terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Amor

(Amour, França, Alemanha, Austria, 2012) Direção: Michael Haneke. Com Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert.



Por João Paulo Barreto

A maior discussão acerca de Amor, novo trabalho de Michael Haneke, transita, obviamente, nos desafios de envelhecer em um relacionamento sincero e duradouro a partir da dependência irrestrita de ambos. No entanto, o que mais me chamou a atenção no filme, além da história triste e intensamente dolorosa de se testemunhar, era observar como esse brilhante diretor austríaco consegue transitar de modo tão perfeito entre filmes capazes de te causar reflexão através do asco (Funny Games), através da sensação angustiante de se estar sempre indefeso (Caché) ou pela percepção do mal que a fé cega pode nos fazer (A Fita Branca).

Dessa vez, o austríaco preferiu focar em um sentimento que requer mais que uma entrega total em prol de outra pessoa. Amor foca em um outro sentido para essa palavra. Haneke, em seu roteiro, traz uma definição que foge de qualquer significado do que é esse sentimento. Ao apontar sua câmera e sua caneta para a história de um casal de terceira idade que se vê privado de sua rotina cultural, de suas risadas sinceras e da sensação de segurança pela simples presença do outro em suas vidas, o cineasta coloca o espectador em meio a questionamentos. Ele nos faz perceber que a cumplicidade requer uma entrega que nem sempre é fácil de ser cumprida. E a dor que esse casal sente nessa percepção atinge em cheio os que ousaram conferir o filme.

Anne antes da tempestade
Anne (Riva) e Georges (Trintignant) formal o casal em questão. Profundamente ligados à música e à literatura, eles mostram em seu ambiente diário como esses dois elementos estão presentes em suas vidas. Paredes repletas de livros, CDs e música sempre no ambiente, fazem do seu lar um local aconchegante e que os torna à vontade. Aproveitam a tranquilidade da velhice em Paris para usufruir da cultura. Quando Anne passa a ter lapsos de memória e momentos de paralisia, não tarda para aquela rotina equilibrada desmoronar. Caberá à Georges tentar manter um pouco da boa energia de antes ao perceber que sua esposa ficou com um dos lados do corpo paralisado.


Se nesse trabalho, o diretor ainda mantém um pouco de sua veia psicopata ao inserir uma rápida e desesperadora sequência de sonho, dessa vez o resultado é muito mais chocante. Funny Games tinha no sadismo seu objeto de análise, algo que logo o tornava comum ao espectador que percebia o jogo crítico do diretor (afinal, após conhecermos a natureza monstruosa dos personagens, suas ações deixam de surpreender). Em Amor é diferente. Aqui, Haneke subverte nossa expectativa, nos fazendo crer que em ações precipitadamente julgadas como cruéis, também reside afeto e carinho. E essa crença surge de modo ainda mais brutal do que com o sangue visto na já citada obra refilmada pelo próprio cineasta.

O intrigado Georges diante do primeiro acesso de paralisia da esposa

Haneke adentra em uma tocante história acerca da cumplicidade irrestrita. Ele nos faz perceber que amar não é somente sorrisos, beijos, caricias. Fará parte dessa definição a perda da dignidade por um dos dois, quando o outro precisa ajudar em ações simples como ir ao banheiro ou degustar uma refeição. Fará parte dessa definição a impaciência, a perda da calma onipresente, as reações surpreendentes e dolorosas que pedem por perdão segundos depois de cometidas. Fará parte dessa definição o olhar perplexo de um deles ao ser surpreendido por um gesto de violência de quem sempre lhe foi afetuoso. Fará parte dessa definição até mesmo um ato final, definitivo, que coloca aquele casal novamente em um equilíbrio pleno.

O gesto final de amor de Georges para sua companheira de longa data vai demorar muito tempo a me sair da cabeça. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Les Misérables


Os Miseráveis (Les Misérables, Inglaterra, 2012) Direção: Tom Hooper. Com Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter.



Por João Paulo Barreto

Baseado na obra escrita por Victor Hugo em 1862, Les Misérables chega ao cinema em mais uma adaptação (a mais famosa e recente foi estrelada por Liam Neeson em 1998). Diferente da produção lançada há 15 anos, essa nova versão segue a estrutura do musical lançado em Paris em 1980 e em Londres em 1985 (onde permanece em cartaz desde então).

