segunda-feira, 23 de agosto de 2021

40 anos sem Glauber Rocha

                                                    Causa Mortis: Brasil
                                 
TRIBUTO Quarenta anos após sua morte, a "doença chamada Brasil" que matou Glauber Rocha ainda continua a corroer feito câncer as entranhas de uma Terra em Transe que perdeu seu futuro


Por 
João Paulo Barreto

Glauber Rocha, o mais importante dos cineastas brasileiros, morreu cedo. Partiu com apenas 42 anos de idade, há quarenta anos, em 22 de agosto de 1981. Clinicamente, foi vitima de complicações decorrentes de sérios problemas pulmonares que se agravaram durante sua estadia em Portugal naquele mesmo período. Sua mãe, Dona Lúcia Rocha, porém, tinha uma opinião diferente sobre a causa da morte do rebento. “Meu filho não morreu de doença. Ninguém me convence. Ele não estava doente. Ele morreu de tristeza. Não tenho medo de publicar isso em jornal: meu filho morreu de Brasil", disse a matriarca em entrevista publicada na Folha de São Paulo há 25 anos, em 1996.

Dona Lúcia faleceu em 2014, aos 94 anos, lutando para manter preservado o legado do filho através do Tempo Glauber, espaço que ficava localizado no Rio de Janeiro e onde manteve o acervo do cineasta durante anos. Por falta de suporte financeiro, infelizmente foi fechado em 2017. Os riquíssimos objetos, como cartazes originais e croquis desenhados por Glauber e Rogério Duarte (que assina a arte do pôster de Deus e o Diabo na Terra do Sol), além de xilografias de Carybé e desenhos de Calazans Neto, bem como a biblioteca do cineasta baiano e documentos históricos, foram  transferidos para um galpão da Cinemateca Nacional, em São Paulo. O local, como bem sabemos, pegou fogo recentemente. Dona Lúcia não teve o desgosto de ver incendiado parte do acervo que custou a preservar por anos. Nós, no entanto, tivemos. Em resumo: a doença Brasil ainda se alastra, queimando História e futuro, mesmo tantos anos após levar embora o cineasta que dirigiu Terra em Transe.

Combalido: Glauber nos últimos anos

 

VIDA FUGAZ

Gênio precoce, teve uma história intensa  e breve. Nascido em Vitória da Conquista em 1939, migrou para Salvador nos anos 1950. Logo no começo de sua vida acadêmica na capital baiana, Glauber abandonou o curso de Direito para se dedicar ao Cinema. Após isso, atuou como crítico e jornalista, iniciando sua carreira como diretor aos vinte anos de idade com o curta O Pátio, filme com influências do movimento concretista brasileiro, bem como do cinema soviético e do expressionismo alemão. Aos 21 anos, lançou outro marco, Cruz na Praça, também um curta-metragemEm 1962, aos 23 anos, finaliza seu primeiro longa, Barravento, filme exibido na Europa e no Festival de Cinema de Nova York. Em 1963, dirige sua primeira obra-prima, Deus e o Diabo na Terra do Sol, que, quando lançado em 1964, o levou a concorrer à Palma de Ouro do festival de Cannes. Não que todas essas nomeações e láureas lhe importassem algo. Glauber estava interessado em um cinema não de premiações e glamour, mas como força de uma expressão política, de reflexão, e que viesse a traduzir um Brasil a fugir de ingerências imperialistas e das forças manipuladoras diante da fé de seu povo. Foi com essa força que Deus e o Diabo na Terra do Sol pavimentou a estrada do Cinema Novo.

