quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Cafarnaum




Filme libanês Cafarnaum oferece reflexão pela quase desesperança

Indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, 
obra de Nadine Labaki traz análise da miséria e de dogmas falhos

Por João Paulo Barreto

Há um momento de Cafarnaum, novo trabalho de Nadine Labaki (Caramelo, E Agora Onde Vamos?) no qual Zain, o trágico garoto que a câmera segue em sua vida sem infância pelas ruas de Beirute, parece fugir das pressões que o mundo lhe coloca nas costas para se permitir observar um homem vestido de Homem-Aranha (ou Homem-Barata, como o filme pontua). É um dos poucos momentos em que o lúdico, comum e saudável à realidade de qualquer criança, é permitido existir na vida daquele triste menino. Essa “ausência de infância” que a trajetória do garoto possui é o que norteia toda a obra da diretora libanesa.

Obrigado a amadurecer antes de ao menos poder entender o que é ter maturidade, Zain, cuja própria idade desconhece, tem em sua rotina a proteção de sua irmã caçula como foco e conseguir diariamente o sustento de sua família como meta. Neste ínterim, percebe o risco que passará a menina quando uma mancha de sangue na roupa denota a chegada de sua primeira menstruação. Ao ensiná-la a conter o fluxo e alertá-la dos riscos que aquela nova fase lhe trará, Zain demonstra de forma ainda mais clara o nível de sua compreensão daquele universo que o cerca. Um ambiente no qual é comum homens se casarem com crianças e a geração de filhos é encarada não como algo a ser planejado (e evitado no caso daquelas pessoas), mas abraçado como um presente de algum deus que venha a reger a infeliz vida daquelas pessoas.

Na maturidade que lhe é imposta, Zain vive em um mundo que não o quer. Um mundo no qual sua existência lhe é questionada a cada momento pela realidade que o cerca. Gradativamente, ele mesmo começa a questionar o caos (que o título original acerta ao batizar assim) de sua própria vida, na qual a incerteza de um dia a mais sem saber se ao menos terá o que comer lhe é imposta. Fugindo de seus pais, se exila em um parque de diversões, algo que remete ao breve lúdico que a vida lhe oferece mesmo que momentaneamente. Curiosamente, é naquele ambiente de escape infantil que conhece alguém que lhe dará abrigo e, em mais um forçar de sua maturidade, a quase função de pai, quando circunstâncias emergenciais lhes são apresentadas.

A maturidade forçada até mesmo na figura paterna que lhe é imposta

REFLETIR A MISÉRIA

Podendo soar para muitos como uma espetacularização da miséria, na qual a vida de Zain Al Rafeea (um garoto cuja rotina real não se afastava tanto do que é visto em tela pelo seu personagem homônimo), parece receber um holofote, mas não soluções práticas para que ele escape de um trágico futuro, o filme de Nadine Labaki ultrapassa tais julgamentos por lançar uma necessária reflexão do mal que dogmas e costumes atrasados como o que vemos nos pais de Zain causam àquelas pequenas vitimas. São vidas perdidas diante da miséria que lhe é infringida por governos omissos e religiões oportunistas e opressoras. Em certo momento, a própria figura do pai amaldiçoa seu casamento e a imposição recebida desde sempre para ter uma família.

Em seu protagonista, Labaki oferece para o espectador mais do que uma manipulação emocional diante de tanta barbárie pela qual passa Zain. A perda da inocência é o ponto de maior impacto para quem presencia a saga daquele menino. Alguém que abraça a violência por querer vingar-se não somente de um mal infringido à sua irmã, mas por enxergar naquele extravasar a única forma de não enlouquecer diante de tamanha ausência de esperança. Naquela ausência, culpar aqueles que lhe trouxeram para tal mundo é a única forma que lhe resta de se fazer ouvir.

Mesmo que um sorriso prenuncie de forma tímida um traço de mudança positiva naquele menino que finalmente passa a existir oficialmente, a crueza de dogmas religiosos nocivos que sustentam toda a negligência proposital de um Estado já fez a sua parte de modo infelizmente definitivo no desestruturar da natureza daquela e de muitas outras crianças.

*Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, dia 28/02/2019

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