quinta-feira, 27 de julho de 2017

Dunkirk

(UK USA, 2017) Direção: Christopher Nolan. Com Jack Lowden, Tom Hardy, Mark Ryanlance, Kenneth Branagh.


Por João Paulo Barreto

Tendo como uma de suas marcas as metragens longas, com mais de duas horas, algumas beirando as três horas de duração, Christopher Nolan acerta ao optar por um corte conciso e calcado em uma narrativa mais enxuta (com pouco mais de cem minutos) em seu mais recente trabalho, Dunkirk, excelente foco dado pelo diretor a um menos conhecido episódio da Segunda Guerra Mundial.

Ao contar a história de civis moradores da região costeira da Inglaterra que decidem, em seus barcos de passeio, resgatar soldados ingleses e aliados sitiados pelos alemães na cidade que leva o título do filme, Nolan traz um enquadramento bem específico, com poucos núcleos dramáticos. Inicialmente, essa opção poderia ser vista como uma falha no desenvolvimento de seus personagens, aparentemente superficiais em suas inserções, porém, ao sermos apresentados àquela luta pela sobrevivência e ao modo como o episódio histórico em si é colocado como protagonista naquela narrativa, percebemos a eficiência na escolha do diretor. Em Dunkirk, o conjunto de todos os acontecimentos se sobrepõe a eventos isolados, e é justamente esse viés geral que torna cada um deles um rico e importante recorte, parte geral de uma equilibrada e bem dosada narrativa.

Soldados observam o desespero tomar conta de um dos seus companheiros
O diretor opta acertadamente por dividir os acontecimentos em três pontos da batalha: “O Molhe”, espécie de píer localizado na praia de Dunkirk; “Mar”, com a iniciativa de um pai que segue com seu barco para resgatar soldados; e “Céu”, com a melhor das narrativas ao abordar os pilotos nas batalhas aéreas contra o inimigo. Nesta estrutura, Nolan alterna a construção de sua história de forma precisa, quase matemática, algo que, com a montagem de seu habitual colaborador, Lee Smith, consegue criar um ritmo que não atropela as situações e que, auxiliado pela enérgica e tensa trilha sonora de Hans Zimmer, alcança uma ambientação que mantém o espectador vidrado.

No citado arco dos personagens dos pilotos vividos por Tom Hardy e Jack Lowden, o espetáculo visual justifica a opção do cineasta em filmar Dunkirk em 70mm. Remetendo a videogames de primeira pessoa, nos quais a imagem exibida é a mesma do ponto de vista do personagem, Nolan utiliza a imensidão do oceano como forma de aproximar o público da sensação semelhante à que os pilotos estão vivenciando. E ao colocá-los dentro de uma angústia definida pela falta total de combustível que se aproxima, o diretor insere mais um elemento de tensão dentro daquelas já apreensivas sequências.

Tom Hardy como um dos pilotos a garantir a segurança em Dunkirk
Do mesmo modo, quando intercala cenas em céu aberto com momentos claustrofóbicos dentro de porões inundados de navios, sendo a primeira com os soldados às margens do oceano, no já citado píer, a esperar ou pela redenção de seus salvadores ou pela aniquilação anunciada dos aviões inimigos a bombardeá-los; ou, ainda, na segunda situação, quando a esperança de escapar daquele terror é destroçada por torpedos a afundar embarcações lotadas, o cineasta consegue criar uma sucessão de impactos ao espectador, que é colocado perante o terror vivido por aqueles homens.

Há, na proposta do britânico, uma bem construída análise do heroísmo, sendo que esta característica pode ser encontrada tanto em personagens que buscam escapar daquele horror ilesos, se aproveitando de situações que os beneficiem naquela fuga, ou para aqueles que tendem a esquecer da própria segurança em prol de seus ideais. E diferente de outros exemplares do gênero de filmes bélicos, há uma contenção no que se refere a ufanismos e lições patrióticas, algo que ganha pontos com o espectador.

