terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O Império dos Gibis

 Primavera das HQs

LIVRO O Império dos Gibis, escrito por Manoel de Souza e Maurício Muniz, desenha com esmero e profundidade a história dos quase 70 anos de publicações de histórias em quadrinhos
pela Editora Abril

Por João Paulo Barreto

É uma tarefa difícil tentar escapar de um tom nostálgico ao falar da formação cultural oriunda de uma fase infanto-juvenil influenciada pelas histórias em quadrinhos publicadas nos anos 1980 e 1990 pela Editora Abril nos clássicos "formatinhos".  Essa lembrança afetiva bate pesado em leitores quase quarentões como eu (bem como para quem já iniciou ou ultrapassou essa nova década primaveril de vida) em pleno desesperançoso século XXI, e que tiveram sua entrada no hábito da leitura a partir das páginas em  papel jornal e recheadas de cores, aventuras  e personagens publicados pela Abril . São memórias embaladas por histórias e figuras heroicas (ou não) criadas por Walt Disney, Maurício de Sousa, Bob Kane, Bill Finger, Jerry Siegel, Joe Shuster, Jack Kirby, Stan Lee e um leque tremendo de outros artistas. Um leque que perdurou no Brasil pelas páginas da editora por quase 70 anos. E são esses quase 70 anos de gibis que os autores Manoel de Souza e Maurício Muniz conseguiram, com brilhantismo, compilar nas 544 páginas (64 delas coloridas) do livro Império dos Gibis - A Incrível História dos Quadrinhos da Editora Abril, publicação lançada pela Editora Heroica.

Os autores Maurício Muniz e Manoel de Souza

Em sua proposta de trabalho, Manoel e Maurício se dividiram em uma demanda tão épica quanto a trajetória da empresa que eles decidiram documentar. Mas engana-se quem acha que o livro é uma biografia ou um relatório da Editora Abril. Claro, lá está toda a gênese da empresa criada pelos Civita. Mas, como o nome do livro diz, os quadrinhos são seus personagens centrais. Dentro  de uma pesquisa minuciosa junto a fontes no sentido de desvendar lendas e mitos para além de narrativas oficiais, os autores buscaram por esse processo, mas nunca perdendo o foco que norteia seu livro: a história dos gibis. O resultado é um narrativa fluida que leva o leitor pelas histórias dentro das histórias.

Manoel explica: "Eu tive uma preocupação muito grande com essa parte técnica, porque o plano era que o livro fosse muito além de um livro só para colecionadores. Ele conta a história da editora Abril, mas ele não é um livro sobre a história da editora Abril. Ele é um livro sobre os quadrinhos da editora Abril. Os quadrinhos lançados por ela sempre são o personagem. A ideia foi assim: explicar porque as revistas foram criadas e como elas foram criadas", pontua o autor.

Páginas da Raio Vermelho, pioneira revista da Abril

ASCENSÃO

Surgindo no Brasil como um fenômeno de vendas em uma época na qual a leitura dos gibis não competia com tantas outras fontes de entretenimento para crianças e adolescentes, os quadrinhos da Disney, na figura principal do Pato Donald (lançado inicialmente no formato magazine), teve seu debut na casa Abril em 1950, junto com a revista Raio Vermelho, que foi lançada antes e representa o marco de ser o primeiro quadrinho da editora cujas raízes se iniciaram na Argentina, sob o nome de Editorial Abril. "O formatinho foi criado para se adaptar às máquinas que o Victor Civita montou em 1952. Além disso,  Pato Donald não estava vendendo muito bem nesse formato grande. Então, ele fez uma estratégia para reduzir o formato e o preço. E conseguiu deixar mais atraente para as crianças. Com o passar dos anos, ele meio que adotou aquele formato ali", explica Manoel.

