sábado, 26 de setembro de 2020

Alta Fidelidade - A Série

 

Top Five 

Erros de Vida



STREAMING Adaptação de clássico da cultura pop escrito por Nick Hornby, série Alta Fidelidade reinventa com maestria para os tempos solúveis do digital os conflitos românticos de todas as épocas

Por João Paulo Barreto

É improvável, claro, com a atual facilidade de acesso a informação através da internet. Mas, talvez, seja justamente por esse bombardeio  de links, lives, stories, tuites e tiktoks disfarçado de "acesso a informações" que parte da audiência pode chegar ao final dos dez episódios da série Alta Fidelidade sem saber de sua origem cinematográfica com a obra homônima dirigida há vinte anos pelo britânico Stephen Frears. Em um período de poucos aprofundamentos, tempos breves e escassos de acessos a leituras mais profundas, foco concentrado em apenas dez segundos e em um constante rolar de dedos em telas de celular, é possível que parte das pessoas que se aventurem por essa bela primeira temporada, desconheça (ou nem se esforce em se aprofundar) na ideia de revival de um dos melhores filmes lançados no fértil final do século XX para o cinema estadunidense.            

Baseado no bestseller do também britânico Nick Hornby, High Fidelity trazia os conflitos de Rob Fleming (nas telas, Rob Gordon), uma enciclopédia musical humana viciado em criar listas de cinco mais (o top five do título). Colecionador de discos e de fracassos em relacionamentos amorosos, Rob é dono de uma loja quase falida que ainda vendia discos de vinil, cassetes e CDs antes destes se tornarem itens de resistência da mídia física em um tempo de "facilidades" fugazes e solúveis do streaming. E é justamente nessa ideia de atualização dos tempos que se baseia a proposta de adaptação para 2020 da história de Rob, agora, Robyn "Rob" Brooks, também colecionadora de discos e de complicações afetivas, bem como dona de uma loja de discos ainda mais falida, quando as coletâneas gravadas em fitas cassete se tornam impessoais playlists de aplicativos, como Spotify e Deezer.

Rob em seu ambiente natural: a quase falida loja de discos 

NOVA PROTAGONISTA

Vivida por Zoë Kravitz com o nível exato de desdém e pedantismo já trazido por John Cusack em sua versão original, a Robin dessa nova versão passa pelas mesmas provas de paciência diante de pessoas cujas proximidades com a Música (sim, M maiúsculo) não têm o mesmo nível de comprometimento, busca e percepção que o dela e de seus dois amigos/funcionários. Do mesmo modo, as lições de humildade e menos arrogância são semelhantes  àquelas pelas quais passam o Rob londrino das páginas de Hornby e o estadunidense de Chicago vivido por Cusack. A novaiorquina Robyn de Kravitz encara, em 2020, os erros em relacionamentos anteriores que voltam para atormentá-la durante sua busca por sentido no reajuste mental de contas. E quem nunca, não é mesmo?

Fugindo de uma artificial e forçada contextualização aos tempos digitais, a série é bem sóbria no pincelar dessas novas rotinas e condições propostas para absorção de música, com Rob, também, se rendendo às playlists enviadas por WhatsApp e às visitas (leia-se stalkeadas) a perfis de redes sociais na busca por informações daquelas que representam cicatrizações em seus relacionamentos arruinados por atitudes precipitadas e imaturas. Em uma dessas atualizações para os tempos modernos, a ideia de brincar com a ridícula e descartável (porém, lucrativa) vida de influenciadores digitais, traz um dos momentos mais hilários dentre os dez episódios dessa primeira temporada, com Rob cumprindo uma das etapas de seu Top Five de piores términos ao revisitar uma ex-namorada.

Cherise e Simon acompanham os dramas diários em papos pops


AMADURECER LÁ E CÁ

Enquanto lá em 2000, o filme de Stephen Frears serviu para revelar o talento versátil de Jack Black em seus (hoje, já telegrafáveis) trejeitos, olhares, caras e caretas, a versão em formato televisivo desenvolvido por Sarah Kucserka e Veronica West (dupla que já havia surpreendido com a ótima série Ugly Betty) traz na presença de Da'Vine Joy Randolph não uma versão feminina do  despachado Barry, mas algo com maior profundidade. Sua Cherise, aqui, é uma total reconstrução da ironia e do sarcasmo na análise da sua rotina dentro de uma vida dedicada à cultura pop, porém, com um desenhar de inseguranças, ambições e receios na vontade de encontrar-se em uma vocação para além daquela vida.

"Não importa quem você é, mas, sim, as coisas que você gosta. Livros, discos, filmes - essas coisas importam. Podem me chamar de superficial, mas essa é a p... da verdade", afirma Rob (e Robyn) em uma das melhores linhas escritas por Hornby. Cherise, no entanto, começa a perceber, da mesma forma que Barry, que a vida pode unir aquele talento de um gosto cultural aprofundado (sim, isso é um talento) a algo para além de uma repetição de conversas diárias sobre os mesmos temas. E o momento em que ela alcança sua maior ambição material e artística, é de uma beleza única no desenvolvimento de sua personagem. Randolph já havia surpreendido com sua versão para Oda Mae Brown no musical da Broadway, Ghost. Em Alta Fidelidade, sua Cherise traz a mesma energia. Em paralelo e do mesmo modo, o terceiro pilar daquela amizade tem em Simon (um David Holmes contido, mas não introvertido de modo clínico) uma eficiente inovação e desenvolvimento de um arco dramático para o personagem que, na obra de Hornby, centrava-se na timidez de Dick (no cinema, vivido por Todd Louiso como um ponto de contraste para o espalhafatoso Barry de Jack Black).

Rob em uma de suas lembranças que voltam para atormentar

Com as precisas referências tanto ao livro de Hornby quanto ao filme de Freas (o nome de um dos locais frequentados por Robyn é De Salle, personagem vivida por Lisa Bonet, mãe de Zoë Kravitz a camiseta idêntica usada por Rob e Robyn; e, claro, o belo momento com I Believe, música de Stevie Wonder), a série constrói uma homenagem à sua origem cinematográfica  de duas décadas atrás, mas, do mesmo modo, cria uma identidade própria, independente e inovadora.

Alta Fidelidade acaba sendo um relato em dez partes sobre o amadurecimento. Sobre errar e aprender (ou não) com esses mesmos erros. Sobre quebrar a cara e, mesmo assim, oferecer a outra face. Tal amadurecimento pode chegar com atraso; pode machucar ao vir; pode, também, não fazer a menor diferença quando chegar. Porém, seja lá qual for a circunstância na qual ele chegue, será sempre bem vindo. 

Essa percepção pode vir a longo prazo, mas, vai por mim, ela vem. 

Quando vier, abrace-a.

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*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/09/2020



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