quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A Nuvem Rosa

Confinados em Si



CINEMA
Realizado antes da pandemia, A Nuvem Rosa, de Iuli Gerbase, filme brasileiro selecionado para o prestigiado festival de Sundance, utiliza o confinamento para desconstruir
 personagens psicológica e fisicamente

Por João Paulo Barreto

"O inferno são os outros". Com essa frase proferida por um personagem da peça Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, o norte para a compreensão de A Nuvem Rosa, filme escrito e dirigido pela cineasta Iuli Gerbase, tem um primeiro passo em seu trilhar. Selecionado para a mostra competitiva World Cinema Dramatic, do prestigiado Sundance Festival, nos Estados Unidos, que vai até o dia 03 em plataforma digital, o longa de estreia da roteirista gaúcha aprofunda-se na ideia do isolamento físico e emocional de Giovana e Yago. Os dois formam um casal confinado tanto nos cômodos de uma casa quanto no desejo de libertação de suas angústias e sentimentos. Trata-se de um filme que traz a análise do equilíbrio de um relacionamento fadado ao fracasso pelas prisões que ele criou tanto para si próprio quanto aquelas  às quais precisou se adaptar para continuar resistindo.  O inferno está nos outros que nos cercam, bem como, dentro da sanidade de cada um, há, também, um inferno particular.

Trazendo a ideia de uma nuvem tóxica a manter as pessoas presas em casa sob o risco de morte caso tenham contato com o ambiente externo, o longa é baseado em estudos acerca do criação de personagens aprisionados, publicados em  dissertação de mestrado escrita pela própria diretora, cuja defesa aconteceu em 2017. O roteiro escrito por Gerbase foi filmado em 2019, distante de qualquer ideia de que aquela realidade poderia ser a de todos nós em um futuro bem próximo quanto o de 2020 se apresentou.  Sartre, com a peça Entre Quatro Paredes a abordar o contexto de isolamento, juntamente a Luis Buñuel e o seu marco O Anjo Exterminador a ilustrar outro exemplo de análise comportamental humana em situações de confinamento e tensão, são duas das outras obras trazidas pela cineasta na composição de seu texto.

Giovana e Yago: confinados em uma nova realidade

"Eu queria explorar esses personagens em diferentes situações. Temos os protagonistas, um casal de que recém se formou. Temos uma amiga  da Giovana, que, ao contrário, se separou, ficando trancada sozinha em casa. Temos uma menina com as amigas dela na casa dos pais destas. E a gente tem o pai idoso do Yago, preso com uma pessoa que ele já conhece, mas não gosta,  que é o seu enfermeiro", explica Iuli ao falar acerca da criação das dinâmicas comportamentais das pessoas que ela criou para seu roteiro.

PRISÕES FÍSICAS

No destrinchar de suas camadas, o texto de Gerbase permite análises desses aprisionamentos em variadas nuances. O desmoronar daquele relacionamento entre Yago e Giovana que, mesmo em suas diferenças, foi forçado a começar por conta da necessidade de se confinar ; a ideia de uma prisão dentro de uma infância alienada e distante de um mundo anterior que, para aquela criança, possui naquele estado de adaptação sua (única) realidade conhecida; a prisão física dentro de um corpo e mente a ceder para a degeneração de uma doença, com a inserção de uma personagem a perder seu discernimento e capacidades mentais. Em sua história, A Nuvem Rosa se torna uma concisa observação do humano como vitrine para diversos ímpetos, bem como para as limitações que contêm tais ímpetos.

"Nesse estudo, eu via muito, também, quais aprisionamentos temos na nossa vida antes do COVID, antes da nuvem rosa, antes deste aprisionamento de fato. Então, eu também quis explorar essas questões. O pai do Yago mostra um aprisionamento do corpo físico. Quando temos uma doença, ficamos limitados e presos a ela. Ou, enfim, o nosso corpo é mortal e a gente tem um limite de liberdades com o que fazer com ele ", pontua a diretora e roteirista.  

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NOVAS ADAPTAÇÕES

Em nossas prisões, a adaptação e a recusa àquelas novas realidades parecem travar batalhas entre si.  Do mesmo modo, aos poucos, as personagens criadas pela roteirista vão cedendo e se deixando levar por aquele "novo normal", para usar um termo em voga no definir do que é essa maneira recém chegada de se comunicar. "Recém chegada", inclusive, soa como um termo equivocado para citar esse novo padrão de contato social, à distância, travado apenas diante de telas, áudios, vídeos e palavras escritas.  "Nós já estávamos em uma era muito virtual. Porque, às vezes, tem amigos que antes de ter tanto WhatsApp, Facebook e Zoom, a gente talvez já visse mais desse modo do que hoje em dia. Às vezes, falamos tanto e tão constantemente pelo celular com alguns amigos e acabamos vendo-os pouco. Claro, eu estou falando antes da pandemia. Mas houve essa adaptação para o virtual", compara Iuli.

LEMBRANÇAS MARCADA

Em A Nuvem Rosa, a questão da perda desse contato, da resistência versus aceitação, é aprofundada, levando sua audiência a não somente penetrar naquela realidade do casal ficcional como, também, perceber-se vivendo dilemas semelhantes. "Tudo vai para o virtual, só que tem coisas que não se sustentam no virtual. E há outras que se sustentam. Eu imagino que para os adolescentes está sendo muito difícil. Imagina quem ia ter o seu primeiro ano na faculdade? Ou ia se formar no colégio, se formar na faculdade? Não vai ter aquele momento de celebração, aquele momento de conhecer as pessoas", reflete a diretora. As lembranças que criamos durante fases da nossa vida em uma formação inicial, juvenil, são as que nos sustentam por anos a fio quando tormentos mentais podem surgir. Quando perdemos tais encontros, tais experiências, tais sensações geradas a partir da interação, a partir do contato com outros, como podemos nos tornar adultos saudáveis? Observando novas gerações perderem isso, pensar em um futuro menos pessimista se torna tarefa difícil.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/01/2021





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