quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Histórias de Amor que Não Pertencem a Este Mundo

(Amori Che Non Sanno Stare al Mondo, Itália, 2017) Direção: Francesca Comencini. Com Lucia Mascino, Thomas Trabacchi.


Por João Paulo Barreto

Por trás de uma fachada de comédia rasgada, com uma personagem de comportamento absurdo, Histórias de Amor que Não Pertencem a Este Mundo esconde uma reflexão bem apropriada relacionada ao envelhecer. Mas não ao envelhecer comum a todas as pessoas, algo que acaba por trazer mais momentos de dúvida do que de epifania, porém que se encerra com mais clareza e discernimento.

Ao focar no passar dos anos de uma personagem feminina e na carga de autocobrança e consequente desequilíbrio, a diretora e co-roteirista romana Francesca Comencini traz ao público, além da irritabilidade causada por sua protagonista, uma curiosa análise comportamental. Algo que, diante de um rótulo um tanto banal de estrutura romântica, consegue, ao menos, levar ao espectador que investiu nos 90 minutos de projeção alguma recompensa que lhe cause reflexão.

Tal recompensa reside na superação da personagem aparentemente bipolar vivida por Lucia Mascino. Repleta de inseguranças e ausência de uma personalidade firme, sua Claudia parece possuir o desespero como única resposta para qualquer indagação atrelada à convivência mútua que sua relação amorosa lhe trouxe. Neste sentido, o filme de Comencini gera no espectador uma irritação curiosa, justamente por conta de tamanha fugacidade comportamental de sua protagonista.

Claudia e Flavio em um começo inesperado, mas promissor
Calcado no absurdo de suas reações diante do término de um relacionamento e na insistência nonsense em recuperar a confiança do antigo amor, o filme começa brincando com as atitudes de Claudia.  Ela, mergulhada em um mundo mental particular, busca em suas idiossincrasias interpretações que lhe soem convenientes para as negativas do ex, bem como para seus silêncios, como, por exemplo, quando questiona a possibilidade de não possuir créditos no celular, uma vez que nenhuma das 28 mensagens enviadas (!!) tiveram retorno. Tal formato de comédia, no entanto, cansa após certo ponto justamente por impedir qualquer identificação do público com tamanhas excentricidades.

Por sorte, após um tempo, o filme começa a apostar em outra vertente, conseguindo, de algum modo, cativar a atenção para sua personagem principal. Tal vertente reside na ideia descrita inicialmente aqui: uma análise comportamental do envelhecer através de um viés feminino.

Independente do fato de que, mesmo escrito a partir do ponto de vista de uma mulher, a obra derrape em clichês machistas e típicos de fantasias masculinas, como quando Claudia cede a uma experimentação lésbica em busca de alcançar uma felicidade que não teve no comportamento hetero (como se fosse uma questão de escolha), o mesmo não vemos acontecer no lado masculino da trama. Aqui, o roteiro prefere ater-se à ideia de que, para o homem, a resposta para tais dúvidas reside em um novo, jovem, heterossexual e, de preferência, quase adolescente amor. Resumindo: cabe apenas à mulher o desafio de arriscar em algo totalmente novo e que, até aquele momento, não havia lhe passado pela mente.

"Após 28 mensagens, eu não recebi nenhuma resposta?"
O que fica na reflexão daquela história de amor falível entre Claudia e Flavio centra-se na ideia de que, em qualquer relacionamento, a calma é o tom principal para um equilíbrio. Impulsos são saudáveis e, acima de qualquer julgamento, humanos. Porém, cabe discernimento em qualquer entrega. Discernimento e respeito mútuo. Não só pelo outro, mas pelo que este acredita como prioritário em sua vida.

Porém, convenhamos, é um tanto difícil convencer-se de que uma professora universitária com tamanha bagagem intelectual seja tão frívola em suas atitudes. Principalmente quando pensamos na sua idade e experiências prévias de vida.

Enfim, se o filme prefere simbolizar a maturidade com o ato de se atirar um chapéu de uma ponte, que seja assim.


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Thor: Ragnarok

(EUA, 2017) Direção: Taika Waititi. Com Chris Hemsworth, Mark Ruffalo, Tom Hiddleston, Cate Blanchett, Idris Elba, Tessa Thompson, Jeff Goldblum.


Por João Paulo Barreto

Após dois filmes insossos, a percepção de que Thor era um personagem que não funcionava muito bem em carreira solo dentro do universo cinematográfico da Marvel estava confirmada. Junto aos Vingadores, o filho de Odin conseguia se destacar de forma eficiente devido ao investimento dos roteiristas em sua interação um tanto cômica com os colegas de equipe, além de em uma suposta seriedade existente na presença de um Deus entre os humanos. Acrescente a isso a sua capacidade destrutiva com o martelo Mjölnir, some a interação violenta com o Hulk e, pronto, lá estava uma figura a se destacar naquele ritmo de videogame que o diretor Joss Whedon deu aos dois primeiros Vingadores. Porém, ao retirá-lo daquele contexto de equipe e colocá-lo para resolver os problemas tanto de seu planeta, Asgard, quanto do que resvalava de lá para a Terra (leia-se Loki, renegados alienígena e alguns monstros a destruir Londres), a figura mitológica de Thor parecia não engatar satisfatoriamente nas aventuras dirigidas por nomes como o do shakespeariano Kenneth Branagh (algo muito bem vindo na primeira aventura) e o de Alan Taylor, este, dono de uma carreira prolífica na TV, mas sem muito destaque no cinema.