A ajuda veio dos compatriotas civis
O que define muito bem a mensagem de Dunkirk centra-se na breve fala de um personagem ao final do filme que, quando confrontado com o fato de os jovens que estão retornando da batalha apenas estão ali porque conseguiram escapar, escuta um deles dizer que eles apenas sobreviveram. Sua réplica define bem a insensatez da guerra quando este argumenta que não há nada de errado em sobreviver. 

E, realmente, não há. Soa piegas dizer que a esperança ainda rege, mas ao observar um dos soldados entrar no mar em busca do suicídio por afogamento, nota-se a importância de não perdê-la. Principalmente diante da insensatez da guerra. 

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Baby Driver

(EUA, 2017) Direção: Edgar Wright. Com Ansel Elgort, Lily James, Kevin Spacey, Jon Hamm, Jamie Foxx, Jon Bernthal.


Por João Paulo Barreto

Imagine-me escrevendo esse texto no mesmo ritmo contagiante que o personagem de Ansel Elgort, o Baby do título, demonstra em sua empolgação dançante, cantando ao som da Jon Spencer Blues Explosion durante a primeira cena do longa. Pois é. Essa é a sensação que um crítico tem ao sentar-se para traçar algumas linhas acerca de um filme como este. Não somente pelo ritmo acelerado de sua montagem nas cenas de ação ou de sua trilha sonora inspiradíssima. Todos estes elementos já são comuns em diversos trabalhos que tentam criar uma roupagem cool para cativar adolescentes. No entanto, um elemento diferencia Baby Driver de qualquer outra obra que tente criar esse mesmo tipo de ambiente. Tal elemento diferencial se chama Edgar Wright.

Aqui, Wright traz sua perícia na criação de narrativas econômicas a níveis semelhantes aos vistos em obras como Chumbo Grosso ou Todo Mundo Quase Morto, exemplos de montagens nas quais o diretor optou pela criação de elipses inventivas (observe a mudança do personagem Simon Pegg de Londres para o interior da Inglaterra no primeiro ou na já clássica utilização do zapear da TV como modo de explicar o apocalipse no segundo) e de fusões de cena que criam um ritmo único em suas obras.

Baby pronto para fazer o que faz de melhor
No caso de Baby Driver, o fiapo de história envolvendo um motorista de fugas para ladrões de bancos utiliza-se de diversos destes momentos. O ritmo do filme é criado não somente pelas obrigatórias (e fantásticas) sequências de perseguição, afinal, esta é a sua premissa principal, mas, também, pelas brincadeiras que o diretor, junto aos seus montadores Jonathan Amos e Paul Machliss, criam ao ligar os cortes em fusões surpreendentes de cenas, como quando a tampa de um copo de café leva a um botão de elevador, quando as letras das canções complementam visualmente o longa ou quando o cineasta volta a brincar com o mesmo artifício de usar sons da TV para influenciar falas de personagens.

Visualmente, alias, o trabalho de Edgar Wright geraria tópicos de análise para toda essa crítica, principalmente quando vemos a bela estética em situações como quando dois personagens escutam uma música dentro de uma lavanderia e os movimentos circulares das máquinas com roupas coloridas a representar a alegria daquele momento desenham um retrato belíssimo do cuidado da produção. Ainda em relação ao seu visual, o filme se esmera na sua economia narrativa, como quando vemos Baby adentra em uma pizzaria que busca por entregadores e, em questão de segundos, já sai pela porta dos fundos em seu uniforme e pronto para o trabalho. Do mesmo modo, quando este encontra a sua paixão pela primeira vez e ela parece entrar no cenário a flutuar, representando seu impacto romântico no protagonista, e, logo em seguida, reaparece em sua versão palpável.

