terça-feira, 2 de junho de 2020

After Life


A vida 
como um sopro 


NETFLIX Em tempos de dolorosa reflexão acerca da morte, After Life, série de Ricky Gervais, chega à segunda temporada oferecendo, dentro do humor ácido, 
exata análise do luto e do (in)conformismo 

Por João Paulo Barreto

Lidar com a tristeza do luto é algo que não deve ser prejulgado. Diante da dor da perda, cada pessoa terá um comportamento único. Foi Stephen King que escreveu no seu livro, Saco de Ossos, lançado em 1998, que “o luto é como um convidado bêbado em sua casa. Alguém que sempre volta da porta para lhe dar um último abraço de despedida”. Essa despedida, porém, nunca de fato acontece. Eu acrescentaria que, muitas vezes, tal convidado bêbado acaba sendo a própria pessoa vitima daquele luto. Vitima daquela perda de alguém a quem amou tão intensamente que a dor que toma conta do lugar dentro do peito onde o(a) outro(a) esteve presente se torna a nova e confiável companhia. Torna-se um estado de constante repetição e esforço para prosseguir. E é muito dessa constatação que propõe os doze breves episódios de After Life.

Tal repetição, como bem citado na série ao referenciar o clássico Feitiço no Tempo, é o que define a vida de Tony (Ricky Gervais), jornalista da Gazeta de Tambury, cidade ficcional que recria as comuns aparências de localidades do interior da Inglaterra. Sendo o homem a exata definição de todas as características físicas e psicológicas descritas acima, a pancada em sua existência e origem do seu luto advém da perda de sua esposa, Lisa, que faleceu em decorrência de um câncer de mama. Sua vida pacata, escrevendo desde sempre para um jornal de distribuição gratuita e que cobre apenas trivialidades da pequena cidade, se justificava para além de qualquer inércia que a sua trajetória profissional poderia dar a impressão de possuir. Seu impulso de vida era unicamente dedicado ao seu casamento com Lisa. Sua felicidade dependia de seu convívio com ela, que, além de esposa, era também sua melhor amiga. E o que mais podemos desejar além disso? Alguém que se torne não somente seu parceiro por toda a vida, mas, também, seu cúmplice e melhor amigo(a)? E foi justamente isso que Tony perdeu quando Lisa sucumbiu ao câncer.

Tony (Gervais), seu pai senil e a enfermeira cuidadora

CONFORTÁVEL DOR

Apesar de soar niilista em alguns momentos, mas sempre sagaz em suas observações, seu personagem segue em uma relação de inconformismo diante da perda e de um conformismo perante o luto. Em determinada cena, Tony diz que a dor se torna um conforto. Uma sensação de normalidade. Quando ele se sente minimamente em um estado de suposta alegria momentânea (não confundir com felicidade, friso), ele percebe que aquele não é o seu eu natural. Voltar à dor é necessário para que, contraditoriamente, ele se sinta confortável. E nesta sua rotina de apenas seguir as horas do dia, seu único conforto está na companhia de sua adorável cadela de estimação e nos vídeos que gravou de suas brincadeiras e outros momentos que passou com Lisa. Neste aspecto, é válido observar a maneira orgânica como tais registros servem de flashbacks para o espectador conhecer Tony antes da amargura tomar conta de seu senso de humor e de sua existência. Ao invés de desenhar a narrativa diante do passado como uma quebra da realidade de Tony, Gervais, também roteirista e diretor, nos mantém dentro do mesmo estado temporal de seu protagonista, permitindo experimentar junto com ele aquelas pílulas de felicidade ao voltar ao passado que tanto lhe fez bem e que agora é seu único refúgio.

ANÁLISE DA HUMANIDADE

“Pessoas preferem ser uns merdas famosos do que não serem famosos de modo algum”, profere Tony ao sair de uma entrevista nonsense na qual pais vestem o filho bebê como um mini Hitler apenas para terem um pretexto para sair no jornal local como uma piada. Em uma das cenas que serve como maneira de Gervais explorar sua crítica ácida à sociedade fútil e escrava da necessidade de existir virtualmente, o roteirista aproveita para ilustrar impressões no que tangem a outros vários aspectos que resumem a humanidade no século XXI. Tais momentos de entrevistas, inclusive, servem desde pontos de alívio cômico para Gervais destilar tanto sua veia ácida às diversas situações que se apresentam como exemplos da estupidez humana. Além disso, também funcionam como espaço aos seus ótimos coadjuvantes, dentre eles o pacífico e hilário, Lenny (o comediante Tony Way, o bobo da corte em Game of Thrones), que aguenta as provocações de Tony sem esquentar em momento algum. 

Tony e Lisa (Kerry Godliman): vida antes da tempestade

Suas discussões no ambiente de trabalho, também, são oportunidade para o também diretor e roteirista da série inserir seu ponto de vista relacionado a religiões. Notoriamente ateu, Gervais transforma seu alter ego também em um ateísta, inserindo pontuais e pertinentes análises, por exemplo, sobre a ideia católica de que o deus da bíblia é o único existente, ignorando crenças que outras pessoas possam ter em Rá, Ganesha ou Zeus (“Da mesma forma que você não acredita em outros deuses, eu não acredito no seu”). Ou mesmo quando confrontado sobre a ideia (injustamente definida como niilista) de que sua não crença em reencarnações ou vida após a morte o levaria a tornar a sua própria vida desnecessária e passível de ser encerrada (“Você não interrompe um filme que está gostando apenas pela fato de saber que ele vai acabar. Então, porque eu deveria fazer o mesmo com a minha vida? Ela é preciosa justamente por se a única que eu tenho”). 

Tony e seus colegas de jornal: Sandy (Mandeep Dhillon) e e o hilário Lenny (Tony Way)

Nessas discussões sobre a sua personalidade a viver apenas no mundo material, mas que valoriza aquela única chance de existir, mesmo que brevemente, neste planeta, Tony flerta bastante com a ideia de suicídio, ponto que After Life consegue trabalhar de maneira delicada, sem descambar para um melodrama frágil e, também, sem banalizar tão séria questão. No seu flerte com a cuidadora de seu pai idoso e senil, Tony lhe fala que gosta daquela companhia por representar uma repetição do seu dia a dia, na citada referência a Feitiço do Tempo, clássico com Bill Murray. No seu mundo de eterno luto, ao menos aquela companhia lhe serve de aceno para um futuro diferente e de um possível recomeço. Com um personagem tão pessimista, saímos de After Life contraditoriamente renovados em um otimismo muito bem vindo.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde dia 03/06/2020







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