Eis que chega o desconstrutor neozelandês Taika Waititi e resolve quebrar esse paradigma. A partir do roteiro escrito pela dupla oriunda dos quadrinhos, Craig Kyle e Christopher Yost (este último, um dos responsáveis pela parte dois, O Mundo Sombrio), além do exclusivo Marvel, Eric Pearson, Waititi investe exatamente nisso: na desconstrução do personagem e de quase todos os elementos que representam Thor em sua suposta complexidade e força. Coloque nessa conta, então, a destruição do Mjölnir e a perda tanto das madeixas loiras quanto de qualquer senso de seriedade (no bom sentido, friso), acrescente a dose exata de galhofa como as tentativas falhas de entradas e saídas de personagens em cena (Banner pulando de uma nave está entre as melhores), e o que fica após 130 minutos de projeção é essa sensação de um filme que consegue criar uma auto-paródia (a peça teatral em seu inicio - com a participação de Matt Damon! -, já paga o ingresso), brincar com seus próprios elementos mitológicos e ainda entregar uma aventura repleta da violência gráfica e sequências de ação de encher os olhos.

Thor e seu visual de gladiador
Iniciando com um Thor aparentemente a conversar com o espectador (esta, uma proposta de mockdocumentary que já havia sido apresentada pelo diretor em dois vídeos promocionais), o filme já diz a que veio em sua abertura, quando, preso e pendurado por correntes pelo clássico personagem Surtur, um demônio em chamas, o herói faz piadas com fato de não conseguir permanecer parado durante a conversa com a criatura. Neste ponto, ao ouvir o imortal riff de Immigrant Song, pilar do Led Zeppelin que embala a fuga do herói, percebemos de cara o tom da proposta. Trata-se de um trabalho despojado, que se assume como comédia antes de qualquer rótulo de ação. Assim, não é de se estranhar que existam piadas envolvendo um Hulk pelado e suas possivelmente impressionantes partes intimas (“essa imagem ficará presa em meu cérebro”, diz o asgardiano), ou quando, ainda no âmbito da criatura verde, vemos Thor tentar embalar o monstro nas mesmas frases de ninar que o acalmam e o transformam em Bruce Banner, mas somente quando proferidas pela Viúva Negra. Já deu para imaginar o que esse insucesso causará.

O filme ainda conta com coadjuvantes de luxo que parecem não atuar, mas, sim, brincar com seus respectivos papéis. É o caso de Cate Blanchett, participando como Hela, irmã do herói e auto-intitulada Deusa da Morte (sentiu o drama?) em uma presença que impressiona tanto pela beleza quanto pela brutalidade de sua violência na tentativa de tomar Asgard, sendo este o plot que movimenta o filme; e Jeff Goldblum no papel do excêntrico Grand Master, espécie de imperador tirano que promove com o mesmo afinco e dedicação tanto confrontos entre gladiadores em arenas quanto orgias em sua nave especialmente projetada para tal fim.


Blanchett e suas pequenas surpresas
Com suas cores berrantes e história descompromissada, Ragnarok representa para a Marvel uma reformulação total de sua proposta, algo que poderia ter alcançado já em 2015 se tivesse permitido ao britânico Edgar Wright explorar suas ideias no que acabou se tornando um apenas razoável Homem-Formiga, filme que contaria com sua direção, mas acabou mudando de mãos por uma imposição conservadora do estúdio. Aqui, com Taika Waititi coordenando os cortes da claquete, o estúdio se dá uma segunda chance. Algo que, convenhamos, após quase dez anos e dezesseis longas, merecia esse ousar em sua proposta. Possivelmente, o melhor filme da Marvel Studios.  

O Fantasma da Sicília - Entrevista e Crítica

MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE (16/10/2017)


Diretor de O Fantasma da Sicília fala sobre o perigo da 

romantização da máfia


Por João Paulo Barreto

Há em O Fantasma da Sicília uma abordagem que ultrapassa o filme como apenas uma peça de entretenimento cinematográfico. Na obra dirigida por Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, o principal mérito reside no resgate de uma história brutal e deixada de lado pelo passar dos anos, mas que jamais deve ser colocada no esquecimento tanto do povo italiano quanto do restante do mundo.

Ao trazer para o cinema a breve vida de Giuseppe di Matteo, adolescente sequestrado e morto pela máfia siciliana no começo dos anos 1990, os cineastas jogam uma nova luz nesse caso brutal de crueldade e frieza, algo que, assim como acontece em diversas partes do mundo, se torna banal com o suplantar de novas barbáries trazidas pela mídia e que transformam casos em meras notícias de ontem.

Os cineastas Antonio Piazza e Fábio Grassadonia
Uma das principais funções do filme é na desmistificação da máfia e de seu suposto glamour. “Não desmereço filmes que abordem a violência da máfia por esse viés. Não há dúvidas de que trabalhos como O Poderoso Chefão são obras primas. Mas, em nosso cinema, buscamos evitar esse estereótipo tão comum. Evitamos essa romantização por achá-la algo muito perigoso”, afirma Antonio Piazza na conversa que tivemos por telefone.

