domingo, 10 de junho de 2018

Entre Laços

(當他們認真編織時 Close Knit, Japão, 2017) Direção: Naoko Ogigami. Com Tôma Ikuta, Kenta Kiritani e Mugi Kadowaki.


Quando o afeto e a compreensão derrubam preconceitos

Com ecos do cinema de Ozu, Entre Laços é uma imprescindível análise do
conceito de família no século XXI



Por João Paulo Barreto

Nenhum cineasta oriental representou tão bem em seus filmes a família japonesa do seu próprio tempo quanto Yasujiro Ozu. São dele as mais tocantes histórias de busca e reconhecimento de uma cumplicidade entre pessoas de um mesmo clã. São dele as mais belas histórias relacionadas ao cuidado necessário com os pais idosos e as lições que os mesmos trazem às confusões mentais vinculadas à imaturidade de seus filhos. É de Ozu o retrato perfeito da representação da família dentro de seu contexto histórico da primeira e começo da segunda metade do século passado.

Com os longos enquadramentos semelhantes aos vistos na filmografia do mestre, diálogos preenchendo panorâmicas de modo a destrinchar aqueles dramas ao espectador de forma sutil, sem artifícios expositivos em excesso e com os dramas familiares sendo colocados em um contexto imprescindível de discussão acerca do que são tais núcleos no século XXI, a cineasta Naoko Ogigami conseguiu apresentar em Entre Laços uma obra singular cujas nuances e estilo no modo de trabalhar tais discussões não somente remetem ao estilo como Ozu fazia em seus filmes, mas atualiza tal influência de forma a reinventá-la para um novo contexto.

O equilíbrio familiar que tanto fazia falta à Tomo

Aqui, a diretora e roteirista traz uma análise da família tão perfeita quanto as feitas pelo seu compatriota. Em seu filme, Ogigami saúda Ozu de modo não somente a homenageá-lo, mas trazer para o cinema contemporâneo nipônico uma atualização dos conceitos de família que o mestre trabalhou tão bem, e que, desta vez, ganham contornos ainda mais importantes e urgentes. Na história de Rinko, uma mulher trans que adota Tomo, a sobrinha de seu namorado, a discussão acerca do afeto encontrado na criação perfeita que ela dá à criança, e que a mesma não encontra sob a guarda da sua irresponsável mãe biológica, permite ao espectador a percepção de uma complexidade profunda nas camadas que a realizadora se propõe a trazer com sua obra.

REVENDO (PRÉ)CONCEITOS

Na pureza da personalidade ainda em formação da pequena Tomo, uma forma de ainda salvá-la do estigmatizar de preconceitos. O roteiro de Ogigami desenvolve gradativamente a personalidade da criança, fazendo-a perceber as pessoas ao seu redor a partir da nova perspectiva que ela encontra no convívio com sua nova família.

Ao seguir este aspecto, a diretora acerta ao criar um equilíbrio notável nas rimas visuais da obra, como quando uma tentativa de suicídio por parte de um garoto que se vê proibido de extravasar seu sentimento e afeição por outro menino é representado como um pedido de ajuda cujo pretenso socorro é direcionado para a criança errada. Note como, neste momento, o som inicialmente diegético (de dentro do filme) de um violino tocado pelo suicida toma conta da cena, tornando-se a música a embalar a dor não somente física daquele que foi tomado pelo desespero, mas de Rinko, cujo amor por Tomo é colocado em julgamento, e pela menina, que percebe o quão frágil é aquela perfeita nova estrutura familiar que ela conseguiu. Isso tudo embalado por um quase réquiem. A sensibilidade aqui é palpável.

O tricô usado não como metáfora para o encontro e libertação

TRICÔ COMO METÁFORA

Na utilização de preceitos budista para representar o equilíbrio que Rinko busca para sua vida, ela determina a si mesma a meta de tricotar 108 “pênis” para, assim, poder queimá-los em um ato simbólico da sua mudança total. Após isso, planeja alterar legalmente seu nome. Ogigami traz, aqui, uma outra riquíssima rima temática, quando coloca a personagem a explicar para a pequena Tomo que o tricô, para ela, é uma forma de extravasar toda sua raiva, frustração e depressão que o mundo ao seu redor lhe impõe por conta de sua opção de gênero. De temperamento explosivo, a criança experimenta o ato e percebe-se de fato a diminuir suas frustrações.

Durante um momento de fúria por saber que um hospital se recusa a colocar Rinko em uma ala feminina, Tomo adentra no leito da mãe adotiva e começa a tricotar entre lágrimas raivosas. Naquele ponto, ela ainda possuía esse artifício como meio de fuga. Em seu desfecho, após já ter havido o simbólico ato da queima das peças tricotadas, a menina extravasa sua raiva em tapas a esmo, destinados a sua progenitora. É neste ponto que ela percebe não ter mais tanto o artifício terapêutico que lhe fora ensinado por Rinko, quanto, do mesmo modo, o próprio suporte de sua nova família, que começa a lhe ser retirado de forma súbita e dolorosa. A dor da perda naquele segundo lhe é tão pungente que apenas a violência física lhe soa como solução em seu extravasar. Mesmo que tal extravasar seja substituído logo em seguida pelo desespero e pedido de perdão diante da possível perda da mãe.

Em um filme de temas precisos, Entre Laços abarca uma série discussões urgentes. A sutileza de suas camadas e rimas, bem como a referência a um cinema clássico como de Ozu, fazem do filme de Naoko Ogigmi um achado.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde de 10/06/2018




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