 O conquistense não teve em vida, no entanto,  todo o reconhecimento que merecia. No começo da década de 1970, durante os anos de chumbo do autoritarismo da podre ditadura militar, deixou o Brasil, se exilando no Chile e, em seguida, em Cuba. Filma neste período O Leão de Sete Cabeças, rodado no Congo, além de Cabeças Cortadas, filmado em Barcelona, trabalho que ele mesmo chamou de “continuação metafórica de Terra em Transe”. Retornou ao país em 1976, quando filmou um documentário sobre Di Cavalcanti utilizando o velório do artista plástico como pano de fundo. Nesse período também iniciou a produção daquele que viria a ser seu último filme, Idade da Terra, de 1980. Já com sua saúde frágil, Glauber seguiu para Portugal em 1981 afirmando que aquele seria seu segundo e final exílio, o que confirmava algo que dissera na adolescência, quando chegou a escrever que morreria aos 24 anos, mesma idade da morte de Castro Alves. Viveu mais tempo, alcançando o número inverso de 42, quando foi vitima da causa mortis que dona Lúcia pontuou no seu desabafo pela perda do filho.

José Lewgoy, Glauce Rocha e Jardel Filho em cena de Terra em Transe

BRASIL TERRA EM TRANSE

Em sua filmografia, os momentos icônicos e simbolismos são diversos. Um deles está na intensidade da tempestade e das marés de Barravento, em uma representação da força da natureza a levar aquelas pessoas litorâneas adiante, desafiando os maus tratos da vida, tal qual faz Firmino, personagem de Antonio Pitanga no longa. Na rima certeira com um país que parece fadado a repetir os mesmo erros, um momento de Terra em Transe ecoa forte em uma revisita ao filme. É quando Paulo, jornalista e poeta interpretado por Jardel Filho, profere aquela que seria uma das mais marcantes linhas do clássico de Glauber, e que define plenamente o elo entre a fictícia Eldorado de 1967, e o triste e, infelizmente, real Brasil de 2021. Em uma mescla de fúria e desesperança, Paulo brada que “não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos, não é mais possível essa marcha de bandeiras com guerra e Cristo na mesma posição. Ah, assim não é mais possível a ingenuidade da fé, a impotência da fé”.

A fala é proferida pelo homem no momento em que, mesmo quase abatido por policiais, Paulo segue em sua fuga após perceber a fraqueza moral daquele que apoiara como representante, e a entender que seria apenas indo às armas que poderia mudar algo da injustiça social e miséria que assolavam Eldorado. “Não se muda a história com lágrimas”, afirma ao ser lembrado pela companheira e ativista Sara, vivida por Glauce Rocha, do sangue consequente de uma guerra. O Cristo e guerra na mesma posição de influência política da Eldorado fictícia se confundem com a perda da razão em nome de dogmas religiosos quando, em tempos atuais, se misturam Estado e crenças pentecostais de forma a manipular opiniões e massacrar minorias. Os resultados parecem se repetir mesmo com mais de meio século do lançamento de Terra em Transe.

Firmino (Antonio Pitanga) em cena de Barravento


O filme, que chegou a ser censurado no Brasil por ter sido considerado subversivo e desrespeitoso perante a igreja católica como instituição, teve trajetória marcante em festivais como o de Cannes, no qual Glauber foi agraciado com o troféu Luis Buñel e com o prêmio da crítica, além de ter sido exibido em Locarno e no festival de Havana. Obra pilar da filmografia mundial, chegou a ser citado por cineastas como Martin Scorsese, que o definiu como algo que nunca tinha visto igual em sua combinação de estilos. O ítalo-americano, além de diretor, é preservacionista e criou a The Film-Foundation, organização dedicada à preservação de diversas obras fílmicas oriundas de várias partes do mundo. “A humanidade e a paixão do filme eram muito poderosas. Eu fui dominado pela interpretação visual e paixão política, especialmente no fim de Terra em Transe. Junto com Barravento Antonio das Mortes, são filmes que não saem da minha cabeça e eu gosto de vê-los todo ano ou a cada dois anos”, afirmou Scorsese em entrevista acerca da experiência de se aprofundar na obra glauberiana, na qual se iniciou em uma mostra especial dedicada ao Cinema Novo no Museu de Arte Moderna de Nova York, ainda no final dos anos 1960.