Ele e Fábio Grassadonia optam, no entanto, por uma abordagem lúdica no contar a sua história. Mas sem querer, dessa forma, mascarar o teor violento de seu roteiro baseado na história original oriunda do livro de Marco Mancassola. Por contar apenas com os relatos trazidos pela imprensa à época, quando os responsáveis pelo crime chegaram a ser presos pela polícia siciliana, os diretores escolhem de forma feliz trazer à tona a trajetória de Giuseppe pela óptica de Luna, colega de sala apaixonada por ele e que, diante do seu desaparecimento, segue em sua busca no vilarejo italiano tomado pelo poder da máfia.
Desde os seus minutos iniciais, quando a câmera nos coloca dentro de um ambiente aquático que encontrará ecos no chocante desfecho do filme, o trabalho de construção de sua história segue em uma nuance de mescla entre sonho e realidade, algo que salienta ainda mais o impacto emocional e a tristeza de seu desenvolvimento. Em certos momentos, uma borboleta surge como representação da liberdade de Giuseppe, e é impossível não pensar em Papillon , livro de Henri Charrière que gerou o clássico com Dunstin Hoffman e Steve McQueen.

“Apesar de amarmos esse filme, foi uma coincidência. Mas é curioso você lembrar dele, pois ratifica a ideia de nosso cinema se calcar mais no sonho em comparação à aspereza que essa obra traz”, afirma Piazza.
A tristeza, aqui, suplanta a esperança que o personagem de Charrière nutria em seus devaneios lúdicos dentro de sua cela, quando sonhava com a liberdade que, no final, acaba por alcançar. Diferente dele, Giuseppe não chegou a se tornar a papillon que invadia seus sonhos.

Na conversa abaixo, o cineasta Antonio Piazza fala um pouco acerca dessa construção lúdica de sua obra, referência Hector Babenco e seu Pixote, e fala sobre a ironia da canção Italy, que fecha seu filme.

Confira!

Seu filme aborda uma história bastante conhecida na Itália e na Europa à época do ocorrido, mas, no Brasil, não foi um caso amplamente divulgado. Isso, para o público daqui, acaba por tornar sua construção ainda mais surpreendente, pois alimenta uma esperança no espectador que é derrubada de forma chocante.
Sim, a história de Giuseppe foi bastante veiculada na Itália, Europa quando aconteceu na Sicília nos anos 1990. Ela acabou contribuindo com uma mudança no modo como a opinião pública olhava para organizações criminosas como a máfia siciliana. Aquele crime foi o mais horrendo em uma série de ações contínuas na Sicília, um lugar repleto de assassinatos ligados a atividades criminosas dos mafiosos. Mas, atualmente, a história desse garoto foi esquecida. A atual geração de jovens da Itália, até mesmo na Sicília, não conhece mais a história de Giuseppe. Até mesmo para o público italiano, principalmente na Sicília, redescobrir essa história tem um impacto emocional pesado. Nossa intenção era fazer o público ter aquela experiência através da óptica de Giuseppe, através do que ele passou. Deste modo e através dos olhos de Luna, sua colega de classe, uma garota apaixonada por ele. Para mim e para o Fábio (Grassadonia, co-diretor), essa era a única forma de contar essa história. Porque era um modo de colocar o público na mesma experiência que eles passaram quando tudo aconteceu. Foi uma forma de dar a Giuseppe algo que ele não teve durante sua vida, que foi o amor, a experimentação da paixão adolescente, algo que ele não chegou a ter. E, claro, se você não sabe se tratar de uma história real, o desfecho daquela é bem impactante. E, sim, trata-se de um filme doloroso porque é uma história dolorosa. Ao mesmo tempo, aquilo foi real, aquilo aconteceu. Com essa mensagem, nós queremos dizer que talvez a nova geração possa ter um mundo melhor. Talvez ela possa ter um destino diferente daquele que Giuseppe teve.

Giuseppe e Luna - O lúdico como fuga
Ainda em relação ao público brasileiro, há uma identificação com a realidade violenta que temos aqui no Brasil, com ações de traficantes e a complacência da polícia, que age muitas vezes como milicianos ou cúmplices na criminalidade.
Sim, de fato. Claro que você conhece a realidade do Brasil melhor do que eu, mas nós sabemos que o filme pode ressoar também em outros lugares além da Itália. Infelizmente, este é um problema recorrente em vários países. Há outro filme dos anos 1980, um filme brasileiro, inclusive, chamado Pixote, do Hector Babenco. O estilo ali, claro, é completamente diferente de nossa proposta pelo ideia de ser um filme de aproximação mais realista dos fatos ao contar a história daquele garoto. Foi um filme seminal para nós. É o tipo de obra que causa uma dor e impacto que ficam conosco. Quando começamos a escrever este O Fantasma da Sicilia, nós sabíamos que buscávamos o mesmo tipo de impacto. De algum modo, nós sabíamos que teríamos que encarar aquele mesmo tipo de dor.