Com os personagens licenciados da Disney, a Abril, naquela década de 1950, e nas duas subsequentes, juntamente com os personagens de Maurício de Sousa, que surgiriam em 1970 na editora, viria a se consolidar em um mercado de entretenimento juvenil que até tinha concorrentes como a Ebal - Editora Brasil-América Limitada, mas seu alcance como império tornava  a empresa dos Civita imbatível em vendas. "Nos anos 1970, a Abril chegou a vender 6 milhões de quadrinhos por mês. Ela vendia 72 milhões por ano. Eram números que, dos anos 1980 para a frente, não se repetiram mais. Por que? Primeiro que (em 1986) o Maurício de Sousa saiu da Abril", contextualiza Manoel acerca das primeira décadas de ascensão da empresa, bem como seu primeiro baque comercial, e complementa: "Nos anos 1970, o número de vendas das revistas da Disney era um negócio absurdo. E a própria Mônica, que foi aumentando cada vez mais. Com a saída do Maurício de Sousa em meados dos anos 1980, a Abril tomou um baque. Ai ela precisou tapar o buraco. Foi quando os heróis começaram a receber um maior investimento", argumenta Manoel em relação à solução econômica para a editora.

Publicações da Mônica nos anos 1970 e 1980 da Editora Abril

ERA HEROICA

A entrada dos super-heróis da Marvel Comics na Abril se deu em 1979, mas ainda sem os grandes medalhões da Casa das Ideias estadunidense, que, por um tempo, acabaram ficando com a concorrente RGE. Isso após a Bloch ter perdido o licenciamento que, desde 1967, já havia passado pela Ebal e outras menores. Com a Abril, os personagens Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Mestre do Kung Fu, Surfista Prateado e outros, ganharam inicialmente três títulos: uma revista homônima do Capitão, Terror do Drácula, que trazia, também, o personagem da Transilvânia, e a genérica Heróis da TV, que abarcava todo um leque de personagens da Marvel. Manoel conta que o título do Drácula não tardou a ser cancelado, mesmo com boas vendas. "Qual era o medo? A mãe assinava uma revista da Mônica, do Cebolinha, aí o filho via a revista do Drácula, e quando lia, tinha histórias de gente sendo morta com machadada, sabe? O medo da Abril era esse. Aí os pais iam ficar putos, cancelariam as assinaturas, e iam querer processar a editora. Então, era um negócio que na cabeça deles não pegava bem. A Abril fugia disso", esclarece o autor.

Clássico de Frank Miller: reformulações

A DC não tardaria a, também, fazer parte do leque da Abril, com a veterana Ebal não renovando seu contrato com a editora do Super-Homem e do Batman no começo dos anos 1980. Assim, estes e outros heróis chegaram ao catálogo dos Civita.

SAM: Um dos títulos mais queridos 

QUEDA

Estendendo-se por  toda a década e, com obras de Frank Miller (Cavaleiro das TrevasDemolidor) e Alan Moore (Watchmen), revolucionando a partir da segunda metade dos anos 1980, o setor de HQs da Abril acumulou sucessos. Mas os anos 1990, com um foco megalomaníaco da empresa em outros mercados, como o de TV por assinatura, trouxeram grande prejuízos. Mesmo com o maior recorde de vendas da história dos quadrinhos lançados no Brasil (a saga Morte e Retorno do Super-Homem, que vendeu um milhão de exemplares em 1993 e 1994), a Abril começou a declinar. No decorrer daquela década e a partir do ano 2000, com a extinção do formatinho, um surreal aumento de preços e a competição acirrada da Panini Comics, que passou a licenciar a Marvel, logo o império dos Civita ruiu. A Abril durou até 2018, apenas com alguns dos títulos Disney sendo lançados por ela.

O tempo e a mudança dos ventos são implacáveis. Mas podem deixar boas lembranças. As mesmas de um garoto de 12 anos que comprou pela fortuna de R$3,00 aquele gibi especial com a morte do kriptoniano.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/02/2021



 



 

 

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