segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

McCartney 3

"Rockdown" de um Beatle 



MÚSICA Com McCartney 3, disco produzido totalmente durante o período de lockdown na Inglaterra, Paul McCartney, aos 78 anos, demonstra o vigor de uma vida dedicada à música 

Por João Paulo Barreto 

Não é mais novidade anunciar o novo disco de Paul McCartney, batizado de McCartney 3, como sendo uma prova do seu talento como multi-instrumentista. Seu domínio por diversas nuances da criação musical já é algo notório desde muito tempo. Na fase Hamburgo, primórdios dos Beatles, atuou como guitarrista da banda que ajudou a transformar em lenda, bem como tocou bateria antes das baquetas terem sido empunhadas primeiramente por Pete Best e, em seguida, por Ringo Starr. Quando Stuart Sutcliffe deixou o contrabaixo do embrião que seriam os Beatles para se dedicar à pintura e ao amor por Astrid Kirchherr (John e Yoko é apenas o segundo capítulo da mesma história ocorrida com a banda), Paul assumiu o instrumento que se tornaria sua marca. Porém, mesmo durante seus anos ao lado de John, George e Ringo, Macca ainda tocou uma variedade de instrumentos, como piano em Hey Jude, Let it Be e Lady Madonna, além da própria bateria, em uma ausência de Ringo, durante a gravação de Back in the USSR (executada apenas por ele e John). Em sua carreira solo, além da totalidade nos discos homônimos de seu sobrenome, há diversos álbuns nos quais Paul, apesar de não ter mantido o controle de 100% dos instrumentos, tocou sua grande maioria, a exemplos como os de Chaos and Creation in the Backyard e Flaming Pie, trabalhos nos quais co-assinou como produtor. 

Paul, em foto captada por sua filha Mary: serenidade e experiência

Porém, nesse completar de uma involuntária trilogia iniciada há cinquenta anos com o seu debut solo, McCartney, e continuada com McCartney 2, em 1981, o músico chega, agora, ao seu respiro do que ele chamou de "rockdown", na alusão à necessidade de confinamento dentro do rígido lockdown exigido pelo governo britânico por conta da pandemia do COVID-19. No estúdio que possui montado em sua casa, Paul começou a trabalhar desde março no que se concretizou com o McCartney 3. E o resultado, sabendo que ele produziu o disco, compôs as letras e executou cada um dos instrumentos não poderia soar mais reconfortante dentro de uma época de tamanha ansiedade para muitas pessoas. Eu, incluído. Dentre os instrumentos usados aqui estão o contrabaixo original de Bill Black, músico que acompanhou Elvis; o seu clássico Hofner empunhado por ele nos anos de Beatles, além de um mellotron também usado com a banda em Abbey Road. 

ENCONTRAR CAMINHOS 

Mas o modo como Paul traz esse conforto para sanar ansiedades não vem de maneira alguma a servir como um discurso coach de auto-ajuda. Mesmo em "Find my Way", sua letra mais direta a abordar esses sentimentos de necessidade de otimismo (e primeira faixa a possuir um videoclipe demonstrando a execução de todos os instrumentos por Paul), Macca traz o citado otimismo pulsante como uma ideia de ser o guia diante das dúvidas de quem está "com medo de dias como estes", nos quais a ansiedade sobrecarrega mentes, como ele mesmo diz na letra. E isso em um disco que abre com uma jam de mais cinco minutos, onde as três simples perguntas (Você sente minha falta?/ Você me vê? /Você me toca?) a levar a batida à frente desenham o ritmo proposto pelo álbum. "Long Tailed Winter Bird" é justamente esse convite a uma leveza da qual precisamos e uma reflexão sobre o contato humano que tanto almejamos. 

Nesse almejar pelo futuro, vencendo ansiedades e planos fugazes que, frágeis em suas possibilidades de se desfazerem, levam o escritor Paul a preferir trazer um olhar para a solidez de seu presente, para a felicidade que está ao seu lado nesses tempos bizarros. "Women and Wives" traz exatamente essa ideia de "buscar pelo amanhã que chegará e nos fará buscar pelo futuro" em um ciclo que não nos permitirá perceber o presente. Perceber as coisas mínimas, as relações humanas que deixamos escapar pelo simples ato de ansiar por um novo dia que sempre se promete como algo melhor do que julgamos ter. 

O contrabaixo que pertenceu a Bill Black


NOVAS PERSONAS

Adicionando mais uma personagem à galeria de figuras quase físicas de suas composições, que possuem nomes como a da guarda de trânsito Lovely Rita; como a batalhadora mãe solteira Lady Madonna e, claro, a solitária e trágica Eleanor Rigby, em Lavatory Lil Paul prefere abordar um humor mais ácido ao trazer a personagem título como alguém em busca de satisfação aos próprios interesses materiais, mas sem perceber que apesar de "pensar ser uma estrela, está lentamente descendo a ladeira". 

Como muitos pretensos artistas de nosso século XXI. 

O carisma de uma das vozes do século XX

SIMBÓLICO MOMENTO 

Há um simbolismo apropriado a McCartney 3 e aos seus dois títulos homônimos e separados por décadas . Quando lançado em 1970, o primeiro disco solo de Paul, batizado apenas de McCartney, trouxe um peso da perda da banda que o baixista se acostumou a chamar de rotina criativa. Inclusive, em sua biografia autorizada, escrita por Barry Miles, Paul detalha bem o período de depressão pelo qual passou quando do término dos Beatles. O seu disco, gravado em casa no final de 1969 e início de 1970, foi um rito de passagem para um período de incertezas após a perda de algo que considerava sua vida. Profissional e afetiva. 

Com McCartney 2, apesar de um resultado um tanto aquém do esperado, o término da sua segunda banda, Wings, em 1981, representou um pouco daquela mudança de panorama e entrada em uma nova década. Quase quarenta anos depois, olhar para essa trajetória e percebê-la influenciada por (e mutável em) cada um dos movimentos musicais que ela visitou nos ciclos criativos subsequentes, nos faz refletir em como Paul teve o mesmo foco de experimentação que dividiu com seus três companheiros de banda durante os trezes discos entre Please Please Me e Abbey Road (gravado em 1969, após o Let it Be). 

Talento multi-instrumentista colocado mais uma vez em ação

Com McCartney 3, um álbum criado do zero dentro de uma rotina de confinamento diante da maior crise social, política e humanitária vista pelo século XXI até o momento, o trabalho acaba por, de certa maneira, se apresentar como um rito dessa passagem para um músico que testemunhou as consequências dos diversos movimentos culturais que ele mesmo ajudou a moldar. Olhar para trás e perceber essa relevância própria é algo que requer um equilíbrio imenso. Torcer para que o mesmo notório equilíbrio e longevidade nos presenteie com outros trabalhos dessa instituição chamada James Paul McCartney. 

Ou somente Sir Paul. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 05/01/2021





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