por lançar Lázaro Ramos e também Érico Brás. O documentário foi lançado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (há, ainda, uma exibição agendada para o dia 29/10, às 17h50, no Espaço Itaú Frei Caneca) e compila imagens de arquivo (como cenas e extras do filme “Ó, Pai, Ó”, de 2007), material coletado de extensas entrevistas com membros do Bando de vários épocas, colaboradores e outros convidados.

Além desse resgate, o filme também traz a imprescindível questão da resistência de uma companhia de teatro cujas dificuldades enfrentadas vão de encontro com a sua incrível longevidade. “Como conseguiu resistir por tanto tempo? Era justamente esse assunto que a gente queria tratar”, explica Lázaro. “É sobre resistência, e como, durante esses 25 anos, foi produzido teatro na nossa terra”, completa. Sobre o processo de construção e a importância política e social da obra e de sua carreira, o ator baiano falou com exclusividade com o Scream & Yell.

Por João Paulo Barreto

Cena de Cabaré da RRRRAÇA Foto: Márcio Lima

Em “Bando, Um Filme de” mais do que a documentação cinematográfica dos 25 anos do Bando de Teatro Olodum, o que temos é um registro do grupo como símbolo de resistência artística e política. Desde o primeiro esboço era essa a intenção?
O lugar inicial foi justamente esse. Tínhamos as imagens da leitura de “Ó Paí Ó”, que eram apenas registros que a gente queria fazer, mas que se tornou uma pergunta, na verdade. Uma pergunta que era muito forte, pelo menos no meu coração: como é que esse grupo tão grande de pessoas conseguiu permanecer por tanto tempo em atividade, muitas vezes sem remuneração, falando coisas que não estavam usualmente no palco? Como conseguiu resistir por tanto tempo? Era justamente esse assunto que a gente queria tratar. É sobre resistência, é sobre processo criativo, e é como, durante esses 25 anos, foi produzido teatro na nossa terra. No filme, você vê que a gente fala um pouco de outros grupos que existiam, mas nós tínhamos o bando como protagonista dessa história. Mais ainda: tínhamos esses atores e suas histórias de vida como protagonistas.

O filme, neste aspecto, traz uma imprescindível mensagem relacionada à urgência e à permanência do Bando. Inclusive, o ator Jorge Washington fala da necessidade de ser ativista quando também se é ator em Salvador.
Eu acho que essa é uma mensagem importantíssima para esses tempos: estar no palco é ser ativista, sim, hoje em dia. Permanecer no palco, lutando para levar arte para a vida das pessoas, levar reflexão para a vida das pessoas, tentar transformar as realidades, é, sim, resistir. É, sim, lutar para que a gente viva em um país com menos barbárie do que a gente está se encaminhando para viver.

No processo de construção, com a estrutura seguindo o formato de entrevistas contínuas, houve algum receio de que o ritmo do filme fosse prejudicado?
Não temi isso, não. Por uma coisa: eu acho que esses atores e atrizes, os entrevistados, têm tanto a dizer que isso, por si só, já seria importante e cativante. Um dos fatos que ajudou foi o de eu não ser o entrevistador durante a feitura do filme, pois eles não estavam falando nada para Lázaro, para o amigo e o parceiro de trabalho. Muito pelo contrário. As perguntas todas eram feitas para os instigarem, deixando que eles falassem por muito tempo. O material bruto é gigantesco, porque as pessoas queriam muito falar. Era a busca pela voz do individuo que está ali no bando. De todas as gerações. E isso acontecia de uma maneira muito linda. A gente teve uma dificuldade para chegar a esse formato final, porque as pessoas queriam muito falar. Queriam muito ter aquele espaço, aquele microfone que muitas vezes é negado a esses atores individualmente. Às vezes, em um grupo de teatro, você fala do coletivo, um ou outro tem a oportunidade de dar uma entrevista quando vai divulgar uma peça. Quando se tem um trabalho solo, fala um pouco mais. Mas, eu senti muito de que era um momento único para esses atores todos. E isso produziu pérolas. As pessoas dizem coisas que às vezes eu até converso: “gente, vocês sabem o que estavam dizendo? Compartilhando com o mundo?” (risos). Mas é esse desejo de ser escutado e ter o microfone na mão. São histórias que se misturam histórias de vida e histórias pessoais das pessoas.