Enquanto isso, no Brasil, tal poder cultural em sua forma física, mesmo com alertas constantes da necessidade de preservação, incendeia-se. Mas trata-se de um poder intenso. Seu detentor e criador foi vítima desse mesmo país que não busca preservá-lo, que deixa as chamas transformar em cinzas sua preciosidade.

Com a mesma tristeza que vitimou seu autor, a obra de Glauber persiste em um Brasil atual e dolorosamente terra em transe. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 24/08/2021




 

sábado, 21 de agosto de 2021

Caminhos da Memória


 High-tech NOIR

CINEMA Estreando no comando de longas, Lisa Joy, a criadora da soberba série Westworld, escreve e dirige o eficiente filme noir futurista Caminhos da Memória, estrelado por Hugh Jackman

Por João Paulo Barreto

Para os não iniciados neste tipo de cinema, existem notórias regras na identificação de um autêntico noir. São filmes geralmente fotografados em preto e branco (há exceções, claro), com ambientes pouco iluminados e de muitas sombras. Reza a lenda que, nos anos 1940, quando começaram a se popularizar, eram filmados assim no intuito de se economizar energia elétrica, pois o orçamento das obras era pequeno. Além disso, têm tramas complexas, por vezes confusas, ou até mesmo incompreensíveis. Há, também, personagens de motivações angustiadas e desesperançados, sendo que a traição é algo bem comum entre eles. Não confiar é um lembrete constante, principalmente nas mulheres lindas e fatais que habitam aquele universo. Juntamente com a narração em primeira pessoa, com voz over, e o protagonista guiando o espectador verbalmente pelo labirinto confuso de suas  próprias impressões, os filmes noir tendem a focar em uma ação mais psicológica do que física, deixando de lado sequências de tiroteios ou perseguições.

O professor e crítico de cinema paulistano, Sergio Rizzo, em texto escrito há vinte anos para a saudosa Revista SET, além de citar as regras lembradas acima, pontuou que a definição do filme noir como um gênero cinematográfico é motivo de controvérsia. Ao invés de chamá-lo de um tipo de "gênero" de cinema, "há quem prefira se referir a ele como uma espécie de abordagem que pode ser aplicada aos formatos tradicionais de qualquer gênero, do faroeste à ficção científica", escreveu o autor. Tal texto surge na memória duas décadas depois de lido ao perceber que é  justamente por essa estrada que segue Caminhos da Memória, filme de estreia de Lisa Joy, co-criadora, ao lado de Jonathan Nolan, da excelente série Westworld, que mistura ficção científica e faroeste.

Nick Bannister visita memória alheia na busca por respostas para um crime

SCI FI NOIR

De modo semelhante ao seu trabalho como showrunner no seriado de TV (cuja premissa baseia-se no homônimo filme dirigido por Michael Crichton na década de 1970), Lisa Joy leva para seu texto e direção em Caminhos da Memória uma proposta parecida, mas, aqui, ao invés do western, é o noir que se faz presente nessa mescla com a ficção científica. O gênero noir (sim, vamos chamá-lo desse modo) surge como ilustração da trama de um cenário futurista e pós-apocalíptico, cujos aspectos visuais são desdobramentos de nossa própria realidade atual, na qual a natureza vem nos concedendo claros alertas das consequências do aquecimento global.

Assim, em um futuro no qual o nível do mar inundou as cidades costeiras e as pessoas se tornaram reféns de um mundo onde apenas os mais abastados têm condições de viver em terras secas, a vida e os indivíduos se tornaram notívagos por conta do calor insuportável durante o dia. Neste ambiente rico de possibilidades para uma trama noir, Caminhos da Memória se desenvolve cumprindo de modo satisfatório várias das regras que abrem esse texto.


Nick e Mae em momento para guardar na memória

NARRATIVA MENTAL VS REAL

Reminiscência (título original e bem mais adequado à proposta de sua trama) traz Hugh Jackman como Nick Bannister, um veterano de guerra que ganha a vida como investigador mental particular (sim, creia, essa é a sua profissão), cuja aparelhagem tecnológica operada por ele e por sua assistente vivida por Thandiwe Newton concede a seus clientes a possibilidade de revisitar lembranças de maneira quase física, ao permitir que eles adentrem em suas próprias memórias e as revivam de modo real.