Doc (Spacey) explica ao grupo as regras do assalto: todos confusos com Baby
No aspecto trilha sonora, pode-se dizer que Tarantino encontra em Wright um “rival” à altura no quesito de escolha de um soundtrack matador. Some a isso o fato de que suas canções, além de fazerem parte de modo externo e diegético do filme, servem como elementos de brincadeira para o diretor, quando este utiliza as suas batidas em ritmo paralelo ao som dos tiros disparados pelos personagens em certos momentos.

Resta falar da química entre seu grupo de personagens, que traz um Kevin Spacey destilando ironia com apenas 10% da crueldade de Frank Underwood (o momento em que ele reconhece uma referência de Monstros S.A. define bem), Jon Hamm deixando de lado qualquer traço da classe de seu Don Draper quando vemos seu personagem evoluir de bad nice guy para crazy motherfucker e a presença um tanto irritante e caricata de Jamie Foxx como o real antagonista do mocinho Baby. 

Efeito Halloween: compreensível confusão com os Myers
E é tal química que gera os melhores momentos do filme, como quando, em um dos rompantes de irritação para com a postura blasé de Baby, um dos personagens começa tirar de seu rosto os óculos que, junto com os constantes fones, são suas marcas e ele, pacientemente, começa a substituí-los um a um. Ou quando o serial killer Michael Myers é confundindo com Mike Myers... 

Daquele tipo de sessão que te faz sorrir ao sair da sala de projeção.



domingo, 23 de julho de 2017

De Canção em Canção

(Song to Song, EUA, 2017) Direção: Terrence Malick. Com Michael Fassbender, Rooney Mara, Ryan Gosling, Natalie Portman. 


Por João Paulo Barreto

Terrence Malick possui ao seu redor uma áurea de mistério. Pouco fotografado ou visto em público, já é notório o fato de que, após dois filmaços dirigidos na década de 1970 (Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso), o realizador entrou em um exílio cinematográfico.  Só voltou a dirigir vinte anos depois, em 1998, com Além da Linha Vermelha, uma poética e brilhante, porém não muito unânime, visão da Segunda Guerra Mundial. Após isso, um novo hiato, dessa vez mais breve (sete anos) e o diretor trouxe, em 2005, O Novo Mundo, sua versão live action da lenda de Pocahontas, que a Disney já havia popularizado nos anos 1990.

Percebia-se, no entanto, que apesar de certo tom aventureiro na adaptação, os vinte anos passados entre Days of Heaven e The Thin Red Line haviam mexido com o modo do diretor fazer cinema. As questões existencialistas inseridas no filme bélico passaram a fazer parte de suas narrativas com cada vez mais presença. Após o teor histórico da exploração branca para com o povo nativo americano (filme que já trazia certo tom existencial em sua proposta), Malick levou seis anos para criar sua mais simbólica obra após o drama de guerra do final do século passado. Com A Árvore da Vida, de 2011, o também roteirista elevou os padrões para o que se pode chamar de cinema contemplativo, criando uma profunda reflexão acerca da perda e sua relação com o que podemos chamar evolução humana. Um trabalho que exige bastante do espectador, mas que, ao seu final, sabe trazer uma pertinente reflexão acerca da função do cinema como algo além do puro entretenimento.

O fato de que não foi abraçado por muita gente vai sem dizer, apesar de indicações ao Oscar de melhor filme e diretor terem feito o longa atrair bastante curiosidade. Mas, o mais importante, porém, é a percepção de que ali o cineasta registrava uma marca de criação que tornariam seus filmes identificáveis com poucos segundos de projeção. Os dramas individuais, as angústias intimas, a dor oriunda da ansiedade, o medo às vezes infundado e vários outros sentimentos comuns que atormentam as pessoas passariam a ser abordados de forma crucial e essencialmente humana por Malick em seus roteiros.