Cena do espetáculo Bença. Foto: Diney Araújo 


Como foi revisitar sua memórias no Bando, o grupo no qual você foi criado? Foi difícil?Não, foi muito fácil. Eu queria muito falar sobre isso. Tem uma coisa que eu acho que a gente fala pouco. Que a nossa própria terra reconhece pouco, e o Brasil nem se fala. Mas a gente tem na Bahia, em Salvador, um grupo de teatro com uma composição imensa de atores negros que tem a maior longevidade da América Latina. A gente não fala isso. Isso é um título importantíssimo de ser reconhecido. E eu sempre falo isso. Em todas as entrevistas, em todos os lugares. Porque eu acho que isso é importante demais para não ser reconhecido, valorizado e celebrado. Isso é nosso! Essa é a nossa história. Essa é uma contribuição para a cultura do nosso país que ainda não foi devidamente reconhecida. Eu acho, inclusive, que esse documentário é pouco. Eu acho que muito mais poderia ser falado. Esse é mais um traço da nossa história que a gente eclipsa. Que a gente silencia. E o documentário vem justamente para isso. Para plantar uma semente de reconhecimento. E hoje em dia, posso até acrescentar, não é só o bando. Eu acrescento que é o teatro feito na Bahia e que é o teatro que nos forma, que me formou e é onde estão os meus primeiros ídolos. É o teatro onde a gente tem artistas e uma mão de obra que é única no nosso país.

Existe uma questão que me incomoda no cenário artístico baiano que é uma ausência de um posicionamento político. Com algumas exceções, diversos cantores e atores baianos se eximem dessa responsabilidade como formadores de opinião. Você, como alguém sempre presente nessa questão, acha o que dessa inércia?
Cara, se posicionar politicamente depende de várias coisas. Primeiro do desejo, segundo do repertório. A gente às vezes acha que todo artista tem um repertório vasto de conhecimento sobre todos os assuntos. E às vezes não é assim. Às vezes, quando a pessoa vai falar, ela se expõe nas suas fragilidades, na sua ignorância, também. Acho que a gente precisa reconhecer isso. E tem as estratégias políticas de cada pessoa. Tem gente que opta por outras coisas. Eu posso falar de mim, da minha história. Eu fui cozido nesse caldo. Eu comecei a fazer teatro com 15 anos de idade no Bando de Teatro Olodum. Foi assim que eu fui capacitado. Os meus interesses artísticos e cidadãos, as informações que eu vou buscando para me capacitar, são muito nesse sentido. E isso é um repertório que é muito particular. Eu não faço fogo amigo contra a minha classe, entende? Eu posso falar de mim, da minha vivência, daquilo que o Bando me deu e me ensinou. E também daquilo que a minha família, que muitos deles moram na periferia de Salvador, ou em bairros pobres da nossa cidade, vivem no dia a dia e isso é algo que eu enxergo. E por isso me motiva. Nem todo mundo tem essa vivência e capacitação. Inclusive, para mim o inimigo não é esse cara (esse artista que não se posiciona). Para mim o inimigo é o que fala a favor da barbárie, quem incentiva a violência, quem não incentiva a escuta, quem acha que não vai ser tão ruim assim. Para mim é mais importante falar contra a barbárie. E essa barbárie não vem desse lugar. Vem de outro que é o risco iminente e que só vai aumentar a nossa luta. E que já está aí há muitos anos. Na verdade, agora, para te falar bem a verdade, eu estou recolhendo forças por saber que a luta continuará e talvez aumente. E essa é uma luta que não começa agora, pelo menos na minha vida. Principalmente por vir de um bairro como o Garcia e da Federação, em Salvador, que tem demandas muito ligadas às questões sociais. Por ser um homem negro, por ser nordestino, por ser ator de teatro, desse que é o Bando de Teatro Olodum. E isso convoca a gente todos os dias. A convocação à luta é uma coisa que é permanente na vida. E quando a gente acha que vai descansar, na verdade a gente percebe que a luta permanecerá. É um momento recolher forças.

A luta e a arte são indissociáveis nesse caso.
A gente vem lutando há anos, cara. Isso é uma loucura. A luta permanece. É uma vida sem descanso. Mas vamos lá. É isso. No meu caso, pelo menos, eu acho que algo que alenta é ter a arte como arma, também. E que bate em um outro lugar. Que bate no emocional, na afetividade, e que é muito poderosa. Eu acredito muito no poder da palavra, da afetividade e da arte. E disso aí a gente não pode abrir mão.



quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Limonada

(Lemonade, Romênia, 2018) Direção: Ionana Uricaru. Com Mãlina Manovici, Dylan Smith, Steve Bacic.