Em um futuro de desesperança, o filme traz uma reflexão bem adequada acerca da nostalgia ser um modo de buscar conforto em uma época de aflição e pessimismo, algo que reflete de modo pungente o que se passa no momento com muitas pessoas. É a partir da narração em voz over de Bannister (cujo grave poder vocal de Hugh Jackman torna ainda mais convincente no que se refere a proposta de filme noir trazida por Lisa Joy), que adentramos naquele ambiente de desesperança cuja aridez suplanta a umidade salina daquele futuro tenebroso.


Nick vicia-se na própria tecnologia em busca de respostas

Na trama noir de Caminhos da Memória,  Mae (Rebecca Ferguson) , a bela  por quem Nick se apaixona, é uma das suas cliente que o procura sob o simples pretexto de localizar em suas memórias recentes um molho de chaves (e que, claro, se demonstrará bem mais do que isso no quesito desconfiança - vide a lista que abre esse texto). Neste ponto, um destaque para a forma como a diretora Lisa Joy, junto ao montador Mark Yoshikawa (conhecido por seu trabalho com o cineasta Terrence Malick), utilizam de maneira  engenhosa o fluxo das lembranças de seus personagens de modo a mesclá-las à própria estrutura narrativa do seu filme.

Deste modo, somos apresentados gradativamente à trama em seu desenvolvimento natural, sendo que uma quebra nos levará a um patamar inicial dentro dessa mesma estrutura. Assim, a história que evolui a partir de flashbacks, cresce em um encontro entre o tempo narrativo real e o já vivido no passado pelos habitantes daquele mundo, algo que torna a visão das memórias transformadas em imagens pela tecnologia de Bannister um artifício quase metalinguístico em Caminhos da Memória. Quando um dos personagens adentra fisicamente no cenário de uma das lembranças plantadas propositalmente por outro, tal momento é algo que o espectador atento àquelas possibilidades observa com regozijo justamente por perceber o poder daquele jogo proposto por Lisa Joy.  Nada mal para um trabalho de estreia. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 22/08/2021 



 

 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Guilherme Arantes - A Desordem dos Templários


Trovador do Afeto

NOVO DISCO Com A Desordem dos Templários, Guilherme Arantes comemora 45 anos de carreiraatravés de letras que se equilibram na introspecção, no romance e na incomunicabilidade do mundo atual

Por João Paulo Barreto

Planeta Água, Raça de Heróis, Meu Mundo e Nada Mais, Amanhã, Um Dia Um Adeus, Coisas do Brasil, Brincar de Viver, Cheia de Charme, Deixa Chover, Perdidos na Selva e várias outras. A lista de canções pilares na estrada percorrida por Guilherme Arantes é grande. Autêntico hitmaker,  o cantor, compositor e multi-instrumentista, cujo destaque principal da trajetória está no piano, acaba de completar 68 anos de idade e 45 de carreira. Como marco, lançou A Desordem dos Templários, disco com influências do rock progressivo e letras que criam pontes entre o passado e o presente ao abordar, como em sua faixa título, a história da humanidade através de suas guerras reais e mentais. Mas antes de adentrar no material literário escrito por Guilherme Arantes neste mais recente trabalho, é necessário voltar um pouco no tempo e abordar a introspecção do seu autor em um período anterior ao do caótico 2020.

"A virada de 2019 para 2020 foi marcada por uma angústia estranha", relembra Guilherme . "Queria dar um rumo para a minha carreira. Porque eu vinha me sentindo progressivamente irrelevante. A gente conquista um lugar na música, no respeito das pessoas, fica famoso, faz os shows, mas não é bem isso. Existe um algo mais que é a mente pensante. A mente fabricando coisas e tendo repercussão", reflete o cantor. Tal angústia acabou por nortear os passos seguintes do artista em suas leituras e pesquisas, dentre essas, um aprofundamento em diversas biografias de nomes pilares da música brasileira. Morando desde 2019 na pequena cidade de Ávila, na Espanha, a ideia era passar apenas alguns meses por lá e retornar ao Brasil. Quando a pandemia teve início, em março do ano passado, esse plano mudou. Sua permanência no país europeu tornou-se indefinida. Junto apenas a sua esposa, Márcia Gonzalez (baiana, mas de família oriunda da Espanha), Guilherme acabou por mergulhar na literatura e nessa contemplação de uma história milenar oriunda do velho mundo.

