quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Livro - Novas Fronteiras do Documentário

Decifrar o
 Real

LIVRO Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficção, autor Piero Sbragia traça perspectivas de análise do cinema documental e entrevista diretores baianos

Por João Paulo Barreto

A foto que ilustra essa capa do Caderno 2 de A Tarde, na qual o escritor Piero Sbragia conversa com o documentarista Eduardo Coutinho, foi tirada em outubro de 2013 durante uma tarde de autógrafos de um livro que trazia uma coletânea de textos do cineasta. A foto, clicada pelo amigo de Piero, Pedro Moreira, traz um Eduardo Coutinho um tanto desfocado. No prefácio do livro Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, que Piero Sbragia lança em 2020, o autor observa que a falta de foco daquele registro é "conotativa e denotativa", pois revela "o nervosismo dos jovens diante do mestre". Na conversa com Piero  para essa matéria, relembrei uma comparação semelhante com a capa do Blonde on Blone, na qual o escritor (cujo nome não me recordo) fala que a imagem um tanto borrada de Bob Dylan refletia a velocidade na qual ele estava naquele distante 1966. Digo a Piero que enxerguei na imagem borrada de Eduardo Coutinho a mesma velocidade e visão à frente do seu próprio tempo, que o colocava em um patamar diferenciado de entendimento da nossa realidade.

Coutinho e Piero Sbragia em momento definidor para o autor

No seu livro, Piero Sbragia analisa diversos aspectos da construção do documentário, focando não somente em alguns desses aspectos atrelados a Coutinho e sua atenção a um cinema documental visando a audição de suas personagens, mas, também, a Cao Guimarães, diretor cujos filmes seguem por um norte de introspecção e observação.  Piero observa que "é interessante essa conexão do Cao com o Coutinho porque, efetivamente, eles fazem filmes muito diferentes. O Coutinho, para mim, sempre foi um cara à frente do seu tempo. Ele antecipava tendências. Era um cara da vanguarda, no sentido da origem da palavra, do francês avant-garde. A pessoa que ia na frente para levar bala. Levava o tiro primeiro, mas conseguia chegar primeiro aos lugares. Eu acho que o Coutinho é esse cara. O Cao eu vejo mais como alguém atento ao zeitgeist, ao tempo. O Cao é, para mim, o reflexo do momento, da nossa contemporaneidade. E eu coloco os dois no mesmo patamar", pontua o escritor ao comparar Coutinho a Cao e salientar a ideia de observar a velocidade do primeiro, cuja inesperada metáfora que encontramos na foto do seu encontro com o documentarista reverbera nesse texto e em quase sete anos após sua morte brutal.

VOZES BAIANAS

Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, Sbragia, além de aprofundar o estudo do cinema de documentário, algo que surgiu a partir da construção de sua dissertação de mestrado, traz na visão de dez documentaristas de diferentes gerações e abordagens de cinema, um maneira de traduzir para a pessoa de posse do seu livro uma análise da realidade por olhares atentos. Assim, através de nomes como os de Amanda Kamanchek, Cristiano Burlan, Eduardo Escorel, Eliza Capai, Geraldo Sarno, Juca Badaró, Maria Augusta Ramos, Orlando Senna, Paula Trabulsi e Susanna Lira, o autor cria um panorama amplo desse cinema que registra para sua audiência nuances profundas do real.

O veterano Geraldo Sarno é um dos entrevistados no livro

Dentre os dez nomes de cineastas entrevistados por Piero para seu livro, veteranos da Bahia como Geraldo Sarno e Orlando Senna, bem como Juca Badaró, diretor do premiado As Cores da Serpente, e que representa o estado em uma nova geração de documentaristas, uma abordagem de diferentes olhares dentro da experiência de criação do cinema documental é feita. "Eu queria ter pessoas como o Geraldo Sarno, como o Orlando Senna, e como o Eduardo Escorel que, juntos, têm 150 anos de cinema. Eu queria ter pessoas como o Juca Badaró. como a Amanda Kamanchek , que só têm um longa metragem no currículo, mas que conseguiram realizar nesses longas obras que, de certa maneira, foram revolucionárias para mim", explica Piero e salienta a presença de Sarno, Senna e Badaró de forma a trazer o foco de sua abordagem do cinema de documentário brasileiro para fora do eixo Rio-SP. "Eu tentei fugir um pouco dessa análise limitada de que o Cinema no Brasil parece que só foi feito no Rio ou em São Paulo. Eu acho muito importante e saudável em qualquer discussão de cinema que a gente tenha, seja em um livro, um debate ou em uma live, pensarmos o cinema como algo produzido no Brasil inteiro. Temos muitos jovens talentos indígenas de Manaus, de Roraima, do Acre, que estão produzindo filmes, curtas, longas", exemplifica o escritor. 


Um dos entrevistados, Orlando Senna em foto clássica de sua labuta


"CUIDADO COM OS MITOS"

Retornando ao encontro do autor com Eduardo Coutinho, em 2013, Piero salienta o fato de que a assinatura do cineasta no livro lançado à época continha um pseudônimo (Stephen Rose). "O maior documentarista brasileiro, em um autografo num livro, adota um pseudônimo ficcional. O que isso significa? O que isso representa? A leitura que eu faço disso é como se ele estivesse falando para mim: 'Olha, não me mitifique. Não crie um mito sobre a minha pessoa'", observa. No ato de se mitificar pessoas, o risco dessa importância ser dada a oportunistas mal intencionados reverbera para o presente caótico. "Quando o Coutinho assina como Stephen Rose, em outras palavras, ele está falando assim: 'cuidado com os mitos'. E quando eu falo "cuidado com os mitos", fazendo essa ponte de 2013 para 2020, é claro que eu também estou falando de Jair Bolsonaro. É claro que eu também estou falando de várias pessoas e de vários políticos que se elegem na sombra de um mito que é construído sobre eles", sinaliza.

No estudo do cinema de documentário apresentado por Piero Sbragia em seu livro, a análise da obra de Cao Guimarães, além da visita a alguns filmes de Eduardo Coutinho, juntamente aos aspectos teorizados por Bill Nichols em relação aos modos construção dentro do documentário, se destaca a necessidade da compreensão atenta do diálogo, da escuta, e do olhar urgente à nossa realidade. "Vivemos hoje em uma sociedade que berra. As pessoas berram nas redes, gritam nas janelas, batem panelas, fazem buzinaço. Todo mundo grita e o que de fato está acontecendo? Nada! Que tipo de mudança essa gritaria toda traz para o Brasil? Nenhuma. Eu acho que gritar não é o caminho. Talvez o caminho seja ouvir. Que é o que o Coutinho fez nos filmes dele. O Coutinho sempre foi um bom ouvinte. Eu sinto essa necessidade da gente ouvir mais nesse Brasil em que as pessoas gritam muito", finaliza.

Preciso!

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/11/2020




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