42ª MOSTRA SP – Sem pieguice ou maniqueísmo, Limonada traz um potente retrato 
da condição do imigrante nos EUA de Trump

João Paulo Barreto

Um dos grandes filmes da Mostra, distante de todo hype que as obras vencedoras em grandes festivais trazem, o romeno Limonada é daqueles pequenos diamantes a serem garimpados entre as badaladas sessões, mas que, uma vez descoberto, seu brilho tarda a abandonar o espectador.

Exato ao abordar a condição do imigrante em terras ianques durante o governo Trump, o filme cria um ritmo fascinante de tensão e afeto do espectador pela condição de sua protagonista, a romena Mara (vivida com uma mescla de aspereza e doçura por Mãlina Manovici). Mara casou-se com um americano e, agora, aguarda pela resolução do seu Green Card. No entanto, ao ser assediada e abusada sexualmente por um agente do setor de imigração, sua apreensão  aumenta por conta da chantagem que passa a sofrer.
Com um ritmo preciso em diálogos cuja exatidão hipnotiza o espectador diante daquele drama, a diretora e co-roteirista Ioana Uricaru cativa pela simplicidade e pela força do seu texto. O embate entre a protagonista e o predador sexual dentro de um carro é sublime, criando no público um fascínio por aquele drama, mas que não deixa de causar asco diante da postura doentia e miserável do perpetrador.

Mara e Drago: insegurança em uma constante busca por uma vida melhor

REFLEXOS DA ERA TRUMP

Sem saídas convenientes para as resoluções do drama pessoal de Mara, Limonada, em seu título a fazer uma referência a um dos símbolos culturais do bem-estar estadunidense, mas que também esbarrando na acidez e amargor que ela atravessa, torna-se um brilhante relato da experiência do estrangeiro na terra do tio Sam, que, mesmo seguindo trâmites legais, é humilhado e menosprezado.

 “Mesmo quem odeia esse país quer morar aqui”, explica um personagem. É justamente disso que Limonada trata. Uma condição doentia imposta por uma nação cujo chefe de estado é declaradamente xenofóbico e racista, e que seu modo de agir influencia negativamente diversas partes dessa pirâmide social. Observe, por exemplo, o personagem de Moji, o assediador que trabalha no departamento de imigração. Seu nome entrega uma origem estrangeira, sua história de vida entrega uma origem pobre. No entanto, o poder concedido por sua ascensão social denota sua verdadeira natureza.

Potente em sua mensagem de luta da sua protagonista feminina ao não colocá-la em momento algum como alguém que se vitimiza, mas que prefere lutar contra aqueles abusos, Limonada se torna um símbolo não somente de uma batalha feminina contra a submissão, mas a de pessoas em busca de dignidade.  

Tragam a Maconha

(Traigan la Hierba) Direção: Denny Brechner. Com Denny Brechner, Talma Friedler, Pepe Mujica.


42ª MOSTRA SP – Falso documentário Tragam a Maconha surpreende por inventividade e por ter Pepe Mujica no elenco

João Paulo Barreto

Dentre os filmes conhecidos com mock documentaries, diversos se destacam. O mais notório de todos, This is Spinal Tap, filme de 1984 dirigido por Rob Reiner, até hoje é um marco no começo desse estilo de comédia. Já nos anos 2000, Sacha Baron Cohen, com Borat e Bruno, ampliou esse leque de possibilidades, criando um embate (nem sempre saudável, friso) entre os participantes dos seus filmes. Com Tragam a Maconha, o diretor e roteirista uruguaio Denny Brechner alcança resultados semelhantes aos das pérolas citadas. Mas, em seu ritmo, proposta e modo de abordagem, arrisco dizer que ele se sai ainda melhor que seus predecessores nesse tipo de comédia.

Como o nome já diz, o filme aborda uma missão de levar cannabis ao Uruguai, uma vez que, após a legalização, o governo não conseguiu suprir o mercado com uma produção feita pelo exército. Donos de uma farmácia que almeja faturar vendendo a erva, Alfredo (vivido pelo próprio diretor) e sua mãe, Talma, oferecem brownies com maconha supostamente medicinal, mas que ainda é comprada ilegalmente. Após o sucesso inicial, são descobertos e o rapaz, preso.

A hilária participação de Pepe Mujica

A ideia de importar maconha de Denver, estado americano onde o consumo é legal, o leva a se unir em uma missão de trazer a droga dos Estados Unidos para o Uruguai, contando com a participação do presidente José “Pepe” Mujica (!!) que, no plano, usará sua visita oficial a Obama para fornecer o transporte de volta à América do Sul. Se apenas a participação do ex-presidente uruguaio já não fosse o maior símbolo da sagacidade dessa obra, o desenvolvimento de sua história com a ida de mãe e filho aos Estados Unidos já seria motivo suficiente para o espectador se deliciar.