O músico na Espanha, país onde reside no momento

Essa procura teve início, entretanto,  um pouco antes. Mais precisamente no disco de 2017, Flores & Cores, cuja faixa Semente da Maré já abordava um pouco dessa busca por outro lugar para viver. "Um outro lugar que era uma coisa que fazia com que eu me sentisse meio como um refugiado no mundo, nessas viagens ao longo desses anos. E foi se aprofundando um vínculo, um interesse, um fascínio por essa história secular. E isso é uma coisa que nos falta. Nós, brasileiros, temos um país bem mais jovem. Bem mais, digamos, superficial em termos históricos. E aqui foi o lugar que despertou coisas recônditas na minha música, no meu modo de olhar o mundo. A Espanha virou, então, esse fascínio", contextualiza o músico.

TEMPLÁRIOS

Em sua faixa título, o novo disco tem perceptível essa proposta de visitar a História secular a partir de uma balança entre passado e presente. Ou, como a própria letra diz, um "pêndulo imerso em escuridão que balança entre paredes da memória". A Desordem dos Templários caminha pelo território de uma ópera rock, unindo de modo contagiante estilos musicais que crescem, passando , inclusive, por uma veia nordestina. Junto com a letra, esse levante visita diversas reflexões do mundo, sua evolução e involução. "É uma alegoria que, ao mesmo tempo, é uma utopia. A figura do templário é uma figura utópica, quixotesca. É uma figura nobre nos seus propósitos iniciais, mas é uma figura anacrônica da busca através da guerra, de um corretivo para algo que está fora do normal" , explica Guilherme ao descrever o personagem de sua escrita.

Trecho do clipe da cançaão Kyrie

Tal alegoria, no aspecto histórico de sua presença, tem na letra de Arantes uma forte reflexão sobre essa nossa distopia atual. "O que me interessa (é) a angústia que essa música traz. Por exemplo. 'As crianças com receio de crescer'; 'contaminar o céu da cápsula de um tempo sem rancor'; 'cada dia é uma batalha desigual em nome de uma paz e tudo que se entende por normal'. É a busca através da guerra para se conquistar o amor e a paz. O que eu tentei levantar, e que é mais importante, é a gênese da distopia. Quer dizer, por causa desse colapso da linguagem,  você partir para a guerra em nome da ordem, da paz e do amor. É estranho um poder militar tentando impor uma fé, uma fé cristã à época", pontua o músico.

ASPECTOS PESSOAIS

Sendo um disco gravado durante um período de confinamento, além de coincidir com uma fase de convalescença do músico, que enfrentou uma braquialgia que o deixou de cama por um tempo, é natural que uma vertente mais intima reverbere por suas composições. Uma das faixa, inclusive, bate pesado por refletir a perda de sua própria mãe, dona Hebe, que faleceu em 2020, e de quem o músico não pôde se despedir pessoalmente. Ao falar sobre o fato, Guilherme Arantes pede desculpas por se deixar levar pela emoção ao não impedir as lágrimas que surgem quando explica o processo de composição de Estrela-Mãe." Eu tive poucas oportunidades de zerar o placar, de zerar a minha relação com a minha mãe", explica o compositor. "Nas últimas décadas, fiz muita força para estar junto a ela. Meu pai faleceu em 2003. De lá pra cá, eu ia direto à São Paulo. Convidava-a para almoçar, para jantar. E ela batia papo comigo. A gente zerou muito a nossa relação", relembra Guilherme.