Vida glamourosa, mas a sensação de vazio permanece
Chega-se a 2017 e o diretor reúne em uma só história não somente a já marcante percepção de análise comportamental dos indivíduos em seus auto questionamentos, mas, também, acerta ao inseri-la em um contexto no qual a música e a indústria por trás da falsa atmosfera glamourosa do showbizz no rock and roll são colocadas como ponto de partida da suposta beleza a rodear o mundo daqueles personagens. Trata-se de pessoas cujas vidas, repletas de cores, sons e sorrisos disfarçam certo vazio que seus questionamentos tendem a tornar evidentes. Entre belos semblantes, corpos e peles perfeitas, contas bancárias recheadas e rotinas aparentemente de pura diversão, um incômodo constante parece atormentá-los, e é justamente a ausência de uma definição para ele que mais causa o conflito. É aí que reside a proposta de Terrence Malick.

Michael Fassbender, Rooney Mara e Ryan Goling formam aquele triangulo composto por um empresário e dois músicos. Os últimos são artistas apresentados a todo conforto concedido pelo sucesso comercial que o tino para negócios do primeiro lhes traz. Entre viagens em jatos particulares, festas em ostentosas casas, encontros com pesos pesados do rock, suas rotinas parecem feitas apenas de deslumbramento, algo que a fotografia do premiado Emmanuel Lubezki, com toda sua claridade exposta juntamente com a opção já marcante de câmera fluída e os poucos cortes de Malick denotam de forma nítida diante do espectador.

Patti Smith, de modo singelo, entrega grandes momentos no filme
Mas, claro, aquelas vidas não são feitas somente de alegrias. O recorte do envolvimento daquelas pessoas traz uma sensação de vazio. Quando a personagem da garçonete vivida por Natalie Portman surge em cena (algo que salienta ainda mais a ideia de que a beleza plástica proposta pelo filme em seus personagens os tornam ainda menos alcançáveis ao público), a esperança de que encontraremos alguém mais próximo de realidade não dura muito tempo, uma vez que ela também é dragada para aquele universo. E o mais curioso é que tal entrada acontece a partir de uma confissão feita pelo empresário Cook, personagem de Fassbender, ao brincar (será?) que precisa dela, pois não pode ser deixado sozinho. Precisamente essa sensação que o define durante todo o longa.

Esse medo e essa fuga da solidão são os sentimentos que melhor enquadram aquelas pessoas. Dentre os momentos mais marcantes a ilustrar essa ideia de tentativa de escape, o encontro com a cantora Patti Smith quando esta explica as razões de ainda usar sua aliança mesmo viúva, é um que reverbera exatamente por ilustrar, ao espectador atento, a tragicidade que envolverá um dos personagens apresentados. Dentre cobranças familiares em suas comparações, exigências auto impostas na tentativa de se alcançar algo que se acredita ser a felicidade, essa fuga é das apreensões que mais torturam aqueles indivíduos. E não é o que nos atormenta a todos? É justamente disso que Malick busca tratar.


sábado, 15 de julho de 2017

Perdidos em Paris

(Paris Pieds Nus, França, 2016) Direção: Dominique Abel e Fiona Gordon. Com Emmanuelle Riva, Pierre Richard. 


Por João Paulo Barreto

É na ingenuidade e leveza que se baseia o cinema proposto pelo casal de cineastas Fiona Gordon e Dominique Abel no divertido Perdidos em Paris. Tal proposta, algo por demais bem vindo em tempos de um cinema feito com base quase exclusiva em uma abordagem cínica, apesar de não ser uma constante na filmografia dos realizadores, encontra um tom preciso na ideia de contar sua história a partir da linha tênue entre o burlesco e o absurdo. Entre o cômico e o teatral.