Existe no cinema uma espécie de romantização dos mafiosos italianos ou ítalo-americanos, principalmente em obras feitas nos Estados Unidos. No entanto, em filmes de origem italiana, eu observo mais uma desmistificação dessa imagem. É caso de obras como Gomorra e o seu próprio filme. Há essa intenção entre os realizadores italianos?
Sim, eu concordo totalmente com sua observação. Quando você conta uma história sobre a máfia, acaba-se correndo alguns riscos. Um destes é este que você mencionou. Você transforma criminosos em pessoas míticas. Até mesmo na Itália, filmes como O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, que, indiscutivelmente é uma obra prima. Mas, infelizmente, é um caso que abriu uma visão estereotipada que foi utilizada em muitos outros filmes, especialmente em outras ficções da televisão. Em nossa filmografia, buscamos uma maneira de mostrar a verdadeira face destes criminosos. Neste novoo filme, e em nosso trabalho anterior, Salvo, de 2013, nós queríamos mostrar a estupidez que há nessa mitificação dos mafiosos. Eles não são mentes poderosas e geniais a serviço do crime. No fundo, eles não passam de pessoas violentas e com recursos financeiros para ascender às custas dos mais fracos. Essa opção que trouxemos para nossos trabalhos no cinema é uma forma de evitar o possível estereotipo tão comum em filmes sobre a máfia. De certa forma, é um modo de evitar a possível romantização que se criou em torno da ideia dos mafiosos, o que considero como algo muito perigoso.

Inclusive, o filme termina com a canção Italy, da artista musical Soap & Skin, que me soa
como uma mensagem para o mundo acerca dessa romantização do país e de sua violência.


Você leu algo que nós colocamos nas entrelinhas, se posso dizer desse modo. Nossa abordagem nunca foi diretamente política, mas ela acaba sendo, de fato. E a música é um bom exemplo disso. Inclusive, durante o filme, o que buscávamos com a trilha incidental era que, sendo a narrativa observada pela percepção das crianças, ela funcionasse como uma expressão da percepção deles com o mundo. Nós tivemos essa colaboração com a Soap & Skin, que ela compôs a partir do nosso script. Depois, ela esteve presente conosco na montagem. A canção que toca nos créditos é um trabalho escrito especialmente para o filme. De certo modo, sim, há um tom de ironia intencional vindo da letra da música, que segue para o direcionamento que você descreveu. Há sempre uma tensão entre adicionar uma forma de rebelião contra a realidade do modo como ela é de verdade. Mas, ao mesmo tempo, queremos vê-la como um mundo diferente. Ao nosso modo de ver as coisas, sonhar possui uma postura política. É uma abordagem diferente do que existe no cinema italiano, que possui uma forma mais realista e diretamente política em seu dimensionamento. Para nós, ao Invés disso, seguimos em busca da fantasia. E a construção dessa música seguiu nesse direcionamento, também.

Luna e sua busca pelo amigo: amadurecer traumático
Vocês optam por inserir diversos momentos lúdicos demonstrando uma tentativa dos personagens principais de fugir e atenuar seus sofrimentos. Isso dá ao filme uma atmosfera que ajuda bastante com o impacto trazido pelo seu final. Essas inserções lúdicas, inclusive, me remeteram ao livro de Henri Charrière, Papillon, que virou filme nos anos 1970. Há alguma relação, uma vez que existem aqueles momentos de Giuseppe com uma borboleta?
(risos) Bem lembrado. Mas, enfim, é uma coincidência. Claro que este é um filme que nós amamos,
mas é só uma coincidência. Mas o que você diz é verdade. A intenção era criar uma fuga para os
personagens através do lúdico, do sonho. Uma fuga através daquilo que pertence a um universo mais
inocente, infantil. Para nós, o filme é primeiramente um conto siciliano sobre a morte no qual o amor
pode vencê-la. Um amor tão profundo, tão precioso que pode vencer a morte. O que mantém Luna
firme na procura por Giuseppe é a capacidade que ela tem de sonhar. Ela diz uma coisa no filme que
a define bem. “Se você sonha com alguma coisa, significa que aquilo pode existir”. Ela não consegue
mudar a realidade do que aconteceu, mas através do lúdico, ela pode se rebelar contra aquilo. Para
nós, é uma forma de buscar criar revolução através da fantasia. A fantasia possui um significado
político, um significado de revolução. Porque, com a fantasia, você pode mudar essa revolução no
modo como ela se apresenta. Então, nas fugas pelos sonhos, tanto de Giuseppe quanto de Luna,
eles se encontram. Nos seus sonhos, eles podem escapar dos perigos. De qualquer modo, você
mencionou uma obra que tem o fato de estar preso como tema principal. Em nosso filme há
Giuseppe, que eles sequestram e levam para uma prisão. Este tema é central em nosso cinema
porque nós o vemos como algo que a realidade nos dá, mas, ao mesmo tempo, nós criamos uma
contradição através do nosso estilo, que é mais conectado ao sonho. Há sempre um diálogo no filme
entre a realidade da prisão e o modo como o personagem escapa dela através do lúdico.









As Duas Irenes - Entrevista e Crítica

MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE (18/10/2017)



Fábio Meira cria em As Duas Irenes fábula 

cujos silêncios dizem muito



Por João Paulo Barreto

É o não dito que constrói a gama de sentimentos presentes no longa de estreia do já experiente diretor de curtas metragens e roteirista Fábio Meira. Na feliz opção de não criar uma narrativa expositiva através de soluções fáceis em diálogos explicativos, As Duas Irenes é composto basicamente por olhares.