A arte completa da capa do disco

Estrela-Mãe, para o ouvinte, remete à reflexão de uma relação mal resolvida com os próprios pais. É o meu caso. Pensar no aspecto de entrega pessoal do músico dentro desse processo de composição é algo admirável, principalmente por ouvi-lo dizer que sua mãe escutou aquela carta de despedida já em seu leito de morte. "A letra é um arrependimento no último minuto do segundo tempo da prorrogação. Mas, ali, a hora já tarda e a noite já veio. Já estou no anoitecer. Já sou um cara de idade. E aí eu venho pedir perdão. Foi uma coisa lancinante que a minha mãe ouviu no leito de morte. Desceu uma lágrima dos olhos dela. Mas ela sorriu, também", sorri Guilherme ao contar.

PROGROCK

Em um das faixas, a instrumental Kyrie, o Guilherme Arantes de sessenta e poucos remete ao rapaz de vinte e poucos, ainda nos anos 1970, influenciado pelo Rock Progressivo de nomes como Yes, Emerson, Lake  & Palmer e Vangelis.  "O ProgRock foi muito importante na minha mocidade. Foi quando se convergiram conceitos não só da psicodelia, do uso de substâncias de conexão, de substâncias transformadoras de percepção. Essa época na minha vida, que foram os anos 1970, o progressivo era uma coisa que era inacreditavelmente bela", reflete Guilherme, e crava, ao pensar em toda a sua trajetória de quase meio século: "Não sei se eu vou longe demais com minhas pretensões. Eu sou apenas um bardo. Sou apenas um menestrel, um trovador do afeto. É assim que eu me defino".   


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 12/08/2021






domingo, 8 de agosto de 2021

Doutor Gama



Direito à Vida

ESTREIA Doutor Gama, do cineasta Jeferson De, leva às telas a inspiradora história do baiano Luiz Gama, vendido como escravo quando criança, mas que se tornaria o exímio advogado que libertou mais de 500 pessoas

Por João Paulo Barreto

Patrono da abolição da escravidão no Brasil, o advogado Luiz Gama não viveu para ver a tal Lei Áurea ser promulgada. Morreu aos 52, em 1882, seis anos antes que uma princesa branca assinasse a carta que confirmaria o Brasil como o sendo um dos últimos países a tornar ilegal o tráfico de pessoas negras. Gama, porém, percebeu desde muito cedo o engodo que aquilo pareceria quando, finalmente, chegasse o tal momento no qual os escravos se confirmariam como excluídos social e economicamente mesmo após não mais possuírem donos.

Autodidata no estudo das leis, o baiano Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi vendido aos 10 anos pelo pai, um fidalgo português, no intuito de sanar dívidas que possuía. Sua mãe, Luiza Mahin (Isabél Zuaa), uma escrava liberta, perdera, assim, seu filho. Levado da Bahia para São Paulo, Gama foi alfabetizado aos 17 anos. Depois, se tornou assistente de Furtado Mendonça, que atuava como chefe de polícia e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Estudioso, Gama viria a se destacar como o bacharel responsável pela libertação, nos tribunais, de mais de 500 escravizados.

A criança Luiz é apresentada a uma maturidade forçada

O longa em cartaz, Doutor Gama, filme de Jeferson De (diretor do marcante Bróder), conta essa história a partir das três fases da vida do advogado:  sua traumática infância (vivida pelo ator mirim Pedro Guilherme) com a separação precoce do afeto da mãe e traição do pai; a adolescência  descobridora e definidora (na qual é vivido por Angelo Fernandes)  de uma trajetória de vida;  e a fase adulta (com a interpretação de César Mello), já legislando em prol da libertação de pessoas escravizadas. É com o foco nessa fase que o filme mais se destaca, trazendo um drama de tribunal no qual Gama defende José (Sidney Santiago), um escravo acusado de matar seu senhor. O branco em questão torturava e estuprava a esposa do réu. Priorizando a vida da mulher, José vinga-se do homem por tais monstruosidades cometidas.