Na visita da canadense Fiona (vivida pela própria diretora) a Paris no intuito de buscar sua tia senil e, então, desaparecida, a desculpa para as situações nonsenses é plantada, e o desenvolvimento da história segue a partir dessa premissa, a de caminhar entre momentos nos quais o espectador é colocado diante de uma série de eventos que brincam com a linearidade da montagem para liberar as pistas do que realmente aconteceu. Nessa construção de acontecimentos, algo que não subestima a inteligência do espectador justamente por conta da complexidade da escolha de seus cortes e nas inserções seguintes para tornar fluída a narrativa dentro de sua comicidade, o desenrolar da trama é apresentado de forma, contrário de como seria de se esperar, não estabanada ou tentando arrancar gargalhadas do espectador. A forma, aqui, é mais natural, dando ao público a chance de degustar cada traquinagem e gags visuais, cada colagem de pistas e, o mais importante, observar os maneirismos físicos de seus dois protagonistas, no caso, o segundo vivido pelo próprio Abel na presença de um mendigo oportunista, mas abalado pela solidão.

Um dos últimos trabalhos da atriz Emmanuelle Riva
E neste sentido, Dominique e FIona, dentro de seus personagens homônimos, se engrandecem. E cada momento dos dois em cena, com suas reações estupefatas aos acontecimentos ao seu redor, mas sem se render a caras, gritos e bocas para causar uma graça rasteira, é uma lembrança à platéia de que estamos diante de uma obra cujo único compromisso é o de causar sorrisos sinceros. Sejam eles oriundos dos momentos que utilizam um engenhoso planejamento de montagem em busca da comicidade, ou quando preferem apenas saudar a comédia musical francesa ao inserir breves participações como a do ícone Pierre Richard, que, em cena ao lado de Emmanuelle Riva, tem um tenro momento de dança que remete aos clássicos números musicais dirigidos por Jacques Demy, mas, aqui, sem canto.

E, já que o nome da grande dama, Emmanuelle Riva, veio à tona, é importante salientar esse que representou um dos seus últimos momentos em vida. Aqui, ela parece se divertir de maneira única, com cenas de beijo, fugas da polícia, sexo casual e dança. Após construir toda sua longa carreira em papéis marcados por um peso dramático em suas atuações através de parcerias como as feitas com Resnais, Pontecorvo, Melville e, mais recentemente, Haneke, é bonito observá-la se despedir de modo tão leve, tão descompromissado, um presente inesperado na final da carreira para alguém que viria a falecer poucos meses após terminar as gravações.

A sensação de quem sai da sala ao passar menos de noventa minutos diante daquela homenagem a nomes como Chaplin, Buster Keaton e Jacques Tati é a da mesma leveza vista em sua ideia original. E é raro encontrar um cinema que conceda ao espectador esse tipo de pureza narrativa. 

Entrevista: Fiona Gordon e Dominique Abel



                                                                                              Foto: Rogério Resende
Por João Paulo Barreto

O casal de cineastas Fiona Gordon e Dominique Abel passam boa parte da entrevista com um sorriso no rosto. É um clima amistoso, de quem parece visar um cinema calcado justamente na gentileza, mas sem apelar para artifícios de manipular a audiência na ideia tão comum do feeling good movie. A proposta dos dois está na utilização do audiovisual como uma possibilidade de construir comédias baseadas na pureza de seus personagens e, principalmente, no uso do gestual e não tanto do verbal para desenvolvimento dos mesmos, algo que remete a mestres como Tati, Buster Keaton e Chaplin. “Desde a Escola de Teatro Jacques Lecoq, onde estudamos mais de quarenta anos atrás, na França, buscamos aprimorar essa ideia do uso do corpo, dessa linguagem tão espontânea”, afirma Fiona. Ela canadense, ele belga, acabaram por se unir tanto na profissão como romanticamente, buscando uma arte que aprimorasse essa utilização do corpo como forma de comunicação. Comemoram quarenta anos de carreira em 2017 e continuam na busca desse aprimoramento. O cinema agradece.

No filme, é perceptível uma utilização do gestual, da comunicação corporal no intuito de substituir a verbal. Como se dá esse processo de criação?

