quarta-feira, 8 de maio de 2019

Cemitério Maldito


A banalidade do luto no novo Cemitério Maldito  



Carente de construção dramática em sua premissa de mesclar dor, horror e loucura, 
versão 2019 para clássico de Stephen King decepciona

Por João Paulo Barreto

Em 1983, o escritor Stephen King lançou o livro Pet Sematary, um romance de terror que se revelou em um brutal estudo acerca do luto e suas consequências no ser humano. Brutal tanto em aspectos emocionais quanto físicos. Ao se valer de uma sufocante atmosfera do horror, King criou uma obra que aborda o modo como a dor da perda pode levar ao frenesi da loucura. Seus personagens caminhavam por esse limiar que o autor ilustrou de modo perfeito em uma análise que levava o leitor através de um universo no qual o macabro andava de mãos dadas com a fé religiosa. Com suas citações que vão do evangelho cristão a Ramones, banda de punk rock que, inclusive, viria a homenageá-lo, o livro do escritor estadunidense natural do Maine, estado que sempre serviu como local geográfico para suas histórias, desenhou uma perfeita análise do modo como perder um ente querido pode ser um fato a alterar existências de forma definitiva.

Seis anos depois, em 1989, com um roteiro escrito pelo próprio Stephen King, a diretora Mary Lambert conseguiu alcançar uma poderosa adaptação que priorizou a característica sanguinolenta, marca slasher comum a diversos filmes do estilo, além de contar com eficientes atores para os papéis principais. Tais aspectos tornaram a versão cinematográfica Cemitério Maldito um marco exemplar em sua ambientação soturna na recriação tanto do cemitério de animais quanto o indígena. Apesar dos sustos fáceis que envelheceram tão mal (rever o filme atualmente incomoda um pouco), a obra vista hoje ainda consegue ser impecável em sua montagem (a cena do atropelamento é um primor) e nos toques de humor tragicômico representado pela figura fantasmagórica de Victor Pascow. Lembrando desses aspectos no original de Lambert, além de seu final desolador em sua última e macabra cena, revisitar a mesma história na sua nova adaptação de 2019, desanima. Obviamente, não é prioritário se valer de comparações para avaliar a versão século XXI para a trama, mas, mesmo para o espectador não familiarizado com as fontes originais do filme, torna-se perceptível a fragilidade e ausência de personalidade no longa estrelado por Jason Clarke e John Lithgow. 

O médico Louis Creed encontra o sobrenatural que desafia sua não crença

MUDANÇAS SEM IMPACTO

Primeiramente, convém deixar claro que as mudanças no material original não se justificam em seu apelo dramático. Na premissa de se utilizar a infância como objeto de terror, a obra até acerta em seu começo, quando vemos um grupo de crianças usando máscaras de animais durante o enterro de um bicho de estimação. Ali, a atmosfera de terror é palpável justamente por inserir uma inocência simbólica em um momento de dor. Uma pena que dure pouco. Logo, percebemos a escolha de mudar o protagonismo de um de seus personagens centrais, o bebê Gage Creed, dando, assim, um destaque maior para a presença angelical e inocente de Ellie, a irmã mais velha do garotinho atropelado por um caminhão na obra literária, definitivamente uma decisão não acertada. Na verdade, torna-se algo que denota a preguiça dos diretores em não quererem trabalhar a atuação de uma criança menor.

Além disso, é perceptível que a mudança acontece para se aproveitar do filão de filmes de terror que têm na presença infantil e feminina (geralmente com o rosto encoberto por longos cabelos) uma muleta na pretensão de se causar medo, algo que cai no lugar comum e clichê sem qualquer impacto como forma de assustar. E, aqui, justamente pela interação forçada entre mortos e vivos, algo que retira toda a simbologia macabra que o livro de King trazia, esse aspecto de mistério no horror se perde. Uma vez que, em sua trama original, a ideia de trazer de volta à vida cadáveres enterrados em um cemitério indígena já era suficiente para se esperar que tais pessoas não voltariam racionais, mas, sim, bestiais (algo muito bem aproveitado na adaptação de trinta anos atrás), o roteiro dessa nova versão descarta de maneira precipitada um aspecto central na história.

Filme inicia bem em sua ambientação, mas se perde totalmente em seguida

VERSÃO OPACA

Junto a isso, o não aproveitamento da presença do personagem Victor Pascow, aqui relegado a apenas uma breve aparição fantasmagórica descartável tanto como figura a acrescentar algo que leve o roteiro adiante, como no aspecto aterrorizante que seu corpo destruído em um atropelamento poderia trazer a um, digamos, “filme de terror”, resume bem a fragilidade de sua construção. Simbolizar suas aparições com luzes a piscar também não é algo que prime pela originalidade em sua ambientação, convém colocar.

Ao final, a percepção do espectador atento é de que essa nova versão de Cemitério Maldito carece de humanidade e entendimento do que é a dor da perda, algo brilhantemente alcançado pelo original. Talvez por não conseguir transmitir essa dor através de seu elenco, o filme de 2019 acaba sendo uma versão fria e opaca de uma história cujo potencial é palpável. Em sua não alcançada ideia de transformar luto em insanidade, o longa se perde em uma plasticidade que traria resultados bem mais eficientes se a obra se rendesse ao horror que sua proposta apenas pincela. Às vezes, a morte é melhor. A frase símbolo do livro que ilustra as duas versões ganha outra conotação ao deixar o cinema no final da sessão atual.


* Crítica originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 09/05/2019

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