São aqueles olhares oriundos da jovem de 13 anos que, ao descobrir que possui uma irmã com seu mesmo nome e idade, decide se aproximar da outra. Seus silêncios e observações do que acontece naquele novo e atraente universo fascinam tanto a ela quanto ao espectador. Descobrimos junto com a garota mirrada cada nuance daquela vida que seu pai mantém às escondidas. E são aquelas descobertas que passam a moldar, também, uma nova personalidade para a quase, e ainda ingênua, criança.

As Irenes são opostas, mas suas personalidades se equilibram. A primeira, com seu corpo franzino e ainda infantil, começa sua fase de experimentações justamente por conta de seu contato com a irmã homônima, mais madura e desenvolvida fisicamente, apesar da mesma idade. As duas acabam se completando justamente por possuírem em comum apenas o mesmo pai. Suas personalidades opostas, no entanto, gradativamente se complementam. Enquanto Madalena (pseudônimo adotado pela primeira) tem na presença da meia irmã a influência necessária para colocá-la diante dos comuns momentos chave de qualquer adolescência normal, como o primeiro beijo, o primeiro porre, o contato com roupas mais ousadas, o flerte com garotos no cinema; a segunda Irene, diante de tanta autoconfiança, experimenta sensações que, ao seu ver, pareciam ser cabíveis somente à irmã.

O contraste de maturidades a se mesclar nas duas irmãs
O diretor Fábio Meira observa que essas diferenças vão gradativamente se tornando sutis. “Elas são muito diferentes. Só que, ao conviver juntas, vão ficando parecidas, até que chega um momento de quase uma troca. Elas vão se conduzindo para um lugar onde uma vai se contaminando com a outra. O momento chave dessa troca é aquela segunda cena no cinema, quando acontece uma real troca de lugar”, afirma o cineasta.

As decepções de cada uma parecem, também, trocar de lugar, quando, nessa mesma cena, a Irene tão madura e autoconfiante, sofre seu primeiro revés amoroso e experimenta um pouco da introspecção tão comum à sua nova irmã, que já se percebe segura o suficiente para experimentar, naquele mesmo momento, seu primeiro beijo. “Para mim tudo, passa pela questão do amadurecimento. Elas conseguem ter a capacidade de aprender com a outra. As duas acabam por crescer juntas em um curto espaço de tempo”, complementa Fábio Meira.

As Duas Irenes traz para o espectador uma atmosfera de fábula. Por não se localizar em nenhum recorte temporal (algo bem perceptível pelo fato de que tecnologias atuais não permitiriam que o segredo durasse 13 anos), o filme acerta na criação de um ambiente que capta o espectador pela identificação com símbolos de uma vida mais simples e pacata. Justamente por isso, uma visão acolhedora. A identificação regional é certeira.

Em um roteiro repleto de rimas visuais e elementos representativos do amadurecimento e cumplicidade das protagonistas, o filme reafirma sua ideia de deixar para o espectador as conclusões das consequências daquela omissão por parte de Tonico, vivido por um inspirado Marco Ricca.

Na entrevista abaixo, o cineasta Fábio Meira fala justamente dessa opção e dessas rimas visuais que cativam o público em As Duas Irenes.

O cineasta Fábio Meira
A construção do personagem do Marco Ricca deixa para o espectador a interpretação  do que passa pela cabeça dele em relação a tudo aquilo. Do mesmo modo, não há muita exposição acerca do que passa pela cabeça de Irene, há apenas o processo de descoberta intimo dela. Suas ações falam por ela. Essa opção de contar a história de modo mais fluído, sem muito didatismo, sempre foi sua intenção desde o roteiro?

Com certeza. Isso tem a ver, também, com a minha experiência como espectador. Para mim, me interessa mais os filmes que tenham que colocar algo de mim dentro deles. Que eu tenha que apontar com a minha bagagem, que eu tenha que apontar com  a minha história e com a minha experiência, do que os filmes que me entregam tudo. Para mim, as melhores emoções que existem estão no dia seguinte, na hora em que eu acordar e lembrar do filme que vi no dia anterior. Quando você tem esse envolvimento com um filme, você consegue se apropriar daquela experiência com os personagens. É quando você transforma aquela experiência de ver aquele filme em uma experiência sua. Essa era minha uma intenção.

Existe uma clara opção sua de priorizar as imagens e ação em detrimento de diálogos. Como se deu essa opção?

O ponto de partida dessa história surgiu de um curso que eu fiz com o Gabriel Garcia Marques, em Cuba. E ele falou uma coisa que eu me lembro sempre: “Dialogo e cinema são coisas que não combinam tanto”. Então, a imagem é muito mais forte. É muito mais forte você se apropriar da imagem do que de um diálogo. Porque o diálogo já vem meio pronto. E ele ainda passa, também, pela interpretação de um ator. É diferente quando você mesmo passa pelo diálogo de um livro que você se apropria disso naquela hora, e tudo aquilo faz sentido na sua cabeça e tudo aquilo é super reinterpretado. Em um filme, isso é mais difícil. Este era um fato importante para mim. E tem uma terceira coisa que, também, eu acho muito interessante: o filme existe e gira ao redor destes silêncios familiares, destes tabus. Eu já o exibi em várias cidades onde havia pessoas de minha família na plateia.  E na primeira vez que foi exibido, uma prima minha perguntou que história era aquela. Ela não sabia que era a história de uma tia nossa. Eu apresentei o filme em Fortaleza, e lá estava lá um outro tio meu. Ele também não sabia da história. A mulher dele sabia. Porque a minha avó contou para a nora, mas não contou para o próprio filho. Estes são os tabus aos quais me refiro. São os silêncios familiares. Por conta disso, para contar uma história como essa, eu acho que ela deveria ser contada com imagens muito potentes, não necessariamente apenas com o suporte da fala. 