DOMINIQUE - Nós adoramos a linguagem corporal. Adoramos observar as outras pessoas. O corpo fala, sabe? E muitas vezes o corpo fala uma coisa diferente do que a boca está falando. A linguagem do corpo é mais difusa. É menos precisa do que a palavra. Mas a palavra, às vezes, pode matar a verdade. O corpo, neste caso, é mais espontâneo. Você não controla tanto o corpo. Você o controla menos do que a palavra. Nós, como diretores, gostamos de observar as situações em que as pessoas não sabem o que dizer, quando ficam embaraçadas em expressar o que pensam. Muitas vezes, é o ato físico que entrega tais reações, como por exemplo, a vergonha sentida ao tropeçar, ou cometer algum ato estabanado. Esse tipo de constrangimento, de embaraço, diz muito sobre a própria humanidade. Cada corpo tem a sua linguagem, uma vez que eles são diferentes uns dos outros e essa diversidade é algo que admiramos bastante. A linguagem do corpo é algo mais subterrâneo. A linguagem normal, a fala, as palavras, fazem parte de uma algo maior, claro, mas elas são apenas a ponta de um iceberg para nós. O corpo fala muito mais, possui muito mais expressão do que as palavras em si.

O casal de diretores com a atriz Emmanuelle Riva

FIONA – Sim, mas não se trata apenas de expressão corporal, claro. Ela é muito importante para nós, mas é importante que ela esteja inserida, que tenha um contexto. Por exemplo, um mendigo que faz seu acampamento debaixo da representação da estátua da liberdade em Paris é diferente de um que faça um acampamento no campo, ou que faça na frente de um parlamento, por exemplo. Então, o contexto é um pouco como o corpo. Ele fala do que está acontecendo de uma maneira mais aberta, e deixa o espectador poder interpretar também. E para nós, além disso, há um sentido mais profundo na linguagem corporal. Muitas vezes a gente não consegue se expressar, não achamos as palavras certas. Tem gente que não é bom com as palavras, mas o corpo não mente.

Eu li uma declaração de vocês acerca do seu modo de fazer cinema, que vocês buscam um cinema que seja calcado na pureza e na ingenuidade, e não tanto no cinismo, que como a gente vê muitas obras hoje sendo feitas.

FIONA - Não chegou a ser uma escolha proposital. Isso vem um pouco da nossa natureza, uma vez que somos assim. Nosso prisma enxerga as coisas desse modo, e não de uma forma que busca fazer uma parodia de tudo. Nós gostamos de entrar na pele dos personagens, mostrar as emoções reais, as fraquezas, os seus vieses. E essa ingenuidade é uma pequena forma de resistência contra essa obscuridade e negatividade que o cinema gosta de descrever sempre, que já dura muito tempo. Nossa proposta de cinema visa navegar o mundo com essa pureza, com esse modo de resistência.



Seu filme foi um dos últimos trabalhos da Emmanuelle Riva. Como foi a experiência e como essa oportunidade se apresentou?

DOMINIQUE – Perdidos em Paris foi o primeiro filme burlesco que ela fez. Isso nos deixou muito felizes. Ao conversar com ela, percebemos que ela gostava muito do Buster Keaton, mas, curiosamente, nunca havia tido chance de trabalhar com esse tipo de cinema. Somente aos 88 anos é que ela foi ter essa chance e nos disse que adorou, chegando a dizer que queria fazer outro, que adoraria fazer outro. Sua morte nos deixou muito entristecidos por conta dessa vontade que vimos nela em querer trabalhar mais. Nós somos muito gratos a Emmanuelle. Curioso que nossa busca inicial era que a personagem fosse interpretada por uma atriz amadora. Nós gostamos muito desse lado não profissional que os atores amadores têm a oferecer. Esse jeito um pouco desajeitado de se expressar. Mas, quando a personagem estava se desenvolvendo no papel, começamos a pensar em uma atriz profissional. E nós não tínhamos ideia de que a Riva possuía esse outro lado mais voltado para a comédia. Nós a conhecíamos de papeis dramáticos. Mas, em 2012, na ocasião de sua indicação ao Oscar pelo trabalho em Amour, ela fez um vídeo destinado ao New York Times em que aparecia brincando com um guarda-chuva, imitando o vagabundo, personagem do Chaplin, soltando bolinhas de sabão, usando uma capa de plástico com o S do Superman, algo bem descontraído e brincalhão. Então, percebemos esse lado criança dela, essa face divertida. E ela tinha uma risada muito infantil, algo bem espontâneo. Lembro-me de ouvi-la dizer que se sentia com quatorze anos, mas seu corpo não entendia que ela estava com 88 anos. Ela alimentou muito o filme através dessa personalidade. Ela era poetisa. Costumava levantar de manhã, escrever poesias, uma pessoa que não tinha filhos, vivia sozinha, e era alguém realmente insubmissa, sabe? Radical em suas escolhas e, realmente, esse lado poetisa que ela possuía foi imprescindível para nosso filme.

