quarta-feira, 6 de março de 2019

Albatroz


Albatroz propõe um cinema que tira o espectador da inércia



Com roteiro de Bráulio Mantovani, filme de Daniel Augusto 

cria intricada e recompensadora trama para o público atento


Por João Paulo Barreto

No cinema nacional mainstream (com distribuição garantida e grandes selos de produção ilustrando os créditos iniciais na tela), são um tanto raras as obras que te desafiam além do clichê da comédia de costumes ou do pastelão global. Por isso, é com bastante atenção que a estrutura incomum de narrativa de Albatroz, filme dirigido por Daniel Augusto (Não Pare na Pista) e roteirizado por Bráulio Mantovani (Cidade de Deus e Tropa de Elite 1 e 2), deve ser observada pelo espectador que se aventure na sessão deste breve (90 minutos) e ótimo exemplar da  produção brasileira que entra em cartaz esta semana.

Com uma intricada trama que brinca com o senso de realidade do seu protagonista e, por consequência, com o do próprio espectador, Albatroz traz uma mistura de elementos narrativos num modo de construção que, gradativamente, derruba um a um os meios de decodificação que o público venha a aplicar na compreensão dos seus atos. Mas, não se assuste. O filme, ao final, se torna uma experiência recompensadora para os que se arriscam neste decodificar. Sem seguir a estrutura clássica de começo, meio e fim, e preferindo levar a audiência a visitar os acontecimentos de sua trama de modo a ela mesma construir aquele quebra-cabeça, a obra de Daniel Augusto acaba sendo um exercício que, em certo momento, beira o metalinguístico.

Simão e Catarina - Casal em conflito

FOTOGRAFAR SONHOS

Ao misturar realidade e sonho em seu roteiro, o escritor Bráulio Mantovani alcança um intento palpável na sua narrativa: o de manter o espectador diante de uma escolha idiossincrática do que ele está vendo diante de si. Não dando todas as respostas, Mantovani cede à audiência a opção de acreditar ou não naquilo que está vendo. Na trama, o fotógrafo Simão (Alexandre Nero), após ganhar fama mundial por registrar um ataque terrorista com suas lentes (e ser acusado de oportunismo pelo ato), decide largar o ofício e afirma estar interessado em “fotografar sonhos”. Neste novo rumo de Simão, o reencontro com Alicia (Andrea Beltrão), uma antiga namorada, acaba por causar um maior desequilíbrio na vida do homem. Alicia, que se tornou escritora e, agora, se propõe a registrar em livro a trajetória de seu relacionamento com o fotografo, decide ajudá-lo no intento de registrar sonhos.

É justamente neste ponto que passamos a entender a proposta de Albatroz como uma obra de sci-fi que não dá pistas fáceis ao seu público, inserindo conspirações dentro de pesquisas científicas de neurociência, figuras que remetem ao noir clássico (com a presença femme fatale de Alicia), e à proposta mais difícil: a de representar em imagens os delírios e sonhos de seu protagonista.  Para o diretor Daniel Augusto, a maior dificuldade residiu nesta representação dentro da linguagem do cinema entre o que era sonho e sua diferenciação da realidade. “O cinema já nasceu dividido. Há um aspecto que tem os Irmãos Lumiérè, que é um cinema mais documentário, mais ligado ao real, e tem um aspecto (Georges) Mélìès, que vai para o sonho, etc. Essa ideia do cinema que vai para o sonho atravessa a sua história”, explica.

Em seu aspecto visual, Albatroz acaba por ser muito bem sucedido no aspecto do delírio de seus personagens e o modo como este delírio se manifesta imageticamente para o público. Dentre diversas obras que vêm à mente do espectador, a de Michel Gondri, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, é a que se destaca. Mas Daniel faz questão de frisar outras. “Eu gosto muito do Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. É um filme de referência pra mim. Na vida, na verdade.  Mas, na história do cinema, outras obras buscaram essa representação. Você tem Cão Andaluz, você tem o Expressionismo Alemão, você vai ter de certa maneira o próprio filme noir impregnado pela fantasia, mas de uma outra maneira. Ou seja, isso atravessa a história do cinema.  É uma conversa com essa tradição, na verdade. De como fazer do cinema um sonho”, complementa.

Simão: tormenta após reconhecimento mundial

PAPEL VS. TELA

O diretor propôs o desafio dessa escrita ao roteirista Bráulio Mantovani. “Antes da ideia de Albatroz surgir, eu falei pra o Bráulio que gostaria muito de fazer um filme que pudesse ser interpretado de mais de uma maneira. Não só duas maneiras, mas de pelo menos três ou mais formas pelo espectador. Mas que fosse um filme que ao mesmo tempo o público não perdesse a atenção. Ou seja, que ele ficasse o tempo todo ligado no que estava vendo. Então, seria uma espécie de quebra cabeça. Como fazer um quebra cabeça, mas que o espectador no final chegasse a alguma conclusão? Mesmo que cada espectador monte essas peças de uma maneira diferente, já que as peças se encaixam em mais de um lugar”, explica Daniel.

Se para o diretor, a proposta de representação visual das linhas escritas por Mantovani era algo a instigar, para as atrizes Andrea Beltrão e Maria Flor era palpável a impressão de estar diante de uma matéria prima que renderia resultados surpreendentes tanto para a audiência quanto para elas mesmas durante o processo de dar corpo àquelas palavras. Andrea, que tem em Alicia uma presença de narradora daquela história e peça crucial nas respostas ao espectador, explica que não teve essa noção durante a criação de sua personagem. “O roteiro era não linear. Era todo desconstruído com uma narrativa dentro dele bem diferente. As cenas não se seguiam umas às outras em uma lógica, em uma coerência. Apesar, claro, de haver uma lógica própria do filme, o que é muito interessante. Mas, eu só fui perceber que a história passava pela narrativa dessa personagem, que é a escritora Alicia, quando o vi pronto. Antes, eu fiquei muito mergulhada em cada cena e não achava que o filme tivesse nessa personagem um peso como narradora. Achei que muito bom”, relembra Andrea.

Maria Flor, que interpreta Catarina, compositora de jingles e atual esposa de Simão, explica que o processo de mergulhar no roteiro de Bráulio foi algo singular diante de outras experiências. “Eu acho que o Daniel e o Bráulio conseguiram criar essa atmosfera para a gente, onde cada cena é como se ela se encerrasse nela mesma. Então, a gente não ficou criando personagens com uma psicologia complexa. Tentamos realmente entender e falar: ‘essa cena é isso aqui que a gente está contando’. E isso foi um exercício diferente, para mim pelo menos”, afirma.

Ao final, Albatroz acaba sendo uma oportunidade do espectador se desafiar naquele decifrar das pistas apresentadas pela obra. Um aventurar recompensador, friso.


*Matéria publicada originalmente no Jornal A Tarde, dia 06/03/2019

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