terça-feira, 30 de março de 2021

Liga da Justiça, de Zack Snyder

Foi feita Justiça!

CINEMA Zack Snyder retorna ao filme cuja direção precisou abandonar em 2017 e entrega obra de quatro horas com uma sensação de esmero que confunde-se com a superação do seu próprio luto
 
Por João Paulo Barreto

Cineastas retornarem às suas criações com intenções de corrigir falhas, exorcizar fantasmas internos, sanar comichões individualistas ou por pura e simples vaidade que um envelhecimento na indústria cinematográfica lhes traz, tornou-se algo bastante comum. Vide Ridley Scott que, à época,  sem a autoridade diante do corte final de Blade Runner (1982), retornou à obra anos depois, já consagrado, para inserir novos elementos. Ou George Lucas a alterar elementos em Star Wars (1977); Spielberg fazendo o mesmo em E.T. (1982) ou Coppola recriando sua obra mais insana com duas novas versões para Apocalypse Now, sua imersão infernal de 1979, (e, recentemente, com o terceiro Godfather, de 1990). Do mesmo modo, versões estendidas se tornaram um novo mercado de entretenimento doméstico quando uma mais completa (e ainda mais excelente) trilogia O Senhor do Anéis (2001-2003) foi lançada em blu-ray. Com Liga da Justiça (2017), a situação foi um pouco mais além dos exemplos e das situações citados. Mas, ainda assim, os mesmos cabem dentro de um processo reflexivo não somente como crítica da obra em sim, mas para entender os percalços de sua criação e necessidade de sua recriação pelo seu autor original.


Victor Stone: personagem do Cyborg melhor desenvolvido


Lançado em 2017, após uma série de problemas de âmbitos criativos e pessoais, a continuação imediata do tão esperado encontro visto em Batman v. Superman (2016) passou por diversas refilmagens e outros problemas de produção que tornaram seu orçamento quase inviável. Acrescente a isso a tragédia familiar sofrida pelo diretor Zack Snyder, cuja filha, Autumn, cometera suicídio enquanto o cineasta se dedicava às gravações do longa. Tal fato o levou a abandonar o projeto e não finalizá-lo. O posto foi, então, ocupado pelo diretor de Vingadores (2012), Joss  Whedon. O resultado, bem aquém do esperado, trouxe além de problemas visuais constrangedores (como a já notória face digitalizada de Henry Cavill); entraves narrativos em uma história mal desenvolvida, repleta de gags que tornavam seu humor rasteiro, bem como personagens cujos arcos dramáticos incompletos  incomodavam (no caso, o mais evidente era o do personagem de Victor Stone, o Cyborg vivido por Ray Fisher).

Durante os três anos seguintes, uma corrente virtual de fãs criou um movimento em prol do lançamento do filme inicialmente pensado por Snyder. Após o período de luto pela perda da filha, o cineasta se debruçou sobre o material captado e decidiu, com o aval da Warner Bros. e o suporte do Canal HBO, dar vazão a uma versão de quatro horas que, agora, estreia no canal por assinatura. E a impressão de um trabalho realmente bem feito não poderia ser melhor.


Outro personagem a ter sua história melhor desenvolvida é o Flash


LUTO RESPEITADO

Ecoando, talvez, a sua própria tragédia pessoal, Snyder traz na história que acompanha os imediatos acontecimentos da morte do Super-Homem, um tom de pesar que desenha visualmente, a partir de um grito de dor, todo o significado para a perda do maior herói daquele universo fantástico. Tal grito, e os resultados oriundos dele, dão inicio, em uma elipse surpreendente que aborda diversos núcleos narrativos da trama,  à história da busca de Bruce Wayne (Ben Affleck) pelos integrantes do super grupo de pretende criar. Neste ponto, é válido citar como o desenvolvimento mais parcimonioso do roteiro assinado por Chris Terrio (de Argo), diante de uma metragem mais alongada, permitiu ao diretor de 300 um aprofundar nas relações de cada herói. Assim, conseguimos perceber como a presença de Arthur Curry (Jason Momoa) no vilarejo da congelada Islândia tem contornos ao mesmo tempo mundanos (coleta do dinheiro de Bruce) e de teor sagrado perante sua aura heróica (cânticos proferidos pelas mulheres do lugar).

Do mesmo modo, todo citado arco centrado no personagem vivido por Ray Fisher, o Cyborg, aqui, tem sua trágica história desenhada de maneira mais detalhada, o que colabora para a profundidade de sua participação na trama. Tal trama, inclusive, apesar de manter o mesmo narrativamente frágil  vilão de CGI  da versão de 2017, tem sua brutalidade multiplicada em um contexto de invasão que, em um ritmo de ação empolgante, torna o longa assinado por Joss Whedon quase que em um trailer mal feito. Vide, por exemplo, toda cena  da chegada do Lobo da Estepe ao lar das Amazonas, cuja sequência de fuga e batalha já inicia a obra em um só fôlego. A mesma impressão encontramos na narração de um flashback contado pela personagem de Diana Prince (Gal Gadot), a Mulher Maravilha, acerca da primeira tentativa de invasão do notório vilão dos quadrinhos Darkseid, aqui, efetivamente inserido como uma possível (porém improvável) continuação da história. Toda a sequência é de uma beleza visual impar, que remete bem aos arcos desenhados por George Pérez nos clássicos quadrinhos da DC.

O clássico uniforme negro da saga O Retorno do Super-Homem 


VOLTA DOS MORTOS

E já que falamos da presença de um respeito ao luto pela morte do Super-Homem (desculpe a grafia antiquada do nome  - sou leitor dos anos 1990), Zack Snyder consegue criar na inevitável questão de trazer um herói à vida (algo já clichê nos quadrinhos) uma emotividade genuína ao abordar o luto de Lois Lane (Amy Adams) pela perda de seu amado Clark Kent. Assim, em todo o contexto experimental que o grupo de heróis coloca em prática na busca pelo ressuscitar de Kal-El, a conveniente presença da personagem da repórter do Planeta Diário no local perde a artificialidade e banalidade trazida na versão anterior (trazer as "big guns", como disse Batman) para uma questão voltada ao superar da perda e da negação de uma vida que a mulher buscava  esquecer.  E, convenhamos, ver o kryptoniano surgir com um rosto sem as constrangedoras inserções digitais do anterior já é um alivio. Estão lá, ainda, claro. Mas bem mais sutis.

Na percepção do longa como um trabalho construído com um apuro paciente diante de detalhes na evolução das peças vivas do roteiro, o espectador dessa nova versão trazida por Snyder (seja tal pessoa iniciada nos quadrinhos ou não) vai se sentir, finalmente, recompensado diante um filme cujo aspecto obrigatório da diversão casa de foma exata com o tom trágico que o Universo DC no cinema parece querer carregar sempre consigo. Na surpreendente sequência final, inclusive, um vislumbre muito empolgante de como tal abordagem utilizando a liberdade criativa e visual dos quadrinhos pode seguir em paralelo ao cinema.

Zack Snyder iniciou a projeção agradecendo pessoalmente pelo afinco dos espectadores em pedir pela existência de seu corte final para o filme. Optou pela divisão de sua trama em capítulos, como na leitura de um livro (ou como um passar gradativo do tempo em sua ação de superação da dor). Ao final, inseriu um epílogo e uma dedicatória a Autumn, a filha que perdera tão precocemente. A impressão é a de um trabalho que serviu ao diretor como exatamente o fechar de uma página dolorosa de sua vida. E ainda fez a alegria de muitos apreciadores do gênero.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 30/03/2021



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