SÍMBOLOS

Na sua estrutura dividida em três fases, cada uma focada em um período da vida de Luiz Gama, o filme de Jeferson De encontra ecos em uma obra favorita na cinefilia do diretor e que, também, traz reflexões precisas no que se refere à identidade de cada pessoa e em como sua trajetória de vida pesará em sua existência. "Lembro que a gente estava discutindo essa questão de divisão do roteiro e Cris (Arenas, produtora) veio com um argumento para mim que era quase um golpe baixo", brinca Jeferson entre sorrisos. "Ela lembrou do Moonlight, que é o filme da minha vida. Um filme que, também, é dividido em três trechos. Virou uma grande referência", explica o diretor que, também, é responsável pela montagem do trabalho.

 Outro símbolo marcante presente em Doutor Gama está na citada questão da criança sendo vendida como mercadoria pelo próprio pai, ponto que surge de modo a traumatizar o personagem, e gera, no já advogado Luiz Gama, uma especial relação afetiva com o seu próprio filho. A perda brusca de sua infância; o crescimento como escravo; a alfabetização e o gosto pleno pela leitura e estudo das leis; o momento em que prova ter nascido livre e, ao deixar a casa onde serviu a brancos, recebe um par de sapatos.

O simbolismo de um par de sapatos no momento de sua liberdade

 A sucessão de acontecimentos dentro da vida de Gama serve como uma construção de sua estatura. O simbolismo presente no ato de receber aquele par de sapatos no momento em que percebe-se livre reverbera. Jeferson De contextualiza de forma exata: "A criança negra vendida pelo próprio pai. Isso era algo que precisava estar no filme e que era algo que marcaria a vida dele inteira. É o que faz dele esse advogado que o César (Mello) nos trouxe brilhantemente. Essa conquista da liberdade toda potencializada no sapato. O sapato para o homem negro lá atrás e o sapato para o homem negro hoje em dia. Não é à toa que a juventude negra ama tênis. Isso tem raízes profundas na nossa história", pontua o cineasta.

HERÓI (QUASE) DESCONHECIDO

Jeferson De relembra que teve acesso à primeira versão do roteiro, escrito por Luiz Antonio, há sete anos. "Foi  em 2014 que a li. À medida que fui lendo, logo me chamou a atenção a trajetória desse homem. Eu pensei comigo: 'essa é a história que eu gostaria de contar.' Era a trajetória de um homem com uma história muito parecida com a de um herói. Logo veio na minha cabeça essa questão: 'ninguém no cinema brasileiro tinha feito um filme sobre ele?'  Tantos filmes sobre Tiradentes, até filmes sobre Independência ou Morte. E sobre Luiz Gama ninguém tinha se debruçado", pontua Jeferson.

Doutor Gama chega aos cinemas brasileiros justamente quando a figura do advogado abolicionista está mais em evidência, após a USP conceder-lhe o título de Doutor Honoris Causa. A exemplo do que frisou o cineasta Jeferson De acerca da ausência de um maior destaque dado pela sétima arte à história de Luiz Gama, essa reflexão sobre o apagamento da sua trajetória também alcança níveis profundos de análise na sociedade brasileira como um todo.

Pleno em seu domínio profissional no exercício do Direito

Quando queimar estátuas gigantes de assassinos, estupradores e traficantes de escravos como Borba Gato gera toda uma comoção em elitistas e hipócritas, é inevitável não refletir sobre como a figura humanista de Gama, que possui um único busto em São Paulo, e nomeia uma rua no bairro da Capelinha, em Salvador, é desvalorizada e desconhecida por boa parte dos brasileiros. Nesse novo destaque midiático que o jurista recebe, já é notória a falta de caráter de políticos de uma direita cínica na tentativa de cooptar sua trajetória dentro de um falso viés da meritocracia, vendendo a imagem de Gama como a de um liberal, quando a História comprova sua atuação como defensor dos direitos humanos e contra o racismo estrutural.

Fica o alerta para que a mensagem humanista de luta contra o racismo estrutural se multiplique nesse pessimista Brasil de um distópico século XXI.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/08/2021