sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Glen Keane

Ao Mestre 

com Carinho


NETFLIX Glen Keane, mestre lendário do cinema de animação, fala sobre A Caminho da Lua, filme realizado durante a quarentena, bem como sua trajetória nos desafios enfrentados ao deixar a Disney para trás

Por João Paulo Barreto

Glen Keane é dono de uma estrada impressionante dentro do cinema de animação. Presente como animador em obras marcantes dos estúdios Disney como Bernardo e Bianca, A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Pocahontas, Tarzan, entre outros, Keane construiu uma reputação de respeito dentro do gigantesco (e, agora, nocivo e monopolizador) castelo do Mickey. Porém, após décadas dentro desse mesmo castelo, a criatividade do ganhador do Oscar pelo curta Dear Basketball,  estava sendo aprisionada.  "Eu não pensava que a vida aconteceria assim. Mas houve um momento  na Disney em que eu percebi que precisava estar fora daquela zona de conforto. E lá havia se tornado muito confortável para mim. Como artista, eu adorava estar lá. Mas, eu sentia que havia algo a mais que eu não saberia como fazer se estivesse na Disney", explica o cineasta em entrevista coletiva através do Zoom.

Assim, Glen, há oito anos, após uma sólida carreira de décadas construída na Disney, resolveu se aventurar fora dessa zona de conforto. O resultado não poderia ter sido melhor.  "Lembro da minha esposa perguntando: 'Se você sair da Disney, para onde você vai? O que você vai fazer?' Eu disse: 'Eu não sei. Google?' Ela disse: 'Google? Eles não produzem animação.'  Ao que eu repliquei: 'Eu sei, mas não seria maravilhoso levar o que eu sei, o que eu aprendi, e aplicar a lugares que são inteiramente novos na animação?' E essa acabou sendo a primeira coisa que aconteceu quando recebi uma ligação do Google depois que sai da Disney", contextualiza o cineasta. Assim, Glen dirigiu o curta Duet, uma bela experiência técnica realizada em 360º de realidade virtual acerca do crescer em sonhos e alcances pessoais. Em seguida, uma parceria com o Ballet de Paris, através do Garnier Opera House, trouxe à vida Nephtali, curta que mistura live action com animação ao abordar com singeleza a criação da arte da dança através de uma bailarina. No ano seguinte, um telefonema do saudoso Kobe Bryant deu um novo norte à carreira de Mr. Keane.

Kobe e Glen durante a cerimônia do Oscar 2017

OSCAR  E SUPERAÇÃO

"'Kobe, você sabe que tens o pior jogador de basquete na Terra fazendo essa animação para você?' E ele disse que estava tudo bem, porque eu iria aprender tudo através dele", relembra Glen ao pensar no começo da relação frutífera que teria com a lenda do basquete, Kobe Bryant. A amizade gerou o belo relato Dear Basketball, uma carta de despedida do jogador ao esporte que lhe dera uma carreira. Desenhado a mão, o curta metragem de 2017 acabou, infelizmente, ganhando uma face de epitáfio para o atleta, que faleceu, junto a sua filha, em janeiro desse ano em um desastre de helicóptero. "Ele era meu amigo. Aquela foi uma perda imensurável", lamenta Glen Keane. A parceria e amizade gerou o primeiro Oscar ao cineasta e ao próprio jogador, que assinou o roteiro do curta.

O passo seguinte seria, claro, a direção de um longa metragem.  Com a Netflix começando a desenvolver um braço na produção de animações, o projeto A Caminho da Lua, uma aventura musical infantil que aborda a perda e a superação de uma garotinha chinesa cuja mãe morre de câncer, se apresentou como o maior desafio para a profícua carreira de Keane. O roteiro foi escrito por Audrey Wells (de O Sol sob Toscana e Duas Vidas, com Bruce Willis) que, infelizmente, não pôde ver o projeto pronto, pois veio a falecer em decorrência, também, de um câncer. Com um foco na história de Fei Fei, a jovem que, buscando superar a orfandade, constrói um foguete para a lua onde vive Chang-o, lendária personagem do folclore chinês, cujas histórias ouvia a mãe contar, A Caminho da Lua se tornou um legado de Audrey Wells em relação à sua própria filha. Glen explica: "Essa história é algo muito pessoal para Audrey Wells, que escreveu o filme, mas não pôde estar aqui para vê-lo pronto. Para nós, dar algo à sua filha não era uma meta teórica, mas, sim, real. Nós colocamos essa meta como algo vindo do coração. Nós priorizamos isso", pontua.

Glen Keane e a arte de A Caminho da Lua

O filme teve sua produção interrompida em março, quando, subitamente, a sede da Netflix foi fechada e todos tiveram que deixar o local por conta da pandemia. "Tínhamos importantes deadlines todas as sextas. Em uma quinta-feira, às 11h da manhã, minha produtora chegou e disse que a Netflix estava fechando o prédio e que nós tínhamos que ir embora naquele momento. Às 11h30min, todos tínhamos ido embora. E não voltamos àquele prédio desde então. Os copos de café devem ainda estar lá nas mesas. Os casacos ainda estão pendurados nas cadeiras", pontua Glen. A produção de A Caminho da Lua precisou se adaptar a um formato, até então, inédito, com os profissionais atuando de suas casas. " A única maneira pela qual nós fomos capazes de realizar esse filme dessa forma é pelo fato de acreditarmos que estávamos trabalhando em algo que era maior do que todos nós. Ninguém queria ser o elo fraco que poderia causar um fracasso na produção. Cada um foi para sua casa e, de alguma modo, nos próprios computadores, continuamos a trabalhar. Continuamos a construir o design de figurino; a criar a animação de cabelo, criar a gravação das músicas", relembra o cineasta.

RESPEITO ÀS CULTURAS

No foco de uma animação como A Caminho da Lua, cujo tema central é o folclore de um lugar tão rico culturalmente quanto a China, Glen Keane explica que sua aproximação com o país o ajudou a lidar da maneira ainda mais respeitosa em sua abordagem. "Eu fui para a China no ano passado com uma expectativa grande de encontrar pessoas que eram tão autênticas e reais quanto eu mesmo. Eu só queria conhecê-las. Quando cheguei lá, fui a uma escola onde havia crianças que me lembraram meus próprios netos. Eles correram em minha direção. Uma centena em minha volta. Eles pensaram que eu era Walt Disney (risos). Eles eram tão maravilhosos. Havia uma aula de animação para crianças da terceira série. Pequenas crianças de dez anos de idade aprendendo a fazer animação! Eu sentei na sala de aula deles e os assisti fingindo serem Kobe Bryant e fazendo cestas no basquete", sorri Glen durante a conversa.

As tradições familiares chinesas são focos da animação 

Em um período de tensões políticas envolvendo a China, Glen salienta seu foco no aspecto intelectual e cultural chinês. "Em certo momento, o governo chinês estava bem entusiasmado com nosso filme. Eles perguntaram se nós poderíamos encontrar um espaço na animação para citar o veículo espacial criado por eles. Pareceu, para nós, natural abraçar não somente a lenda, como também a cultura atual, como o trem de levitação magnética e o veículo lunar.E eu me recusei a escutar outra coisa a não ser as melhores intenções de uma nação que quer crescer, enriquecer suas tecnologias, suas histórias, o amor por suas famílias, por sua culinária, por sua arte e por sua música. Tudo isso foram as coisas que me inspiraram. Então, eu escolhi ignorar quaisquer fossem as situações políticas que estávamos atravessando, e focar nas coisas que eu sabia que realmente significavam muito para mim". 

Sabedoria real de um mestre.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 24/10/2020

 

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