quarta-feira, 17 de julho de 2019

Inocência Roubada


Sobre meninas e lobos



Autobiográfico e redentor, Inocência Roubada traz brutalidade da pedofilia e seus traumas

Por João Paulo Barreto

Desde sua cena de abertura, quando a atriz, dançarina e cineasta Andréa Bescond baila em um frenesi libertador, a proposta de expurgo de um sofrimento guardado é atrelada ao projeto Inocência Roubada (As Cócegas, no original, tenro e, exatamente por isso, ainda mais assustador título francês) de maneira evidente e sem concessões. Por isso mesmo, trata-se de uma obra cujo impacto no seu público é tão violento. Mas tal violência em momento algum é vista como manipuladora ou artificialmente inserida para chocar. A maneira como Bescond aborda suas próprias experiências traumáticas de vida e as compartilha com sua audiência chama a atenção, sim, pelo modo brutal como a mulher passou sua infância gradativamente destruída, mas é no processo de cura e libertação que reside a força do filme.

Baseado na vida pessoal da própria Andrea, que, durante a infância, sofreu constantes abusos sexuais cometidos por um amigo de seus pais, a história foi originalmente adaptada como um premiado espetáculo musical no qual as performances dos números realizados pela dançarina denotavam o poder que a dança tem no sentido de extravasar toda dor e traumas contidos em sua trajetória. Levar o mesmo tipo de abordagem para uma mídia diferente, no caso, o cinema, corria o risco de banalizar o projeto com uma aproximação dentro de um apelo para o melodrama, como a inserção de uma trilha sonora apelativa ou atuações maniqueístas, por exemplo. No entanto, o que nos é trazido é a representação de um mergulho naquelas experiências de maneira a nos inserir literalmente dentro de suas lembranças. E quando digo literalmente, é justamente isso que acontece.

Odette busca apoio de seus pais na sua superação

LABIRINTOS

Ao apresentar a pequena Odette, seu alter-ego no filme, Andréa nos leva por entre os labirintos de seu trauma. Utilizando uma inteligente montagem que caminha entre as lembranças do passado e o tempo real e presente, colocando o processo terapêutico como guia naquela experiência, Bescond e o co-diretor Eric Métayer (que faz uma pequena participação como o professor de dança de Odette) conduzem o espectador pela mente da mulher, colocando inicialmente suas sequelas em evidência, mas demonstrando a origem de cada uma delas dentro daquele processo de conhecimento, redescobrimento e, esperançosamente, superação. Assim, a condução do seu público diante dos traumas se apresenta gradativa.

Mantendo cenários, elementos e personagens que se misturam entre reminiscências e a realidade, na qual, por exemplo, a imagem de uma porta de banheiro pintada de rosa e com contornos infantis deixa de possuir essa ideia de inocência para denotar um simbolismo amargo, o filme constrói para seu espectador uma constante percepção dos gatilhos que iniciam Odette/Andréa em seu turbilhão emocional. Em outra passagem, a textura e aparência de uma toalha que lhe é estendida antes de entrar em cena a leva aos dias dos abusos e a um extravasar daquele período em apenas uma frase proferida por ela e recebida com surpresa pelos colegas. A dureza com que percebe sua fragilidade a faz pedir desculpas pela franqueza, sendo este talvez o momento de maior impacto da obra justamente por demonstrar sua prisão e vontade de escapar daquele tormento mental.

Um ensaio para a felicidade e para o equilíbrio mental

ESCAPE ONÍRICO

É quando Odette passa a utilizar aqueles artifícios psicológicos como brincadeiras internas em busca de seu conforto intimo, inserindo conversas com psiquiatras e encontro com amigos como fantasias mentais, tudo em busca de um escape, de uma fuga daquela sensação de aprisionamento e angústia. Bescond e Métayer, aliás, ainda conseguem inverter essa expectativa do espectador ao representar a fragilidade de Odette de forma sutil, quando, usando mais uma vez uma sagaz montagem, inserem em um único e breve momento a imagem da criança no meio de um jantar de adultos. Dessa vez, a sua fuga para não concede conforto a Odette.

Deste modo, Inocência Roubada utiliza esse artifício onírico de sua protagonista como uma simultânea desconstrução de seus medos e preparação para a dureza de sua realidade, quando precisa encarar seu tenebroso passado sem a possibilidade de ter aquele esconderijo.

Neste áspero reencontro no qual sua infância lhe é empurrada para o atual presente, qualquer traço de força dentro de Odette se perde. Seu único pilar ainda reside no afetuoso abraço e choro contido no calor paterno, uma vez que, da parte de sua mãe, uma muralha de negação e desprezo diante de seu drama lhe é apresentada. Está, porém, é apenas mais uma pedra na muralha que a aprisionou e da quel, enfim, se liberta.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/07/2019

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