segunda-feira, 22 de abril de 2019

Marcia Haydée - Uma Vida pela Dança


Genialidade de uma vida dedicada ao Balé


Documentário esmiúça trajetória de Márcia Haydée, 
brasileira que marcou a história do balé clássico


Por João Paulo Barreto

A trajetória de Márcia Haydée, primeira bailarina do Balé de Stuttgart, na Alemanha, durante os anos 1960, impressiona. A importância de sua figura para a dança mundial é colocada em merecido destaque no documentário Marcia Haydée – Uma Vida Pela Dança. Idealizado por sua irmã Mônica Athayde e dirigido por Daniela Kallman, o documentário resgata a história da única bailarina brasileira a ser reverenciada nos mais importantes teatros do mundo. Entre eles, estão o Bolshoi (Moscou); Opera (Paris); Covent Garden (Londres); Staatsoper (Berlin); Bunka Kaikan (Tóquio); além do Metropolitan Opera House (Nova Iorque); Lincoln Center (Washington); Colon Buenos Aires) e Teatro Municipal de Santiago, no Chile. No Brasil, Theatro Municipal do Rio de Janeiro e Teatro Municipal de São Paulo. Foi aclamada por sua grandeza nas interpretações em cada papel que lhe era oferecido.

O filme opta de maneira acertada em equilibrar a apresentação da vida da bailarina através do olhar e palavras dela mesma com o das pessoas que conviveram com ela em sua trajetória. Tal opção, mesmo sem fugir da estrutura convencional de entrevistas, concede ritmo ao documentário devido à opção de intercalar as imagens da rotina de Haydée e das suas marcantes apresentações com a sua preparação durante os ensaios, bem como as leituras das cartas que a jovem enviava para sua mãe. Permite ao espectador observar, assim, o esforço contínuo da bailarina no galgar da perfeição que se vê nos palcos, mas sem deixar de trazer um perfil sensível e deslumbrado de uma jovem que alcançava precocemente essa mesma perfeição citada.

Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, Marcia Haydée começou as aulas de balé aos 3 anos. Aos 12 já falava em ser a melhor bailarina do mundo. Aos 16 se mudou para Londres para estudar na Royal Ballet School. Lá conheceu o coreógrafo John Cranko, diretor do Stuttgart Ballet, na Alemanha, e se tornou sua discípula.

Através de um perspicaz encadeamento de imagens de arquivo que a montagem de Maria Altberg traz, o público é apresentado ao desenvolver técnico de Haydée de forma a penetrar em sua labuta e a conhecer o modo como ela e o seu parceiro coreógrafo, John Cranko, transformaram preparação e experimentação em movimentos definitivos na dança.

Márcia em cena com Richard Cragun (Coreografia de John Cranko)

ANJO PROTETOR

“É o chão, os sapatos ou você? É você”, responde a si mesmo John Cranko em sua descontração ao avaliar o poder dos passos de Márcia, no balé Giselle, lhe dando a autoconfiança necessária. E, no citado artifício de sua montagem, o filme acerta ao criar para o espectador o ritmo perfeito da narrativa no encadear imediato das cenas de ensaios com a apresentação que aconteceu em 1966, algo que descreve bem o esforço desprendido pela jovem.

 “A simplicidade da técnica junto com a liberdade artística, junto com a alma imoral. Ela é a pura transgressão. Como pode uma pessoa do mundo clássico ser tão transgressora?”, pergunta a coreógrafa Deborah Colker ao se referir a Márcia. Sua pergunta também reverbera no espectador. Sua transgressão ao colocar-se em tamanho destaque dentro da companhia de Stuttgart, quando apenas Cranko, outro que não temia experimentações, a queria como sendo a primeira bailarina, encanta. E, mesmo aqueles não familiarizados com a sua trajetória ou que mesmo não detêm conhecimentos específicos do balé clássico, se impressionam com o domínio de sua técnica. Sem contar o carisma da mulher. Sua leveza de ação, beleza e, ao mesmo tempo, olhar concentrado nos movimentos cujas orientações recebe de Cranko, encantam através das imagens de arquivo que o filme traz. Imagens estas que denotam um extenuante trabalho de pesquisa e planejamento da produção no ilustrar daquela trajetória.

A primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Ana Botafogo, é precisa ao definir a relação entre Márcia e Cranko, quando coloca aquele encontro como algo divino. Com pouco mais de vinte anos de idade, Márcia se tornara a primeira bailarina do balé de Stuttgart, algo que representava a sintonia precisa entre ela e o criador das coreografias.  “Ela encontrou um anjo, uma luz perto dela que soube tirar toda arte e toda essa luz que estava dentro da Márcia. Foi algo que o Cranko soube tirar, soube fazê-la desabrochar. Um encontro dos Deuses. Cranko e Márcia Haydée transformaram a história da dança no mundo”, pontua Ana Botafogo.

Em sua postura austera e, ao mesmo tempo, repleta de doçura, Haydée nos fala de seus relacionamentos e coloca a amizade com Cranko e o casamento e longa parceria com o dançarino estadunidense, Richard Cragun, como destaque. A perda dos dois, sendo o primeiro em sua morte precoce nos anos 1970, e o segundo em um divórcio doloroso para a bailarina, a colocara em um novo norte. Primeiro, pois, foi após a partida de Cranko que ela assumiu a direção do balé de Stuttgart, algo que impressiona uma vez que não a impediu de continuar dançando e mantivesse os dois trabalhos em paralelo. E, após a separação de Cragun, alguns anos depois, em 1995, ela voltaria a se casar com aquele que até hoje é seu marido, o professor de ioga Günther Schöberl, alguém cuja profissão ajudara Haydée a recuperar seu equilíbrio e serenidade.

Marcia no terraço do Theatro Municipal do Rio - segunda casa

LEGADO RECONHECIDO

Para o produtor do projeto, Marco Altberg, a importância do filme se salienta ainda mais pelo legado de Márcia. “Como passou quase toda a vida fora do país, ela acaba sendo pouco conhecida aqui, ainda mais pelas novas gerações. Torna-se importante trazer esse resgate para os brasileiros”, afirma Altberg.

Legado, prioritariamente, é a palavra chave para definir o projeto. Ao vermos a ex-bailarina aos 80 anos de idade, lúcida e saudável a caminhar pela neve das redondezas de sua casa em Stuttgart, local que abre o documentário como a nos convidar a sentir o calor das imagens do balé que vemos em seguida, notamos naquela senhora uma plenitude que a maturidade e o contemplar de um legado e de uma vida repleta de desafios lhe traz. E ela consegue dividir isso com o público, essa intimidade plena, algo que reflete através daquela longa trajetória. Em certo momento, por exemplo, Márcia fala da opção em não querer ter filhos. E é doloroso perceber certo arrependimento e peso em sua voz quando busca explicar as razões em relação ao trabalho e a distância de familiares. Em um autoconsolar, Haydée brinca ao dizer que na próxima vida terá muitos filhos. Logo em seguida, o foco obstinado em sua tão importante arte a faz corrigir-se. “Não, eu falo, falo, mas na próxima vida eu vou ser bailarina outra vez. Já está em minha áurea. Já está em minha energia”, afirma entre sorrisos.

Ela encerra dizendo que segue uma força maior, algum deus, que possa decidir isso por ela. Ouvir uma deusa da dança falar desse modo nos faz questionar a existência dessa força. Mas, do mesmo modo, nos faz ter certeza de que foram seus esforços, foco, obstinação e genialidade, de fato, os elementos responsáveis por sua brilhante trajetória. Um filme essencial para torná-la ainda mais inesquecível.


*Matéria originalmente publicada no jornal A Tarde, dia 22/04/2019

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