É bonito que ela venha a encerrar sua carreira com papel tão leve, quando sua imagem esteve associada a papeis tão pesados quanto os que fez com Pontecorvo, Resnais, Haneke, por exemplo.


FIONA – Nós acreditamos ter feito bem a ela, tanto quanto ela nos fez bem. Nem todos os nosso filmes são tão leves assim, mas Perdidos em Paris, sim. O seu resultado final foi muito, muito leve. Isso é algo que nos deixa muito orgulhosos por ter podido contar com ela. 

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Homem-Aranha: De volta ao Lar

(SpiderMan Homecoming, EUA, 2017) Direção Jon Watts. Com Tom Holland, Michael Keaton, Marisa Tomei, Robert Downey Jr., Jon Fraveau.


Por João Paulo Barreto

Quinze anos, seis filmes (sendo três deles verdadeiros desastres), e parece que o aracnídeo da Marvel encontrou o seu equilíbrio entre comédia, ação e drama de acordo com a sua fonte oriunda dos quadrinhos. O tal retorno à casa pregado no título, com alusão à parceira entre Sony (detentora dos direitos cinematográficos) e Marvel Studios, que pôde, finalmente, trabalhar uma das suas mais carismáticas figuras, condiz bem com a ideia de volta. Volta não somente à casa das ideias (aqui, provando ser a casa das boas ideias), mas ao tom correto no explorar do personagem.

Ao enquadrar de modo convincente a presença de Peter Parker em uma postura essencialmente adolescente (algo que falharam em fazer nos cinco longas anteriores por  conta da má escolha dos atores), o filme de Jon Watts já acerta de cara o alvo com seu público mais cobiçado. E neste sentido, consegue desenvolver o núcleo narrativo do protagonista em seu ambiente escolar, cativando a empatia do público com os dramas vistos em tela, explorando ao máximo o conceito de nerd que se destaca em ambiente hostil (mas sem, necessariamente, apelar para os óbvios conflitos de bullying) e utilizando esse mesmo conceito para, mais uma vez, acertar na identificação do público alvo do filme.

Downey Jr. em participação extra em sua já perfeita química como Stark
Em seu roteiro escrito a muitas mãos (sete pessoas, o que nunca é um bom sinal), De Volta para Casa erra pouco. Seus erros vêm, principalmente, do excesso de cenas que poderiam ser definidas como clímax, algo que torna o filme um tanto inchado, principalmente quando percebemos que tais momentos são inseridos de modo um tanto... não queria dizer gratuito, pois as cenas até que se justificam para a construção dos conflitos internos do protagonista diante dos desafios e dos choques com autoridades que lhes são apresentados, mas percebe-se uma clara sedução por vários espetáculos visuais, o que acaba prejudicando o ritmo do filme e do seu desenvolvimento. Mas, enfim, estamos falando dos trabalhos da Marvel Studios. O espetáculo visual é algo obrigatório. 

