CineBH
2018 – Entrevista com Edgard Navarro
Em Abaixo a Gravidade, o cineasta Edgard Navarro
oferece uma discussão centrada na dicotomia razão vs fé. Mas do que isso, ele
revisita um tema que lhe é recorrente em sua filmografia: a transgressão como
forma de sobrevivência. Desde SuperOutro,
quando Bertrand Duarte gritou a frase que batiza esse novo filme, passando
por O Homem que Não Dormia, quando a
mesma frase ele proferiu em um momento de entrega à lucidez (e à morte),
Navarro aborda essa ideia de saída de um lugar comum a partir da racionalidade
não como um norte estanque, mas, sim, como uma opção. Nessa entrevista,
concedida durante a Mostra CineBH 2018, ele aprofundou essa proposta de cinema
que, apesar de galgado em temas fantásticos, tem seu direcionamento em temas
bem reais e que atormentam muitos dos seus espectadores.
Por João Paulo Barreto
O tema gravidade está presente em diversos
dos seus filmes. Mas, percebe-se ser algo que vai além de qualquer conceito
físico. Há um aprofundamento perceptível nesse aspecto em Abaixo a Gravidade. Como você buscou desenvolver esse conceito
aqui, dentro de uma ideia mais psicológica nos seus personagens?
A minha
vida foi uma luta mais ou menos constante contra os fantasmas da opressão, das
coisas que atraem a gente para baixo. As coisas do peso que vemos na fala de
Nietzsche, por exemplo. Eu exponho isso claramente no filme. Algo com a coisa
do espírito da gravidade, que atrai tudo para baixo. Essa ideia inicial que já
começa lá com SuperOutro. Essa ideia bebe
ali no capítulo do Assim Falou
Zaratustra, quando Nietzsche menciona isso sobre o espírito da gravidade.
Aquilo que puxa tudo para baixo. Essa burocracia, essa coisa de uma seriedade
empostada da sociedade, da hipocrisia, das relações de poder. Eu acho que tudo isso está mascarado com uma co-penetração, aquele cenho
franzido, aquela suposta seriedade. Essa gravidade, falando de gravidade como
uma coisa séria, um estado de gravidade. Um estado de saúde que é grave. E
grave tem a ver com peso. A palavra gravitar, gravidade, tudo isso tem a ver
com peso, com empoderamento, tem uma coisa assim como uma conspiração dos
conceitos que estão lidando com esse assunto, esse campo gravitacional que
ajuda a formular esse feeling do
filme desde sempre. Ele se repete e ele continua atual para mim, porque eu vejo
que o mundo gravita em torno de coisas que são pólos de atração falsos. Que são
coisas que são colocadas de fora para dentro. Que, na verdade, o grande
potencial da gravitação em nós, seres humanos, a nossa arquitetura lida com uma
gravidade que está aqui, no centro, digamos, no plexo solar do ser humano (apontando para o próprio peito). E não
na inteligência. A inteligência é um satélite. E isso daqui seria um centro de
gravidade do ser humano. Eu faço elucubrações em torno desse assunto.
Variações, mesmo.
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Cena de Abaixo a Gravidade, de Edgard Navarro |
Seu filme anterior, O Homem que Não Dormia, já trabalhava esse contexto de fé vs
racionalidade. Agora, você desenvolve isso com ainda mais aprofundamento,
inserindo personagens niilistas, vaidosos, em contraposição àqueles mais
ligados a uma ideia de fé. É um contraponto curioso observar, por exemplo, o
embate entre Galego e Bené. Além disso, há o espelho temático entre Maselfe e o
mesmo Bené. Qual o equilíbrio que você colocou como meta nesse equiparar de
elementos?
