segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Os Suspeitos

(Prisoners, EUA, 2013) Direção: Denis Villeneuve. Como Hugh Jackman, Jake Gyllenhaal, Paul Dano, Viola Davis, Maria Belo, Terrence Howard.



Por João Paulo Barreto

As proezas de Denis Villeneuve ao dirigir Prisoners começam desde a sutileza da escolha de seu título. Claro que essa escolha passou pelo crivo de seu roteirista, Aaron Guzikowski, mas, sem precisar entrar no mérito do crédito da escolha, o título original se destaca por não permitir que sua história caia em uma falsa (e fácil) separação maniqueísta de seus personagens. Exatamente por isso que sua versão nacional seja tão estúpida por querer reduzir um filme de tamanha complexidade a uma imbecil trama global de Silvio de Abreu.

Prisoners é uma obra que não pretende definir seus personagens em bons ou maus.  Sim, nesse universo de dor e claustrofobia, não há esse fácil reconhecimento. Todos são prisioneiros. As únicas vítimas nessa história de perda são as crianças. Sejam elas realmente infantis ou adultos que há muito tempo tiveram suas infâncias despedaçadas e hoje não conseguem viver com esse buraco em suas consciências. Na história criada por Guzikowski, não há uma definição fácil do que é bondade ou maldade. O que há é uma definição perfeita do que é o ser humano em suas ambiguidades.

A história do desaparecimento de duas crianças e a busca dos seus pais por qualquer rastro que elucide esse mistério se torna um excelente estudo do que é o Homem e como suas atitudes podem defini-lo como um escravo do lema “os fins justificam os meios”. E esse Homem é capaz de perder todo e qualquer traço de sua dita humanidade para reaver aquilo que é lhe é mais precioso. Quando ouvimos Keller (Hugh Jackman) afirmar que Alex (personagem atormentado de Paul Dano) perdeu seu direito a ser tratado como um ser humano, o que acontece é justamente a desistência de Keller para o seu próprio status como o qual. Mas este homem não desistirá muito fácil dele, mesmo que suas atitudes para recuperar sua filha mostrem justamente o contrário.

Jackman: Atuação brilhante no papel de um pai sem limites para encontrar a filha

Exibindo-o como uma pessoa extremamente racional e pragmática (“espere pelo melhor, prepare-se para o pior” é o seu mote), o filme apresenta Keller desde sua primeira cena como uma pessoa de extremos. Centrado em sua fé católica, a sua primeira fala no filme já apresenta uma oração religiosa durante um momento de morte, quando pai e filho se preparam para abater um cervo dentro de uma floresta congelada cujos troncos das árvores fazem uma perfeita alusão ao título do filme. E a forma como o diretor opta por mostrar o cervo abatido através do vidro condensado do carro e as crianças através de um mesmo enquadramento, só que de outro veículo, denota uma rima visual extremamente rica que coloca a todos como vitimas: o cervo morto por predadores para alimentar um jantar de ação de graças e as crianças sendo observadas por um outro possível predador.

Com um porão repleto de alimentos e baterias estocados, Keller é uma pessoa que gosta de manter tudo sob seu controle. E é justamente a perda disso que o faz tomar as atitudes dos próximos dias. Ele se atém ao último estágio de sua natureza bondosa e evita ao máximo machucar aquele que ele acredita ter lhe causado tamanha dor. Quando as lágrimas correm pelo seu rosto abatido e insone, percebemos ser mais do que verdadeira sua declaração para Alex quanto a sua não disposição a machucá-lo, mas, sim, uma necessidade extrema em sua atual posição.

É um filme de atmosfera pesada. A fotografia do mestre Roger Deakins torna aquela cidade chuvosa ainda mais fria. A claustrofobia dos personagens é refletida na pouca luz natural. Eles parecem viver como que escondidos do sol. Quando o detetive Loki (vivido por Jake Gyllenhaal de forma soturna e a beira de uma explosão) entra em cena, a luz fluorescente de um restaurante torna sua expressão dura e sua palidez ainda mais salientes. E o mesmo se repete em seus momentos na delegacia, quando tem que interrogar os suspeitos do sequestro e não se incomoda em usar sua presença física e tatuagens para intimidá-los fazendo-os dizer o que ele precisa ouvir. E falando em suas tatuagens, toda a construção de Gyllenhaal para Loki é de uma perfeição soberba. Desde seus tiques faciais até seu modo extremamente formal de se vestir que parece servir para esconder sua pele, passando por pistas de um passado problemático (“Eu vivi em um reformatório, padre. Não terei problema nenhum em machucá-lo”), toda essa construção nos faz imaginar quem é aquele homem quando não está fazendo valer seu título de detetive.

Gyllenhall: presença física para intimidar suspeitos

Não somente Gyllenhaal, mas Paul Dano merece um reconhecimento por sua atuação. Apresentando-se como um ser patético que oscila entre a pena e o desprezo de quem o observa, Dano consegue, com pouquíssimas falas e uma expressão continuamente perdida, construir um garoto que parece desejar sair daquela vida atormentada, mas que não pode. Sua expressão minimalista de alívio quando arguido se deseja mal a certa pessoa, mas censurada ao perceber-se que poderá sofrer sérias consequências por aquilo, denota perfeitamente bem o inferno vivido em sua vida.