A cumplicidade e confiança demonstradas em belas rimas visuais
Nesse uso de imagens, eu observo o uma construção de rimas bem eficientes em sua história. Algumas delas saltam aos olhos, como o momento em que as irmãs compartilham a bicicleta, com uma indo no quadro na primeira vez e a outra ocupando esse lugar na segunda, o que denota uma confiança, uma cumplicidade.

E eu ainda colocaria mais uma cena da bicicleta que é que ela está sozinha. Na primeira vez sozinha, na segunda vez com a irmã recém descoberta, e, depois, elas trocam de lugar. O filme tem esse desenho. As Irenes são como um ser invertido. Elas são muito diferentes. Só que elas vão convivendo e vão ficando parecidas, até que elas quase que trocam de posição. Elas vão conduzindo para um lugar onde acabam se contaminando uma com a outra. E tem aquela segunda cena no cinema, também. Naquela segunda vez, acontece a mesma coisa em relação à troca de lugar. Que para mim tudo passa pelo que você já falou antes que é a questão do amadurecimento. Elas conseguem ter a capacidade de aprender com a outra. Ser influenciadas e se deixar contaminar pelo olhar do outro. 

A Irene que primeiro descobre o segredo do pai parece ter naquelas experiências os gatilhos para diversas mudanças em sua vida durante aquela fase de crescimento. As experiências no cinema, as idas à cachoeira, por exemplo. Fico me perguntando como seria esse processo de formação dela se sua vida tivesse seguido normalmente, sem aquela mudança drástica.

Tem uma coisa que é importante que é a escolha da idade da Irene. Treze anos. É esse limiar entre a vida infantil e a vida adulta. A Irene está perdendo a sua ingenuidade, ela esta de olho em como as coisas acontecem na vida adulta, quais são as regras sociais. Ela está percebendo a hipocrisia dos adultos, ela está percebendo um monte de coisa. Ela tem esse trauma que é descobrir esse segredo do pai, e que é uma cosia que a toca profundamente. A partir disso, ela é obrigada a crescer. Então, ela tem essa decisão de crescer com prazer, também. E aí entra uma coisa interessante que você observou que é o papel da sala de cinema dentro do filme. O filme tem dois lados para mim. Desde o roteiro. É a cachoeira e o cinema. Ali as coisas são permitidas, sabe? Ali, eles estão fora do olhar dos adultos. Do olhar social. E ali eles podem experimentar, podem brincar, porque eles estão protegidos. São anônimos.

E você escolhe um cinema como sendo o local que melhor representa essa experimentação. É lá onde ela tem o primeiro beijo. Esse gatilho acaba por influenciá-la em seu crescimento, uma vez que seu amadurecimento surge bem mais rápido a partir daquele, digamos, trauma. E a partir daí ela passa a ter as decisões dela.

Sim. E uma outra coisa que eu te conto que é um curiosidade: a Priscila (Bittencourt), que faz a Irene, deu o primeiro beijo da vida dela nessa cena. Ali ela teve o primeiro beijo dela. Eu acho muito interessante porque ela é uma atriz nata. Muito especial, assim como a Isabela (Torres).  Eu acho muito bonito uma atriz dar o primeiro beijo dela fazendo um filme em uma cena dentro de um cinema. E eu ainda escolhi um menino que nunca tinha beijado. E não contei para ninguém (risos). Então, aquela cena ali é basicamente documental. 

Tonico (Marco Ricca) e o peso de um segredo cujo desgaste é iminente
O filme inverte uma expectativa quando não se rende ao clichê catártico da casa caindo, das brigas acontecendo. Esse é um dos méritos. Você deixa essa interpretação para o espectador. Foi sua intenção, também?

Sim. E isso tem a ver com sua primeira pergunta, a de deixar que o público coloque a experiência dele ali. Eu acho que quando você deixa essas lacunas, o espectador se coloca, ele tem que uma postura ativa, uma postura emocional Isso aumenta a carga de emoção. Eu acho mais emocionante não mostrar tudo do que mostrar.  Quantas vezes a gente já não viu essas cenas de gritarias e brigas e de não sei o que? E quem mais aguenta ver isso? Para mim, é muito mais interessante que a pessoa faça isso na própria cabeça. Eu acho que o filme continua mais vivo nela mais tempo depois, por conta disso. 

É curioso como o público parece esperar por esse tipo de desfecho.