Galego,
com seu niilismo, representa esse mundo de três dimensões. Um mundo de onde
você não pode escapar. Eu, desde sempre, visto a camisa da fé. Eu tomo a fé
como aquilo que vai me defender. Não a fé religiosa, que lida com uma
mitologia. Eu lido com várias mitologias, porque todas elas, qualquer uma delas,
pode servir. Por exemplo, a camisa que Bené está usando fala assim: "quem tem fé tem tudo". Não é
fé em alguma coisa. É fé como potência de vida. De desejo. Uma coisa que tem a
ver com vontade de poder. Uma coisa que está para além da razão. Não é uma
coisa racional. Você usa a razão. O filme de alguma forma quer colocar esse
axioma aí, que é colocado por (Carlos) Castaneda
(escritor peruano), e é dito no
filme. Mas o centro do ser humano não está no raciocínio lógico. Esse
raciocínio lógico levou a gente para o niilismo. Levou a gente para uma coisa
de buscar. O Galego apenas encarna de uma forma meio instintiva,
intuitiva, essa força da natureza. Mas, para mim, a coisa mais forte está no
Maselfe. Porque ele está numa influência direta desse raciocínio que traz a
gente para tentar. E ele desmascara isso. Ele é o enviado do filme para
desmascarar isso. Quando ele tira a peruca, quando ele diz que existe nele um
deus. Nesse momento, ele denuncia o racionalismo da filosofia ocidental como o
grande vilão do espírito antigravidade. Ele é O Pensador. É aquele que tenta
resolver o problema através do intelecto. E ele sonha com o momento em que O
Pensador vai desfazer essa postura e vai se libertar, e vai dançar e vai poder
até voar, possuído pelo Exu. E eu trabalho aí com essas duas mitologias que são
a filosofia ocidental, encarnada no Pensador de Rodin, como sendo o pensamento
ocidental. Ali está a lógica, todos os filósofos, todo o racionalismo que o ser
humano conquistou e do qual se fez presa. Então, eu coloco, confrontando com
essa coisa, uma mitologia africana, onde o Exu, que é para além da razão, para
além do cognoscível. Ele, literalmente, enraba o pensador.
O cineasta no set de O Homem que não Dormia |
É como uma vingança, não é?
Isso.
E é uma espécie de vingança minha também, de dizer que o destino do pensador, e
ali o pensador é Mierre, que tá tentando tirar alguma grana com aquela coisa de
postura de homem estátua. Ele tem um Exu que o acomete de vez em quando. Tem
aqueles acessos que não sabe direito o que é. Ele teve uma coisa na infância
que é um trauma de que ele foi violentado por uma turma de garotos maiores. É
um trauma ele leva e inventa uma fantasia de que foi o ET quem fez isso com
ele. O ET remete para uma coisa do cosmos, remete para esse asteroide vádio,
vagabundo, brincalhão que vem dar um rolê ali na Baía de Todos os Santos.
Então, tudo isso favorece a metáfora e a fantasia do filme. A criação dessa
coisa que está no plano do sonho. Inclusive é colocado no filme como um sonho
coletivo dos dois, de Bené e do Maselfe. Desse asteróide que vem. E a gente não
sabe direito se vem ou não. Se aquilo também não é uma ilusão. Porque ele tomou
uma pastilha que a menina lhe deu dizendo que era jujuba. O que é aquilo? De
repente, ele está em um lugar e está em outro. Ele vira uma coisa ubíqua. O
corpo dele, quando ele acorda, ele está na cama do lugar onde ele mora. Ele
nunca esteve voando em lugar nenhum, mas ele voa no filme. E o que voa nele é a
imaginação, é a fantasia, entendeu? É uma libertação que vem de um deus exu
africano que o liberta desse racionalismo. Dessa coisa das três dimensões. Eu
quis trabalhar com todo esse universo de coisas racionais e não, mas com a
coisa principalmente de duas potências de, como se fala, cosmogonias. É a
cosmogonia branca, européia, fundada na Grécia e nos filósofos que vêm de lá,
com esse pensamento positivo e fundado na ciência, e um outro que vem de um exu
que é uma coisa, um semideus, africano, que vem do umbigo, e não daqui desse
centro do cérebro. Eu estou deslocando, tentando empurrar isso, eu estou
estuprando esse pensador. Que eu tenho sido acometido por ele, também. Ser
pensador me levou para o lugar da não saída, do labirinto mental. Que eu
denuncio. Eu grito isso no filme através do Maselfe. Tá tudo misturado, (risos).
Há uma rima temática em seu filme que é
impossível não perceber, que é a referência a Fellini com a imagem do Cristo
sendo levado pelo helicóptero. Aqui, é o pensador que assume esse lugar.
Sim.
Exato. O Cristo é o Teocentrismo. E O Pensador é o antropocentrismo. Na mesma
condição. Só que, agora, prevalece na contingência do filme essa libertação
através da cosmogonia africana. E da coisa do teocentrismo. E não do
antropocentrismo.
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