Genialidade
de uma vida dedicada ao Balé
Documentário esmiúça
trajetória de Márcia Haydée,
brasileira que marcou a história do balé clássico
Por João Paulo Barreto
A trajetória de Márcia Haydée, primeira bailarina do
Balé de Stuttgart, na Alemanha, durante os anos 1960, impressiona. A
importância de sua figura para a dança mundial é colocada em merecido destaque
no documentário Marcia Haydée – Uma Vida
Pela Dança. Idealizado por sua irmã Mônica Athayde e dirigido por Daniela
Kallman, o documentário resgata a história da única bailarina brasileira a ser
reverenciada nos mais importantes teatros do mundo. Entre eles, estão o Bolshoi
(Moscou); Opera (Paris); Covent Garden (Londres); Staatsoper (Berlin); Bunka
Kaikan (Tóquio); além do Metropolitan Opera House (Nova Iorque); Lincoln Center
(Washington); Colon Buenos Aires) e Teatro Municipal de Santiago, no Chile. No
Brasil, Theatro Municipal do Rio de Janeiro e Teatro Municipal de São Paulo.
Foi aclamada por sua grandeza nas interpretações em cada papel que lhe era
oferecido.
O filme opta de maneira acertada em equilibrar a
apresentação da vida da bailarina através do olhar e palavras dela mesma com o das
pessoas que conviveram com ela em sua trajetória. Tal opção, mesmo sem fugir da
estrutura convencional de entrevistas, concede ritmo ao documentário devido à
opção de intercalar as imagens da rotina de Haydée e das suas marcantes
apresentações com a sua preparação durante os ensaios, bem como as leituras das
cartas que a jovem enviava para sua mãe. Permite ao espectador observar, assim,
o esforço contínuo da bailarina no galgar da perfeição que se vê nos palcos, mas
sem deixar de trazer um perfil sensível e deslumbrado de uma jovem que
alcançava precocemente essa mesma perfeição citada.
Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, Marcia Haydée
começou as aulas de balé aos 3 anos. Aos 12 já falava em ser a melhor bailarina
do mundo. Aos 16 se mudou para Londres para estudar na Royal Ballet School. Lá
conheceu o coreógrafo John Cranko, diretor do Stuttgart Ballet, na Alemanha, e
se tornou sua discípula.
Através de um perspicaz encadeamento de imagens de
arquivo que a montagem de Maria Altberg traz, o público é apresentado ao
desenvolver técnico de Haydée de forma a penetrar em sua labuta e a conhecer o
modo como ela e o seu parceiro coreógrafo, John Cranko, transformaram
preparação e experimentação em movimentos definitivos na dança.
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Márcia em cena com Richard Cragun (Coreografia de John Cranko) |
ANJO PROTETOR
“É o chão, os sapatos ou você? É você”, responde a
si mesmo John Cranko em sua descontração ao avaliar o poder dos passos de Márcia,
no balé Giselle, lhe dando a
autoconfiança necessária. E, no citado artifício de sua montagem, o filme
acerta ao criar para o espectador o ritmo perfeito da narrativa no encadear
imediato das cenas de ensaios com a apresentação que aconteceu em 1966, algo
que descreve bem o esforço desprendido pela jovem.
“A
simplicidade da técnica junto com a liberdade artística, junto com a alma
imoral. Ela é a pura transgressão. Como pode uma pessoa do mundo clássico ser
tão transgressora?”, pergunta a coreógrafa Deborah Colker ao se referir a Márcia.
Sua pergunta também reverbera no espectador. Sua transgressão ao colocar-se em
tamanho destaque dentro da companhia de Stuttgart, quando apenas Cranko, outro
que não temia experimentações, a queria como sendo a primeira bailarina, encanta.
