domingo, 16 de junho de 2019

Dor e Glória


O reencontro intimista de Almodóvar


Em Dor e Glória, diretor espanhol acerta ao abordar o cinema 
como meio de cura dos tormentos físicos e mentais

Por João Paulo Barreto

Reminiscências e mergulhos concretos no passado. Momentos de reflexão oriundos da busca por um acalmar da dor física e mental, e o seu consequente encontro com a glória de uma vida passada a limpo. Um homem em busca de uma redenção intima. De um perdão a ser-lhe concedido por si mesmo pelos erros cometidos em sua trajetória. É no encontrar-se com as dores da velhice, com a fragilidade evidente de seu corpo, mas, também, com a força que ainda parece possuir em sua mente, que este homem alcança tal redenção. É disso que é feito Dor e Glória, o mais recente filme de Pedro Almodóvar. De um constatar preciso das próprias fraquezas e uma tentativa não somente de conviver com elas, mas uma busca pelo equilíbrio  que ainda pode existir naquele caminhar.

Em sua cena de abertura, seu protagonista, Salvador Mallo (Banderas, indefectível), um cineasta consagrado que se reencontra com uma de suas obras trinta anos depois de seu lançamento, está em uma piscina, silenciosa e calma. Na cicatriz em sua coluna vertebral, nota-se uma história de batalhas, sendo a mais recente, pela sua saúde. Através de seu próprio nome, uma pista da abordagem de Almodóvar perante aquele personagem aparentemente autobiográfico. É justamente a si mesmo que o homem busca salvar. Em suas lembranças da infância, quando dividia uma catacumba como lar junto a sua mãe e pai, e quando a acompanhava na cantoria do lavar dos lençóis em um lago, Salvador vai encontrando aquele conforto fugaz. Tão fugaz quanto o conforto que pensa encontrar na heroína, droga que alivia suas constantes dores nas costas, mas não colabora com sua apreensão mental.

Salvador e sua epifania física e mental

SOLIDÃO E REENCONTROS

Aquele desenhar calmo do homem em seu momento de introspecção mergulhado no silêncio da piscina define exatamente o modo como Salvador busca, quase que em vão, viver. Quase, pois, à medida que seu mergulhar com as dores do passado se descortina, mais fundo ele parece estagnar. Sua vida presente denota uma trajetória de solidão, algo que o texto de Almodóvar constrói de forma precisa. “Moro com meus quadros. São eles quem me fazem companhia”, explica Salvador. Um modo ermitão de viver que se percebe como consequência de suas dores. Paulatinamente, o homem segue em um reencontro com sua juventude. Algo que parece lhe trazer certo conforto. Na não superação da perda de sua mãe, um sinal da razão para se prender àqueles dias antigos, quando um talento para o canto o levara a fazer parte de um seminário, única opção para se estudar sendo ele oriundo de uma família pobre.

Neste momento, Almodóvar não deixa de se valer da observação crítica da educação católica, quando coloca o pequeno Salvador negando qualquer vocação para a batina, ou quando sua versão adulta explica a omissão do colégio em, por conta do seu talento musical, aprová-lo nas matérias básicas sem que ele apresentasse resultados. Os flashbacks de Salvador, ainda criança, aliás, cria uma bela analogia ao despertar, mesmo que fugaz, de sua sexualidade, quando desmaia por conta de uma visão atrelada a um sinal de insolação. Na sua versão adulta e repleta de feridas que sua frágil saúde lhe trouxe, um brincar com o ateísmo e fé diante do modo como as adversidades se apresentam. “Nos dias em que mais sofro, rezo a Deus. Nos que a dor é menor, sou ateu”.  É quando o diretor espanhol mais precisamente define o desespero de Salvador.

Nessa ligação com a sua infância, inclusive, é perceptível e precioso o modo como Almodóvar constrói a relação de seu protagonista com aquela fase de sua vida. Aqui, em sua notória paleta de cores, quando o vermelho se sobressai, é para justamente separar uma fase em que Salvador está ainda mais abalado. E o contrastar dessa paleta às estampas que usa nos flashbacks com sua mãe já idosa (vivida pela veterana Julieta Serrano, em um belo reencontro com Banderas) ou quando recebe um amigo de sua juventude em um momento que lhe injeta um ânimo preciso, dá ao espectador a dimensão de como a ligação com o passado é pungente para Salvador.

Lembranças e reminiscências de sua infância 

SUFOCAR OPRESSOR

Aos poucos, ele se desliga daquela fase. E em suas roupas que o levam exatamente ao período de sua infância, um reflexo dessa ligação. Quando já não tem mais nada a que se segurar e o encarar doloroso de sua atual condição de saúde física e mental lhe oprime, o modo como Salvador se apresenta é no pesado vermelho a revelar não uma paixão por qualquer coisa, uma das marcas do diretor, mas um desespero opressor. Um sufocar contínuo do homem diante dos dias que vão se prolongando à sua frente. E isso é algo que Almodóvar inverte de modo perspicaz nesse encarar intimista de uma trajetória de vida.

No uso do cinema como modo de reconstrução de suas memórias, Pedro Almodóvar, apesar de não trazer aqui uma assumida autobiografia, coloca, assim mesmo, sua labuta como forma de salvação. Fazer filmes, criar histórias, registrar trajetórias, é o que o leva para frente. Em Dor e Glória, uma oportunidade, também, para o realizador brincar com a pretensão autoral dentro dessa mesma labuta, quando, em um bate papo pós exibição de seu filme mais marcante, insere um momento hilário em torno da ausência do próprio diretor no debate após a sessão.

É justamente no cinema que Almodóvar se apóia e coloca seu alter ego na figura de Banderas como alguém que, da mesma forma como ele, utiliza a Sétima Arte como forma de salvação. E o brilhante momento em que a última cena revela a origem das lembranças de Salvador, é quando percebemos como a criação cinematográfica foi capaz de retirar aquele homem daquela espiral. Mas, isso, claro, até a próxima batalha surgir. No entanto, para tanto, haverá sempre a possibilidade de exorcizar-se através dos filmes.  

 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 16/06/2019




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