Mas o principal acerto do filme ainda é o seu flerte com a comédia. Desde a adaptação de Peter Parker ao uniforme que lhe foi projetado (as piadas com a voz gutural no modo ameaça, algo que brinca com o Batman de Christian Bale, são impagáveis) passando pela referência irônica ao primeiro longa de 2002, dirigido por Sam Raimi, quando certo beijo icônico foi exibido, ou mesmo o de 2004, quando o desastre em um meio de transporte é contido pelo herói usando seu corpo quando as teias não são mais suficientes,  toda a proposta de utilizar-se de um tom cômico em sua evolução é algo muito bem vindo. Principalmente para um personagem que tem como uma de suas principais marcas as piadas durante os momentos de ação, algo pouquíssimo aproveitado anteriormente.

Michael Keaton em sua crível criação 
Nessa construção de graça, inclusive, é impossível não imaginar o que um diretor que domina a cultura pop do modo como Edgard Wright domina faria aqui. Para observar a falta que sua subliminaridade faz, perceba a homenagem óbvia aqui feita a Ferris Buller, quando Peter Parker corre de quintal em quintal, mas o filme, para tornar tudo mastigado para um público subestimado e possivelmente tido como preguiçoso, prefere inserir uma TV com a mesma cena oriunda do clássico de John Hughes. Do mesmo modo, a necessidade d explicar em diálogo claramente expositivo que o amigo Ned de Peter havia, finalmente, se tornado o escudeiro ajudante do herói, algo que ele vinha preconizando desde o começo.

Em outro ponto de acerto, porém, percebemos a inserção de um vilão que, apesar de suas semelhanças físicas com o vivido por Willem Dafoe em 2002, possui sua construção calcada em algo sólido, de acordo com uma proposta inserida, curiosamente, pela DC com os filmes dirigidos por Christopher Nolan. Sua motivação é compreensível, sua proposta de atuação no mercado de armas, crível. Sua presença no filme se destaca em uma proposta que, apesar de um claro foco em uma audiência juvenil, dialoga com uma análise essencialmente adulta. Até meso a vestimenta do personagem, com aquele casaco de gola que remete ao abutre dos quadrinhos, possui uma organicidade palpável, distante daquela ideia baseada em vilão de seriado japonês vista no Duende Verde de Sam Raimi.

Momento de prova: construção da coragem de Peter é fluída e seus erros, inevitáveis

Além disso, observar a contínua ascensão de Michael Keaton em bons papéis desde seu retorno em Birdman é algo que gera certo regozijo no espectador que tanto admira o ator. Aqui, sua atuação escapa da armadilha de criação caricata e forçadamente voltada para uma ideia excêntrica de personagem, algo que Jesse Eisenberg falhou com seu Lex Luthor a aludir Ledger em Dark Knight e, do mesmo modo, Jared Leto sendo desperdiçado no mesmo papel.  Em sua postura de vilão, Toomes está interessado apenas na sua sobrevivência e de sua família, deixando bem claro isso no embate direto com o próprio Peter Parker, em uma cena cuja iluminação traz um quê, muito bem observado pelo colega de cabine Klaus Hastenreiter, de Hitchcock, com certa revelação sendo feita entregue pelo personagem e as cores de um semáforo denotando aquela percepção e aludindo diretamente à imagem de seu alter ego.

E, fechando, Tom Holland, jovem ator que parece se divertir muito com a oportunidade de dar vida a tão icônica figura da cultura pop. Sua caracterização honra o personagem, mesmo que os gadgets tecnológicos inseridos por Tony Stark em seu uniforme fujam um pouco do conceito simples do Homem-Aranha que "nunca bate, só apanha". Esse detalhe, inclusive, é muito bem utilizado pelo filme em seu último ato, quando o herói surge utilizando não o tal uniforme futurista, mas, sim sua fantasia feita a mão, algo inserido justamente como uma proposta de compensar tamanha, digamos, vantagem concedida ao adolescente em seus confrontos. 

No mais, a presença de Robert Downey Jr. é, com o perdão da expressão clichê, a sempre hilária cereja do bolo.

Finalmente.