segunda-feira, 25 de março de 2019

Nós





Os espelhos da natureza humana segundo Jordan Peele


Autor do cultuado Corra!, diretor foca nas várias faces e 

origens da violência com o horripilante Nós


Por João Paulo Barreto


Jordan Peele apresenta em seu novo filme, Nós, uma pungente análise da crueldade que fica à espreita. A crueldade que dobra indivíduos e os fazem ceder perante aquele sentimento impetuoso vinculado ao sadismo e que pode vir à tona a qualquer momento. Aqui, a teoria do doppelgänger, originária da cultura alemã, que traz a ideia de que cada pessoa possui sua cópia oposta em algum lugar, é a proposta que guia o roteiro de Peele. Nessa proposta, a ideia de que as faces da maldade se fazem presentes em todos se sobressai. Mas esta é apenas uma das várias que o cineasta traz em seu rico estudo do comportamento humano e o limite (ultrapassável ou não) definido para este pela violência. Na história da família Wilson, cuja mãe de dois filhos, Adelaide (Lupita Nyong’o), carrega um trauma vinculado à infância, o reencontro da personagem com esse trauma e as consequências desse mergulhar é o que move aquela trama que, por debaixo de uma camada de horror slasher, uma reflexão precisa acerca do limiar da natureza violenta que cada um pode possuir se faz presente.

Enquanto em Corra!, Jordan Peele criou um acido e genial texto acerca do racismo e de suas formas de manifestação, mantendo a discussão em seu filme de estreia em torno da ideia da diferença racial ser encarada absurdamente por alguns como uma questão de exotismo e/ou fetichismo, em Nós, apesar de trazer uma família de protagonistas negros, essa proposta não segue para uma discussão esperada por muitos espectadores acerca desse fato. Aqui, a violência atinge todos, não somente a família afro-americana formada por Adelaide, Gabe e filhos, mas, também, a de seus amigos caucasianos, cujo encontro com seus duplos se dá na mesma forma sanguinolenta e vingativa. Em Nós, essa violência atinge e se origina em todos, independente de sua etnia, gênero ou classe social. Essa natureza violenta está na superfície de todos e é justamente essa a ideia que Peele quer trazer em seu filme. O mal está na violência e na cultura da mesma.

Doppelgänger

ALEGORIA CATÁRTICA

Há diversos túneis não utilizados no subterrâneo de cidades estadunidenses, diz uma das linhas do texto que abre Nós. Descobriremos a razão para aquela inserção textual de modo gradativo, quando a explicação para os duplos que invadem a casa da família Wilson se apresenta. Até lá, a percepção desses túneis como labirintos internos da mente de cada personagem daquela história é plena. São nestes labirintos que a dicotomia entre bem e mal reside. E nada mais sugestivo que os coelhos a habitar um deles, quando a ideia de seguir o coelho branco nos remete a Alice caindo pelo fosso de sua mente. A diferença é que a loucura necessária ali surge de modo mais violento para os que habitam aquele universo sádico de Nós.

Na alegoria dos duplos (ou doppelgänger), Peele concede uma catarse cinematográfica àquela reflexão vinculada ao ultrapassar da linha entre o humano e a barbárie. Porém, do mesmo modo que o diretor brinda os fãs do cinema de gênero com um espetáculo visual que beira ao gore, ele nos permite observar algo além daquele frenesi sanguinolento. Por trás daquela adrenalina, está a percepção de como a compreensão, o diálogo e, com o perdão do clichê idealizado, o amor podem delinear e construir um destino harmonioso para cada pessoa. O olhar de Adelaide para o seu filho e o desvendar de seu passado que lhe chega ao encerrar aquele trauma dá ao espectador essa mesma conclusão. O meio constrói o individuo. As relações humanas os definem.

Red, a dupla maligna de Adelaide

“NÓS SOMOS AMERICANOS”

Todos possuem suas causas. Todos acreditam estar certos naquilo que defendem. E Jordan Peele está ciente disso ao inserir em seus duplos uma causa, uma luta por uma sobrevivência que eles exigem possuir e que estão dispostos a cometer atrocidades no intuito de alcançar. E isso independe do fato deles desconhecerem noções de comunidade e respeito àquilo que é diferente. E, aqui, a importância de salientar que as figuras em questão são espelhos de nós mesmos como seres humanos. Nada nos difere deles fisicamente. E quando se chega ao ponto de sobrevivência, nem mesmo o comportamento explosivo e violento se faz díspar. No entanto, a corrente demonstrada pelas mãos dadas por todos aqueles seres, a percepção de que a maioria que está ascendendo é a aquela do outro lado do espelho, nos aterroriza tanto quanto a ideia de um duplo maligno a nos espreitar no quintal de casa.

Trata-se de uma obra que coloca principalmente os Estados Unidos em uma análise da violência que parece guiar o país. Mas tal análise não se enquadra aqui apenas ao lugar de origem do roteirista Jordan Peele, podendo ser aplicado a atos de crueldade que nascem do ímpeto de indivíduos oriundos de qualquer parte do mundo. E, da mesma forma como os habitantes do submundo a trajar vermelho no universo de Nós, tais indivíduos estão dispostos a machucar inocentes e morrer defendendo as insanidades nas quais acreditam. 

E, claro, o foco aqui é, obviamente, a trumplândia. Afinal, apenas para ficarmos em fatos recentes, foi lá que um homem abriu fogo contra fieis de uma igreja do Texas e onde carros foram jogados contra multidões durante uma manifestação em Charlottesville, no estado da Virginia.

Quando os duplos da família Wilson surgem pela primeira vez, sua apresentação vem acompanhada pela resposta de Red, oposta de Adelaide, para a pergunta “quem são vocês?”. A réplica? “Somos americanos”.

Nada mais direto e preciso, Jordan.

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*Texto originalmente publicado na versão on line da Revista Continente


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