E, finalmente, Hugh Jackman, que entrega um atormentado e amoroso pai em busca de seu maior tesouro. O momento em que ele precisa reconhecer peças de roupas classificadas como evidências e, em uma expiração, deixa escapar toda a dor que está sentindo ao perceber ter chegado tarde demais, denota um ator em total domínio de sua atuação. Essa cena, especificamente, me remeteu ao momento em que Marlon Brando, como Don Corleone, recebe a notícia da morte de Santino, seu primogênito. Como no clássico de Coppola, o personagem Keller Dover sabe que precisa manter-se pragmático, tanto que aquele é a única reação de dor e tristeza que permite ter perante o detetive que havia acusado de relapso. Logo após esse alívio, sua atitude é acusá-lo pelo ocorrido e voltar a sua família.

Prisoners é um filme que não busca redenção ao seu espectador. E exatamente por isso mereça uma atenção tão especial. É uma obra dolorosa que sufoca quem a assiste, mas que, ainda assim, ajuda a manter certa fé e dignidade na humanidade. Após Incêndios, longa anterior de Villeneuve, a recuperação mínima dessa fé é algo que se deve abraçar com toda força. 

domingo, 13 de outubro de 2013

Gravidade

(Gravity, USA, UK, 2013) Direção: Alfonso Cuarón. Com Sandra Bullock, George Clooney.



Por João Paulo Barreto

Alfonso Cuarón consegue uma proeza: em um filme enxuto (apenas 90 minutos), apenas uma personagem sozinha durante quase toda a projeção e ainda assim o co-roteirista e diretor consegue criá-la com uma profundidade dramática cuja dor de um passado trágico surge de modo natural e dolorosamente cativante.
    
Exato, não somente pelos efeitos visuais fantásticos, pelos planos sequenciais hipnóticos e pela trilha sonora sufocante de Steven Price; Gravidade cativa o espectador pela dor na história de vida da médica e astronauta de primeira viagem Ryan Stone (Bullock) e pelo modo como esses detalhes particulares da personagem são sutilmente inseridos em uma trama aparentemente simples, cujos contornos psicológicos, porém, fazem toda a diferença.

Solta à deriva no espaço após sua estação ser atingida por destroços de satélites na órbita terrestre, Stone precisa chegar a outra estação espacial sendo essa sua única forma de voltar a terra. Com apenas esse fiapo de história, um diretor qualquer faria um filme qualquer. Porém, Curón já havia dirigido Filhos da Esperança. Ou seja, havia algo ali que poderíamos confiar que geraria um resultado no mínimo curioso. O que veio, no entanto, foi algo espetacular.

Clooney e todo o seu modo cool Clooney de ser 
Sim, Gravidade é um espetáculo visual. Porém, não é um filme que se suporta somente nisso. Quando vemos, do alto do espaço sideral, a bota que forma a Itália em toda sua grandiosidade e reconhecimento, aquilo não é apenas uma forma do filme exibir sua competência plástica, mas, sim, uma moldura para uma história cuja profundidade vai muito além disso.

Nessa história, George Clooney interpreta, claro, George Clooney. No entanto, na pele do experiente astronauta Matt Kowalski, o ator traz uma confiança que o papel exige. Com sua presença cool e sorrisinho de canto de boca, traz um autoridade que se equilibra entre a necessidade de ter pulso firme quando necessário e a doçura e camaradagem de um profissional que sabe como utilizar suas dezenas de horas no espaço como algo a trazer conforto e segurança para seus colegas inexperientes nesse campo.

Uma das cenas chave do filme nesse sentido é a conversa confessional entre Stone e Kowalski. Visivelmente buscando acalmar a doutora no sentido de fazê-la respirar devagar e não esgotar seu oxigênio (“vinho, doc, não cerveja”), Matt pergunta, enquanto um country music toca na saída de som de seu traje, sobre o que ela estaria fazendo se estivesse em casa agora. Se há algum Sr. Stone lá embaixo olhando pra cima e sonhando com ela. Na crueza da resposta (“Eu tinha uma filha. Ela bateu a cabeça e morreu”) e no silêncio posterior, sem música e sem palavras, nota-se que o astronauta percebeu ter adentrado em um terreno um tanto áspero para se movimentar. Seu silêncio soa melhor que qualquer tentativa de conforto.

Bullock no momento mais marcante e dramático de sua atuação
E o roteiro de Cuarón (escrito em parceria com seu filho, Jonás) nos traz esse passado trágico como uma pista cuja belíssima e tocante recompensa aparecerá em uma das cenas chave do filme. Nessa cena, toda a esperança de Ryan parece se desvanecer, mas a lembrança de uma garotinha “com cabelos cheio de nós e que não gosta de escová-los” lhe traz força para não desistir. Mais do que um filme de plasticidade e efeitos perfeitos, Cuarón construiu um drama que se sustenta.

E, além do espetáculo visual que nos remete, obviamente, a Kubrick e Tarkovsky, o que mais chama atenção em gravidade é a atuação de Bullock, uma atriz que, conhecida por sua inegável limitação de talento, entrega uma atuação que merece aplausos por dramaticidade e competência. Talvez dessa vez o Oscar lhe seja realmente merecido.