sexta-feira, 4 de setembro de 2020

HQ Pandemonium


Horror 
sem Censura

ARTE SEQUENCIAL Dentro de uma proposta do terror e do fantástico calcada em publicações clássicas dentro dos quadrinhos de gênero,  HQ baiana Pandemonium está em financiamento coletivo

Por João Paulo Barreto

O mercado editorial dos quadrinhos independentes, distantes da realidade de gigantes como a editora Panini e sua extensa gama de edições que variam entre simples brochuras a luxuosos (e caros) encadernados, respira em um ritmo diferente de sobrevivência.Também há  exemplos de sucessos com editoras que surgiram como projetos independentes de amigos, leitores  e colecionadores (como é o caso da bem sucedida Pipoca&Nanquim), mas há diversos outros artistas do lápis e escritores entusiastas dessa representação cultural. Tais artistas seguem em uma luta constante no escalar dos infernos atrelados a conseguir produzir, imprimir e levar ao público leitor (e colecionador) de quadrinhos um material de qualidade dentro do nicho da literatura de gênero do terror e do fantástico.


Uma analogia (um tanto gratuita, verdade) a Alighieri nessa linha anterior apenas para que seja possível traçar uma ponte entre os escritos infernais de Dante e, assim, pode falar de John Milton e seu Paraíso Perdido. Lá, o palácio do rei das trevas era chamado na obra do século XV de Pandemonium. O nome, bastante apropriado, diga-se de passagem, batiza o quadrinho tocado por alguns autores daqui da Bahia. Pandemonium, coletânea de histórias que caminha entre o fantástico, o terror gore slasher, bem como o psicológico, com inserções de noir e ficção pós apocalíptica, está em financiamento coletivo pelo Catarse (catarse.me/pandemonium) e delineia um mercado editorial na Bahia e no Brasil que encontra um público cativo e ávido por histórias dentro do gênero abordado. 



Idealizado pelo coletivo Quadrinhos de Emergência e pelo grupo por trás da Mostra CINE HORROR, Pandemonium tem como um dos um dos roteiristas/desenhistas o artista gráfico Valmar Oliveira. Aqui, Valmar analisa a questão da barreira financeira para trazer a esse público obras criativas e impactantes dentro dessa proposta. "A parte financeira é um grande problema. Como uma publicação independente, temos o preço do papel e das gráficas que sempre varia. O financiamento coletivo é uma forma de pré-venda na qual  contamos com os interessados em adquirir o produto. Nós, assim,  só imprimimos a quantidade realmente necessária. Mas tem outro fator que é a divulgação para que as pessoas tenham conhecimento do projeto. Como existem vários quadrinhos sendo planejados e lançados, temos um grande trabalho para aparecermos e nos destacarmos. Sem a devida divulgação, não temos como alcançar nosso público alvo, e, por consequência, não teremos como alcançar o objetivo de lançar nossa publicação", explica Valmar.

O co-autor Valmar Oliveira

LINHAS EDITORIAIS

Outro aspecto a ser destacado dentro dessa dificuldade reside na resistência de algumas linhas editoriais em enxergar o potencial dos quadrinhos dentro da proposta do terror e do fantástico. Seja isso por medo de uma patrulha virtual, tão comum na era dos "cancelamentos", ou por não acreditarem que tais publicações possam gerar retorno em vendas. Roteirista presente em Pandemonium, Saul Mendez Filho destaca que, para algumas editoras, " é mais difícil apostar hoje em algo novo que possa ser linchado virtualmente do que em uma franquia estabelecida, ainda que a mesma seja considerada “incorreta” em diversos sentidos. Existem marcas e personalidades que sempre estarão livres de ataque, e outras não".

O co-autor Saul Mendez Filho
O co-autor traz um exemplo preciso ao abordar as diferentes mídias em análise de uma obra mundialmente conhecida como Lolita. " ainda hoje se assiste Lolita, filme de Kubrick, nos círculos cinéfilos, sem qualquer comentário que não seja elogioso. Ao mesmo tempo se cancela Nabokov e sua obra literária, ainda que o livro possua mais questionamento e culpa em seus milhares de caracteres em relação às aplaudidas linhas de roteiro que foram confeccionadas pelo próprio autor para o filme. Kubrick nunca será criticado, porque isso se tornou um padrão. Da mesma forma, criticar alguns nomes específicos – como Woody Allen - se torna um padrão, e a sensação de participar na internet de um grupo que concorda é sempre fantástica. Em grupo, se abate quem pensa diferente com muita maestria", compara Saul.



LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A análise em relação ao tipo de julgamento oriundo do público não familiarizado com a proposta dos quadrinho de gênero ganha contornos mais profundos quando alcança aspectos da liberdade de expressão. Valmar Oliveira levanta alguns dos questionamentos que tiveram por parte de editoras. "Tivemos criticas em relação ao nome, que diziam ser uma alusão à pandemia, além de criticas à nudez na capa e ao conteúdo de algumas historias. O nome da revista é referência ao clássico O Paraíso Perdido (1667), de John Milton. A nudez é algo clássico nas revistas de horror e ficção das épocas que nos inspiram, e parecia lógico usar a incrível arte do Hélcio Rogério, um ilustrador baiano premiado".


Valmar aprofunda essa questão no que se refere à responsabilidade atrelada a tal liberdade. "Em plena democracia, não podemos ter medo de nos expressar livremente. Liberdade é a base de toda democracia. A intolerância não pode vir por parte de quem deveria, justamente, defender a liberdade de pensamento e a pluralidade de ideias. Queremos, sim, abordar temas polêmicos com responsabilidade, ter liberdade de desenhar e escrever o que queremos. Não estamos fazendo apologias a violências de qualquer natureza.  Se alguém não gostar de nossa publicação, é só não ler", pontua.



A liberdade de expressão caminha de mãos dadas com a responsabilidade citada acima. Haverá um público consciente dessa proposta de literatura e interessado em consumir. Saul Mendez Filho complementa afirmando que "a  Pandemonium é uma questão de escolha para o leitor, assim como o é para uma editora. Mas em algum momento, em meio a toda essa onda de cancelamentos que tende a moldar a multiplicidade a uma só perspectiva do real, haverá de caber o auto-julgamento se seguiram o melhor caminho de fato. Chegarão até eles, também, julgamentos reversos completamente esdrúxulos e inesperados por parte dos consumidores. As editoras não estão livres disso. O melhor é sempre a sinceridade consigo mesmo e com seu próprio projeto. Ninguém é algum '...ista' só porque decidiram", finaliza.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 05/09/2020




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