quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A Casa que Jack Construiu

(The House that Jack Built, Dinamarca, 2018) Direção: Lars von Trier. Com Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman.


Por João Paulo Barreto

42ª MOSTRA SP – Lars von Trier e seu  sadismo reflexivo

O que Lars von Trier propõe em A Casa que Jack Construiu não é algo fácil. Ao penetrar na mente do assassino vivido por Matt Dillon, o diretor, notório por abraçar polêmicas, mas não sem embasamento nas razões para levantá-las em seus filmes, cria uma profunda análise da mente doentia e perversa de um serial killer. Sim, o filme esbarra em um aspecto misógino, uma vez que as vitimas aleatórias que o personagem título escolhe no contar de sua história são todas mulheres em um estado de estupidez e de ingenuidade que incomodam. Mas, conhecendo as personagens fortes e femininas dos filmes anteriores do cineasta, não é de se espantar ao encontrar uma irônica e proposital inserção dessas fragilidades na construção dessas presenças.

Jack, em certo momento, é questionado acerca dessa sua exclusividade feminina, em que a possibilidade de uma retração sexual é inserida. Ao rechaçar tal fato, o mesmo afirma já ter matado homens. Porém, nenhuma dessas mortes é exibida no filme (as únicas são impedidas em seu clímax),  confirmando a ideia de uma provocação. Principalmente quando o lugar de vitima feminina é colocada na roda, diante de um argumento um tanto ridículo de que “a culpa é sempre masculina”. Impossível não pensar na recente leva de denúncias contra figurões em Hollywood quanto a acusações de assédio. Mas isso é von Trier a apenas provocando. A profundidade dos temas que seus filmes trazem  são bem mais atrativas, ressalto.
Riqueza visual e auto-avaliação


Na vestimenta a referenciar Dante, Matt Dillon se destaca como Jack

Muito parecido em sua estrutura com o anterior, Ninfomaníaca, ao penetrar diversos temas atrelados à condição psíquica de seu protagonista, o cineasta dinamarquês abrange um vasto leque de elementos culturais, dentre estes a arquitetura, afinal, essa é a profissão que Jack afirma possuir. Além disso, a rima temática e visual que a explicação acerca da construção dos telhados com o da tal casa que ele constrói no final fascina, principalmente ao ouvirmos o protagonista comparar a entrada da luz pelo telhado e os pontos cegos que a mesma não alcança como algo relacionado ao olhar divino. Sendo assim, desde o começo percebe-se algo mais profundo do que somente provocações misóginas em seu roteiro.

O título, além de uma referência à profissão de Jack, vem do poema homônimo escrito por W.W. Denslow, que, também, escreveu o conto da Chapeuzinho Vermelho, algo que von Trier faz questão de referenciar no último ato. Porém, distante de um ato simplório com a tal relação visual entre figurino e temática, o cineasta instiga o público ao inserir os conflitos psicológicos de Jack em sua derrocada, como uma visita guiada ao purgatório, onde, levado por Virgílio (Bruno Ganz), não por acaso personagem homônimo da obra de Dante Alighieri, nos arcos do purgatório. As recriações das imagens a mostrar, por exemplo, a Barca de Dante, enchem os olhos.

Sádico em sua proposta, mas justificável em seu resultado final, A Casa que Jack Construiu traz, também, uma espécie de auto-avaliação do próprio von Trier, quando, diante das diversas polêmicas que trouxe  com seus filmes no decorrer dos anos, resolve revisitá-los em uma condição de análise própria. Um cinema como auto-análise provocativa e necessária, mas sagaz na construção profunda de um personagem que fascina por suas camadas.

*Texto originalmente publicado em A Tarde, dia 24/11/2018




Nenhum comentário:

Postar um comentário