terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O Ano da Mídia Física


Estreitando diálogo com colecionadores e focando em lançamentos  de filmes com extras, embalagens especiais e memorabilia, distribuidoras e lojas de DVDs e blu-rays reinventam o mercado

Por João Paulo Barreto

Em abril, quando A TARDE abordou em uma reportagem o consumode filmes em  mídia física (DVDs eblu-rays), o termo "combalido" para referenciar esse mercado foi utilizado não de maneira errônea, mas, ainda assim, precipitada. Claro, naquele momento,  vínhamos de um período difícil. Tais lançamentos, principalmente em blu-rays, estavam se tornando escassos no Brasil. Com poucas distribuidoras a investir capital em tiragens de filmes a partir de um tipo de mídia ameaçada pelo streaming (com seus algoritmos a definir preferências, escolhas e tempo limitado para acesso a obras), via-se um futuro com os dias contados para essa maneira de se consumir cinema, conhecer escolas e obras completas de cineastas de todo o mundo. Com a pandemia deflagrada, fechamento de salas, suspensão de estreias e o (ainda necessário) confinamento tendo seu início por aqui, a percepção era de um mercado com os dias contados. Essa previsão, porém, vista hoje em retrospecto, não poderia estar mais distante da realidade.

Além das já conhecidas distribuidoras, como Obras-Primas do Cinema, Versátil e CPC Umes Filmes, que já tinham em seus catálogos lançamentos em blu-ray oriundos de períodos anteriores, o ano de 2020 trouxe para o conhecimento amplo do público neste mercado atualmente de nicho e (quase) restrito a colecionadores, lojas virtuais que também passaram a investir em lançamentos exclusivos. É o caso da FAMDvD e The Originals, cujos proprietários, Fabio Martins e Fernando Alves, respectivamente, mantêm em suas áreas de trabalho um foco centrado a um tipo de clientela ciente do esforço em se manter viva essa maneira de se consumir cinema em um tipo de entretenimento para além do streaming e suas limitações de qualidade.  


Fabio Martins, proprietário da FAMDvD

"Eu pensava muito sobre essa possibilidade de trazer um lançamento em blu-ray de um filme que estava esgotado. Sobre ser ou não viável. A pergunta era: 'por que não pode ser feito? Alguém já tentou?'  Nas conversas que eu  tinha com distribuidoras e outros lojistas, eles falavam: 'olha, blu-ray acabou. Isso não dá dinheiro. Aqui no Brasil, não vingou.'  E isso me incomodava muito porque eu olhava para o (site) Mercado Livre, e pediam altos valores por filmes esgotados. A conta não fechava. Como pode um produto ser tão valorizado por alguns, e quem está vendendo diz que não vingou, que blu-ray não vende?", relembra Fabio Martins, cuja loja, FAMDvD, no ramo há 12 anos, bancou no primeiro semestre, através da Universal Pictures, uma nova tiragem do filme A Bruxa. Sucesso de crítica lançado em mídia física em 2016, o longa teve todo seu estoque vendido na ocasião e, consequentemente, unidades passaram a ser especuladas no Mercado Livre. Fabio ainda trouxe de volta, através da Sony Pictures, outro fenômeno de vendas em uma nova tiragem: O Barco, clássico filme de Wolfgang Petersen, cujas poucas unidades em blu-ray à venda no mesmo Mercado Livre chegavam a valores que ultrapassavam R$500,00. Atualmente, já está esgotado.

Fernando Alves, proprietário da The Originals

No mesmo ramo, Fernando Alves, da The Originals, loja virtual que desde os anos 2000 atua nesse mercado, também foi responsável por trazer para o Brasil filmes de apelo ao público colecionador no formato do blu-ray, cujo som e imagem digitais deixam para trás qualquer opção em streaming ou DVD. O critério de escolha do que será lançado passa por um crivo analítico de quem atua já há quase vinte anos no ramo de filmes em mídia física. "É um risco muito grande os lançamentos exclusivos que fazemos hoje. Para fazer chegar esses títulos aos colecionadores. E não podemos errar muito, porque somos empresas pequenas. Não temos essa margem para erro", comenta Fernando em relação a escolha de quais filmes traz para o acervo de lançamentos exclusivos de sua loja, lembrando que as tiragens são de mil unidades. Dentre esses acertos, Nós, filme do Jordan Peele, até então inédito em mídia física no Brasil, bem como Ex Machina, surpreendente ficção científica de 2014, compõem parte do seu variado catálogo, cujos lançamentos exclusivos acompanham de perto as demandas dos colecionadores brasileiros.

Igor Oliveira, coordenador do selo CPC Umes Filmes

NICHO DO NICHO

Mas para além do apelo da cultura pop em filmes cujo chamado "hype" já colabora bastante em estratégias de vendas e interesse do público que ainda consome DVDs e blu-rays, o CPC Umes Filmes trabalha exclusivamente com obras do cinema soviético e russo, cuja audiência focada em um filmografia fora do apelo hollywoodiano denota uma característica ainda mais marcante para esse mercado. " O CPC UMES Filmes é o nicho dentro do nicho. Mas esse mercado de nicho do colecionismo tem essas duas características. Ele é muito restrito, e quem está dentro dele, tem uma qualidade de interesse de informação muito alta", explica Igor Oliveira, coordenador da distribuidora, cujas obras em blu-ray como Stalker, Andrei Rublev Solaris (pilares de Andrei Tarkovsky), bem como Vá e Veja, obra prima de Elem Kilmov, e o principal lançamento do ano em mídia física, o box do filme Guerra e Paz, adaptação de Tolstoi dirigida por Serguei Bondarchuk, dão ao público cinéfilo um acesso de qualidade única para tão rico cinema. 

Produtos lançados pelo selo Obras Primas do Cinema

SAÍDA DAS LIVRARIAS

Com o fechamento da Livraria Saraiva, além da recuperação judicial da Cultura, distribuidoras como Obras-Primas do Cinema e Versátil passaram a investir em seus próprios sites de vendas e em uma maior proximidade com o consumidor final através de redes sociais. Valmir Fernandes, diretor do selo OP, destaca como essas mudanças nortearam o modo de vendas em 2020. "A FAMDVD começou o ano com lançamentos exclusivos em blu-ray. A Versátil anunciou vários, também. Então, resolvemos experimentar e colocamos o blu-ray  de Um Lobisomem Americano em Londres exclusivo no nosso site. Só no primeiro mês, foram 700 clientes novos cadastrados. Após alguns meses, a tiragem de 2500 unidades esgotou", comemora Valmir.

Produtos lançados pela Versátil Home Vídeo


Como novo panorama do mercado, a importância do foco na própria loja, criando uma ponte direta com o público colecionador, também é pontuada por André Melo, diretor do selo Versátil.  "Eu lembro que, em dezembro de 2019, reuni toda a equipe e apresentei os dados daquele ano. Iniciei falando: 'precisamos avaliar o que faremos para sobreviver nesse mercado.'  E os principais pontos levantados foram: 'Vamos voltar para o blu-ray. Vamos desenvolver a nossa loja,  melhorar o nosso SAC e a nossa forma de envio.' ", relembra André. Com 2020 iniciando e o anúncio de uma coleção em blu-ray dos filmes de John Carpenter, dentre diversos outros títulos que se seguiram, o período acabou, também, se demonstrando surpreendente para a Versátil.  

Observar esse ano atípico se encerrar como um símbolo da (ainda) força da mídia física, tem como principal lição a percepção de um mercado como algo feito por (e voltado para) seu público colecionador. Que se torne um aprendizado e foco constante para a perenidade.  


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 16/12/2020





 

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