Pegadinhas e improvisações

Na ida aos EUA, o rapaz, que se diz presidente da Câmara Uruguaia da Maconha Legal, se encontra com representantes de organizações reais em Denver, tudo se valendo do fato de virem do primeiro país do mundo a legalizar a produção. As situações surreais são precisas, principalmente ao se observar as interações e o modo como os americanos se comportam diante deles e do fascínio que causam por serem do Uruguai. Do mesmo modo, os encontros oficiais com diversos burocratas, como o embaixador uruguaio, rendem pérolas perfeitas.

Aliás, neste aspecto, Mujica demonstra sua sagacidade não somente como político, mas, também, como alguém capaz de rir das instituições políticas que soube manejar tão bem em seu mandato (“É preciso saber rir disso. Políticos não gostam que façam graças deles, mas rir é importante. Porém, temos que trabalhar, também”, explica “el jefe”), escreve um capítulo em sua biografia que o coloca em um lugar ainda mais de destaque como estadista em prol dos direitos humanos. Sua participação no papel de si mesmo é o grande destaque do filme, gerando a melhores piadas, como quando algumas longas pausas na conversa com Obama são justificadas como parte do plano na retirada da maconha do solo americano.

Trata-se de uma comédia que tem na ausência de pretensão sua real genialidade. Das jóias descobertas dentre tantos filmes da Mostra SP.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A Casa que Jack Construiu

(The House that Jack Built, Dinamarca, 2018) Direção: Lars von Trier. Com Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman.


Por João Paulo Barreto

42ª MOSTRA SP – Lars von Trier e seu  sadismo reflexivo

O que Lars von Trier propõe em A Casa que Jack Construiu não é algo fácil. Ao penetrar na mente do assassino vivido por Matt Dillon, o diretor, notório por abraçar polêmicas, mas não sem embasamento nas razões para levantá-las em seus filmes, cria uma profunda análise da mente doentia e perversa de um serial killer. Sim, o filme esbarra em um aspecto misógino, uma vez que as vitimas aleatórias que o personagem título escolhe no contar de sua história são todas mulheres em um estado de estupidez e de ingenuidade que incomodam. Mas, conhecendo as personagens fortes e femininas dos filmes anteriores do cineasta, não é de se espantar ao encontrar uma irônica e proposital inserção dessas fragilidades na construção dessas presenças.

Jack, em certo momento, é questionado acerca dessa sua exclusividade feminina, em que a possibilidade de uma retração sexual é inserida. Ao rechaçar tal fato, o mesmo afirma já ter matado homens. Porém, nenhuma dessas mortes é exibida no filme (as únicas são impedidas em seu clímax),  confirmando a ideia de uma provocação. Principalmente quando o lugar de vitima feminina é colocada na roda, diante de um argumento um tanto ridículo de que “a culpa é sempre masculina”. Impossível não pensar na recente leva de denúncias contra figurões em Hollywood quanto a acusações de assédio. Mas isso é von Trier a apenas provocando. A profundidade dos temas que seus filmes trazem  são bem mais atrativas, ressalto.
Riqueza visual e auto-avaliação


Na vestimenta a referenciar Dante, Matt Dillon se destaca como Jack

Muito parecido em sua estrutura com o anterior, Ninfomaníaca, ao penetrar diversos temas atrelados à condição psíquica de seu protagonista, o cineasta dinamarquês abrange um vasto leque de elementos culturais, dentre estes a arquitetura, afinal, essa é a profissão que Jack afirma possuir. Além disso, a rima temática e visual que a explicação acerca da construção dos telhados com o da tal casa que ele constrói no final fascina, principalmente ao ouvirmos o protagonista comparar a entrada da luz pelo telhado e os pontos cegos que a mesma não alcança como algo relacionado ao olhar divino. Sendo assim, desde o começo percebe-se algo mais profundo do que somente provocações misóginas em seu roteiro.

O título, além de uma referência à profissão de Jack, vem do poema homônimo escrito por W.W. Denslow, que, também, escreveu o conto da Chapeuzinho Vermelho, algo que von Trier faz questão de referenciar no último ato. Porém, distante de um ato simplório com a tal relação visual entre figurino e temática, o cineasta instiga o público ao inserir os conflitos psicológicos de Jack em sua derrocada, como uma visita guiada ao purgatório, onde, levado por Virgílio (Bruno Ganz), não por acaso personagem homônimo da obra de Dante Alighieri, nos arcos do purgatório. As recriações das imagens a mostrar, por exemplo, a Barca de Dante, enchem os olhos.