E, mesmo aqueles não familiarizados com a sua trajetória ou que mesmo não detêm
conhecimentos específicos do balé clássico, se impressionam com o domínio de
sua técnica. Sem contar o carisma da mulher. Sua leveza de ação, beleza e, ao
mesmo tempo, olhar concentrado nos movimentos cujas orientações recebe de
Cranko, encantam através das imagens de arquivo que o filme traz. Imagens estas
que denotam um extenuante trabalho de pesquisa e planejamento da produção no
ilustrar daquela trajetória.
A primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, Ana Botafogo, é precisa ao definir a relação entre Márcia e Cranko,
quando coloca aquele encontro como algo divino. Com pouco mais de vinte anos de
idade, Márcia se tornara a primeira bailarina do balé de Stuttgart, algo que
representava a sintonia precisa entre ela e o criador das coreografias. “Ela encontrou um anjo, uma luz perto dela que
soube tirar toda arte e toda essa luz que estava dentro da Márcia. Foi algo que
o Cranko soube tirar, soube fazê-la desabrochar. Um encontro dos Deuses. Cranko
e Márcia Haydée transformaram a história da dança no mundo”, pontua Ana
Botafogo.
Em sua postura austera e, ao mesmo tempo, repleta de
doçura, Haydée nos fala de seus relacionamentos e coloca a amizade com Cranko e
o casamento e longa parceria com o dançarino estadunidense, Richard Cragun,
como destaque. A perda dos dois, sendo o primeiro em sua morte precoce nos anos
1970, e o segundo em um divórcio doloroso para a bailarina, a colocara em um
novo norte. Primeiro, pois, foi após a partida de Cranko que ela assumiu a
direção do balé de Stuttgart, algo que impressiona uma vez que não a impediu de
continuar dançando e mantivesse os dois trabalhos em paralelo. E, após a
separação de Cragun, alguns anos depois, em 1995, ela voltaria a se casar com
aquele que até hoje é seu marido, o professor de ioga Günther Schöberl, alguém
cuja profissão ajudara Haydée a recuperar seu equilíbrio e serenidade.
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Marcia no terraço do Theatro Municipal do Rio - segunda casa |
LEGADO RECONHECIDO
Para o produtor do projeto, Marco Altberg, a importância
do filme se salienta ainda mais pelo legado de Márcia. “Como passou quase toda
a vida fora do país, ela acaba sendo pouco conhecida aqui, ainda mais pelas
novas gerações. Torna-se importante trazer esse resgate para os brasileiros”,
afirma Altberg.
Legado, prioritariamente, é a palavra chave para
definir o projeto. Ao vermos a ex-bailarina aos 80 anos de idade, lúcida e
saudável a caminhar pela neve das redondezas de sua casa em Stuttgart, local
que abre o documentário como a nos convidar a sentir o calor das imagens do
balé que vemos em seguida, notamos naquela senhora uma plenitude que a maturidade
e o contemplar de um legado e de uma vida repleta de desafios lhe traz. E ela
consegue dividir isso com o público, essa intimidade plena, algo que reflete
através daquela longa trajetória. Em certo momento, por exemplo, Márcia fala da
opção em não querer ter filhos. E é doloroso perceber certo arrependimento e
peso em sua voz quando busca explicar as razões em relação ao trabalho e a
distância de familiares. Em um autoconsolar, Haydée brinca ao dizer que na
próxima vida terá muitos filhos. Logo em seguida, o foco obstinado em sua tão
importante arte a faz corrigir-se. “Não, eu falo, falo, mas na próxima vida eu
vou ser bailarina outra vez. Já está em minha áurea. Já está em minha energia”,
afirma entre sorrisos.
Ela encerra dizendo que segue uma força maior, algum
deus, que possa decidir isso por ela. Ouvir uma deusa da dança falar desse modo
nos faz questionar a existência dessa força. Mas, do mesmo modo, nos faz ter
certeza de que foram seus esforços, foco, obstinação e genialidade, de fato, os
elementos responsáveis por sua brilhante trajetória. Um filme essencial para
torná-la ainda mais inesquecível.
*Matéria originalmente publicada no jornal A Tarde, dia 22/04/2019
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