Sim, é verdade. Olha, o filme já passou em vários festivais da Europa, EUA e América Latina. E eu já escutei coisas muito interessantes. Eu até me surpreendo, às vezes. No México e no Peru diziam muito: "Ah, que bom que não é um dramalhão." Uma outra pessoa observou: "que bom que não tem violência". Lá em Gramado, uma criança com uns seis anos, ator de outro filme, falou: ''eu gostei muito porque não tem ódio". Isso me fez pensar bastante. Hoje, por exemplo, saindo de casa, eu presenciei uma situação no trânsito que pareceu um acidente. E eu via as pessoas tirando fotos do corpo no chão.  Fiquei pensando no como a gente está acostumado com ódio e com violência. E como isso é doentio. De repente, chama mais atenção você não mostrar ódio, quando o natural, para mim, é que o ódio chamasse atenção. A violência chamasse atenção. E não o contrario. A gente está em um momento muito complexo da vida. Um momento muito violento, muito complicado não só na história do país como do mundo. É estranho que o fato de você não ser violento chame a atenção. 



sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Pendular

Cineasta Júlia Murat analisa a perda do espaço 
individual no instigante Pendular


Por João Paulo Barreto

Em que ponto o respeito ao espaço mútuo que equilibra uma relação profissional e amorosa se perde diante de uma rotina de decepções tanto artísticas quanto emocionais? Em que ponto tais frustrações explodem não somente em reações de fúria, mas, também, de extravasar físico? 

Com Pendular, Júlia Murat consegue uma abordagem plena acerca do impacto emocional que tais restrições causam a um casal cujos espaços individuais, tanto físicos quanto íntimos e sentimentais, começam se chocar em uma mescla de autodestruição e estoicismo. A roteirista e diretora constrói aquela espiral sem necessariamente colocá-la como descendente. Há uma esperança inicial na saúde daquele relacionamento. 

O filme, aliás, não aponta dedos para julgar seus protagonistas como certos ou errados. Não há maniqueísmo. Não há vilões e mocinhos aqui. O que existe é uma saturação que exige cuidado de ambas as partes, mas que, diante de um bloqueio criativo e de frustrações  atreladas à sensação de vazio, a força que cada um esperava encontrar no outro se esvai  de modo quase fugaz. Gradativamente, aquele equilíbrio tão bem representado por brincadeiras, como aquela representada por uma bolinha de papel, se esvai em inseguranças.

Ela a observar a perda gradativa de seu espaço físico e emocional
Dentro daquela dupla, Ela utiliza a dança para extravasar suas ansiedades. Dois corpos ágeis a se confrontar em respirações sem fôlego. Quando sozinha a bailar, balança rapidamente ao som de Joy Division em uma rima sonora eficiente, uma vez que a música fala justamente de boas intenções amorosas que são responsáveis por aquela quebra de sintonia. Na cama, o extravasar positivo de ambos é pleno. Do mesmo modo, o entregar-se àquele momento é sem pudores, algo que denota muito bem o uso do sexo como válvula de escape. Não é ali que eles se vêem mal resolvidos, para usar uma expressão popular. Mas, quando fora daquela cama, as dores parecem suplantar qualquer prazer anterior. O sexo parece não ser lembrado como um desejo que querem voltar a reviver, mas, sim, uma necessidade física de extravasamento.

Já Ele, quando frustrado por não conseguir inspiração na criação de suas esculturas, joga videogame e conversa com estranhos on lne, características que denotam certa imaturidade e não muita perspicácia no que tange à propostas feitas em momentos de impulso. “Quero te dar um filho”, afirma após um orgasmo simultâneo. Ela, em segundos de silêncio, replica que não quer um filho. Antes de tudo, a colocação infeliz do parceiro já delimita o estado daquela relação. O filho, para ele, seria dado à parceira. Para Ela, porém, seria mais uma coisa a representar a tomada de seu lugar por Ele. Em um simbolismo delicado, a perda que Ela sofre do espaço físico no ambiente de trabalho inicialmente dividido de modo exato pelos dois, avança para sua própria vida, com a dedicação de suas preocupações aos problemas dele. Em uma compreensível autopreservação, o espaço em seu útero é algo que Ela quer somente para si, não cabendo qualquer suposto presente que Ele queira lhe dar. Talvez se colocação fosse “quero nos dar um filho”, o impacto tivesse sido menos frustrante.

TRABALHO COMO FUGA

Ela, enquanto profissional da dança, mesmo em momentos de fuga, usa sua arte como extravasamento. Não há uma separação entre lazer e trabalho. Para Ela, a dança é o que lhe localiza, lhe norteia. Sua inspiração naquela criação é o que lhe ajuda a prosseguir. Seu trabalho funciona como uma válvula de escape. Apenas o sexo, em sua totalidade, lhe serve como folga. “Isso vem um pouco da dança. Dessa entrega que as bailarinas costumam ter. Além disso, na dança, ela encontrava momentos de riso, de descontração, algo que ele não encontrava em momento algum em seu trabalho”, afirma Júlia Murat, durante o diálogo pós sessão em Salvador, no Espaço de Cinema Glauber Rocha.  Na situação dele, inclusive, o filme é ainda mais incisivo ao colocá-lo sem amigos reais. O único que supostamente seria um amigo é, também, um crítico de arte. “Essa acaba sendo uma relação de vaidade, de disputa que ele tem. Tudo, menos de amizade”, complementa a diretora. Travado em um bloqueio intelectual, Ele ainda encontra meios de separar-se de sua labuta deixando-a de lado para leitura e jogos. O sexo é algo a mais. Mas, no fundo, frustrado por não conseguir realizar, acaba não se desligando.