Sádico em sua proposta, mas justificável em seu resultado final, A Casa que Jack Construiu traz, também, uma espécie de auto-avaliação do próprio von Trier, quando, diante das diversas polêmicas que trouxe  com seus filmes no decorrer dos anos, resolve revisitá-los em uma condição de análise própria. Um cinema como auto-análise provocativa e necessária, mas sagaz na construção profunda de um personagem que fascina por suas camadas.

*Texto originalmente publicado em A Tarde, dia 24/11/2018




quinta-feira, 18 de outubro de 2018

42ª Mostra de Cinema de São Paulo



Filme sobre Bando de Teatro Olodum 
será exibido na Mostra SP

Mostra Internacional de Cinema de SP traz Ilha, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, e doc sobre os 25 anos da companhia de teatro baiana
Por João Paulo Barreto

Com uma maratona de exibições que inclui 336 filmes de vários países, dentre eles diversos premiados nos principais festivais do mundo, como o mexicano Roma, de Alfonso Cuáron (Leão de Ouro no Festival de Veneza); o cingapuriano Uma Terra Imaginada, de Siew Hua Yeo (Leopardo de Ouro no Festival de Locarno), além do romeno Não Me Toque, vencedor do Urso de Ouro, em Berlim,  a 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo  começa nessa quinta e segue até o dia 31 de outubro trazendo, também, um leque expressivo de filmes brasileiros, junto a diversas homenagens.

A Bahia se faz presente com duas obras. O documentário Bando, um filme de, longa dirigido por Lázaro Ramos e Thiago Gomes, e Ilha, novo filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa, cineastas responsáveis pelo premiado Café com Canela. Agraciado com o Candago de Melhor Roteiro no Festival de Brasília desse ano, Ilha também teve o seu protagonista, Aldri Anunciação, premiado com o Candango Melhor Ator no mesmo festival. Com os dois trabalhos participantes na Mostra SP, a Bahia demonstra uma força dentro do audiovisual que resiste, mesmo com a ausência de editais públicos voltados para produções, uma realidade que se espera ver mudar com a segunda gestão consecutiva que se inicia em 2019.

Cena do espetáculo Bença, do Bando de Teatro Olodum

Teatro como afirmação

Bando, um filme de, destrincha os vinte e cinco anos do Bando de Teatro Olodum através de uma série de entrevistas com os integrantes do grupo de atores e atrizes, que, paralelas às imagens de arquivo que o longa traz, consegue criar um documento da importante presença e, ainda mais válida, da resistência como força de expressão da companhia de teatro com origem no bairro do Pelourinho.  O Bando resiste com diversos artistas, sendo diretores, atores e atrizes, que permanecem na dramaturgia precisando conciliar aquele universo com a necessidade de outras fontes de renda. Nos depoimentos de pessoas como Jorge Washington e Luciana Souza, dois dos veteranos nomes de destaque do Bando, observa-se essa importância de manter-se naquele grupo como modo de criar uma identidade cultural. O co-diretor Thiago Gomes salienta essa luta, algo que foi captado nos depoimentos: “Nas conversas que eu e Lázaro tivemos na pré-produção e na produção do filme, tínhamos em mente essa abordagem do aspecto da luta pelas questões da negritude. Esse era um dos focos”, explica Thiago. Lázaro Ramos é enfático em dizer que o filme “é sobre resistência. É sobre processo criativo. É sobre como um grupo conseguiu sobreviver por 25 anos fazendo teatro em Salvador”, afirma.

Em certo momento do longa, é em uma fala de Jorge Washington que essa proposta do fazer teatro como um ato militante é colocada em evidência de modo concreto. É justamente neste ponto que se observa um dos muitos méritos da obra. “Na Bahia, em Salvador, não dá para ser só artista. Tem que ser militante,” diz Jorge Washington no depoimento para o filme. E o pilar do documentário de Gomes e Ramos é exposto ali. A ideia aqui não é a da glamorização ou da exibição dos bem sucedidos nomes oriundos daquele Bando de Teatro. Sim, é importante salientar as trajetórias de sucesso que muitos que passaram por ali alcançaram, mas, mais do que isso, o impacto que a trajetória daquele grupo de pessoas deixa no espectador que acaba de testemunhar sua história ultrapassa isso e se fixa em um outro patamar: o do filme de função social e política. Porque, longe de qualquer militância que este jornalista possa querer fazer aqui, a longa trajetória de vida de um grupo de teatro formado quase que cem por cento por pessoas negras, é de suma importância que se registre. E que se torne um exemplo de resistência diante de tempos macabros que parecem nos ameaçar.


* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 18/10/2018