Dirigido pelo mesmo Tom Hooper de O Discurso do Rei, o filme possui uma quantidade bem menor de vícios de câmera que o cineasta abusou no seu trabalho anterior. Se antes eram constantes as utilizações de câmeras “olho de peixe” e enquadramentos inusitados como que para querer afirmar certa pretensa identidade, dessa vez o diretor londrino preferiu a sobriedade e entrega um trabalho à altura do material teatral que tinha em mãos. 

Quando digo isso, não quero afirmar que Hooper deixou-se levar pelo simplismo. Não. O filme é um espetáculo visual que respeita sua origem nos palcos trazendo para aqueles que nunca viram a peça uma real dimensão do que Victor Hugo possivelmente imaginava ao escrever sobre as batalhas e sobre as grandiosas cenas em estaleiros (a abertura impressiona!) e em visões aéreas da França do século 19. Já para quem teve a experiência de Les Mis nos palcos, a obra complementa o espetáculo visual, tornando a experiência ainda mais grandiosa para o espectador.

Valjean (Jackman) cumpre sua pena: expressão de ódio e resignação
A história, simples e dotada de heroísmo romântico, conta com todos os perdoáveis clichês do maniqueísmo humano que o texto teatral possui. Jean Valjean (Jackman) é um condenado escravizado em um estaleiro sob a rígida vigilância do inspetor de polícia Javert (Crowe). Ao receber sua liberdade condicional após 19 anos de pena por ter roubado um pão, Valjean (ou prisioneiro 24601) é acolhido por um padre bondoso que lhe dá abrigo e perdoa sua traição ao saber que Javert roubou sua prataria. Arrependido, este decide violar sua condicional, mudar de identidade e seguir uma nova e generosa vida que logo descobriremos ser bem próspera. No entanto, Javert segue em seu encalço e a história dos dois homens repercutirá por muito tempo em suas vidas.

De fato, a direção de Hooper parece bem mais segura e menos exibicionista do que em seu trabalho anterior. Se antes era perceptível uma desnecessária utilização de ângulos e imagens pretensamente inusitadas (presente aqui apenas em uma cena específica onde Valjean faz um importante pedido a outro personagem), agora a grandiosidade se justifica pelo texto de Hugo. E desde a já citada cena do estaleiro, quando vemos Jackman e seu impactante olhar cantando de forma resignada sob uma chuva torrencial, já se percebe o quão visual será a experiência de assistir a Les Misérables. Hooper abusa de travellings, plongées e consegue se sair bem na intenção de emocionar o público. Uma pena que os acertos em sua direção não tenham sido suficientes para disfarçar sua inaptidão como diretor, o que é perceptível pela repetição de ângulos em diversos momentos do trabalho.

A trágica Fantine (Hathaway): fragilidade se destaca em todos os sentidos
Mas, claro, um musical se constrói com bons atores e cantores. Nisso, Les Mis mostra a que veio. A expressão dura e presença corporal de Jackman criam um equilíbrio perfeito com a sensibilidade e fragilidade de Anne Hathaway. Ela, aliás, chama atenção em seus números musicais. Em sua canção solo, na qual ela apresenta todo o seu sofrimento, Hooper acerta por manter uma câmera quase estática em seu rosto (outra prova da direção menos afetada do cineasta nesse trabalho). O diretor acerta, inclusive, ao colocar sua personagem de modo a se destacar até mesmo pelo figurino em sua primeira aparição, quando a fragilidade de sua personalidade é entregue pela cor de seu vestido. E a entrega da atriz à personagem torna sua indicação ao Oscar totalmente justificada.

Equilibrando-se muito bem entre o drama e a comédia (Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen roubam a cena como hilário um casal de vigaristas), o filme traz um encantamento ao público comum aos bons musicais. Ao nos despirmos de qualquer resistência inicial de vermos os personagens cantando em meio ao sofrimento, dor ou risos, acabamos por ser arrebatados. 

Não foi com surpresa que me peguei pensando horas depois da sessão nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, pertencentes à Revolução Francesa tão bem retratada em Les Misérables e, claro, no quão românticos e idealizados eles podem parecer. Tão idealizados quanto o pretenso talento de Tom Hooper.