Júlia Murat em entrevista concedida ao Portal EBC

PERDA AFETIVA E MATERNAL

Na afirmação d'Ele para Ela acerca do tal presente, uma simbologia perfeita dessa retirada do último espaço que ela ainda mantinha como sendo seu. “Espaço e corpo acabam, no filme, sendo a mesma coisa”, afirma Murat “Essa gravidez se torna uma invasão desse espaço em seu corpo. Por isso o diálogo em que Ela fala que se sente como se houvesse uma vespa a devorando por dentro”, complementa. Tal ideia, a partir desse ponto, encontra consequências duras para os dois. O trauma daquela gravidez indesejada é o estopim para o fim.

Após privações e perdas, entretanto, o repassar de lições, o olhar para trás, a análise que se pretende fria de uma relação já esgotada traz tudo menos uma conciliação real daqueles dois artistas. Talvez por isso, percebe-se que a única forma de uni-los está justamente na arte.

O simbolismo de vê-la bailando sobre uma escultura produzida pelo próprio parceiro ecoa com ainda mais força ao se alcançar esta percepção.

Filme segue em cartaz no Cine XIV, Pelourinho.

Ela e Ele: frustrações, perdas e bloqueios



segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Entrevista: Marcelo Caetano - Corpo Elétrico

ENTREVISTA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE:
http://atarde.uol.com.br/cinema/noticias/1897345-em-corpo-eletrico-marcelo-caetano-aborda-com-propriedade-o-impacto-das-relacoes-trabalhistas


Em Corpo Elétrico, Marcelo Caetano aborda com propriedade o impacto das relações trabalhistas no intimo de indivíduos libertários 

O cineasta Marcelo Caetano (Foto: Divulgação)
Por João Paulo Barreto

Longe de trazer referências simplistas em seu título, Corpo Elétrico, primeiro longa metragem do diretor Marcelo Caetano, é um filme onde a relação entre seus personagens não se baseia unicamente na atração, digamos, elétrica que eles possuem entre si. A intenção aqui está em mais do que meramente aludir ao comportamento libertário e intenso deles. Na referência direta aos escritos do poeta estadunidense Walt Whitman, Caetano buscou para seu filme uma ideia mais profunda do que é a liberdade para os homens e mulheres que constroem aquela história. “O olhar de Whitman observa, deixa o outro se mover em seu tempo, penetrar no seu olhar, ficar um tempo e sumir. Tem muita beleza nisso, no olhar, e não diz respeito à velocidade, mas, sim, à idéia de potência de liberdade. De respirar junto dos outros corpos”, salienta o cineasta.

Nessa construção, o longa reflete acerca da necessidade de aceitação do que é diferente, algo do que a obra de Whitman trata. “É essa abertura para aceitar a diferença sem julgamento que fazem de Whitman o espírito democrático que nenhum sistema de governo será capaz de recriar”, complementa Marcelo.

Na entrevista abaixo, feita por e-mail, Marcelo Caetano responde algumas perguntas acerca não somente dessa profundidade temática levantada pelo seu trabalho, mas, também, acerca da brilhante crítica a um sistema no qual as relações empregatícias aprisionam o ser humano, tornando a necessidade da venda do próprio tempo e força de trabalho uma das principais algo a torturar física e psicologicamente as pessoas.

Confira o papo!

Seu filme aborda de forma eficiente diversos temas importantes, como a exploração empregatícia; a questão do imigrante que acaba, também, sendo explorado como mão de obra barata; a relação mesquinha entre patrão e funcionários, além do modo como isso afeta psicologicamente quem está no lado mais fraco desta relação. E isso é inserido de forma bem orgânica, sem ser panfletário, deixando para o espectador a conclusão destas reflexões. São cenas como aquela em que Diana, de viagem marcada para Londres, chega para Elias e diz que não o quer trabalhando até tarde: "Leva para casa", recomenda. Na escrita do seu roteiro, como se deu a construção destes temas?


Eu acredito que essas questões não sejam tratadas de forma panfletária no filme porque eu mesmo desconfio das soluções que geralmente nos são apresentadas. Acredito que o século XX, tanto nos países capitalistas quanto socialistas, colocou o trabalho como elemento central na construção das subjetividades e o que tento fazer no filme é mostrar esse desamparo, essa falta de horizonte uma vez que entendemos que o trabalho não nos tornará livres. As pessoas acham engraçado o modo como a chefe de Elias o vê apenas como mão-de-obra em aprimoramento, capaz de suportar tudo para ser um profissional melhor. Mas muita gente não se dá conta que ela mesma vai tirar férias pensando unicamente em trabalho, conectada no outro lado do mundo, indo a feiras de vestuário nas brechas do descanso. A questão central do filme vem ai: existe alguma possibilidade de liberdade dentro da sociedade capitalista? É óbvio que quem tem uma posição privilegiada consegue comprar tempo, enquanto os desfavorecidos vendem todo o tempo que tem para sobreviver. Mas todos os corpos estão desequilibrados na relação entre prazer e trabalho. Eu entendo quem acha o filme leve, divertido, mas eu particularmente sinto também um tom agridoce costurando muito
dos sentidos do filme, dessa relação entre ócio/catarse e trabalho.

Elias em sua vida de descobertas 


Na mesma linha fluída, a naturalidade com que os personagens levam suas opções confirma a intenção do projeto em não cair na armadilha de dramas bem comuns a diversos longas, quando o protagonista não está bem resolvido com sua opção sexual diante de uma sociedade que o cobra pelo contrário. Não há, por exemplo, aquela expectativa de descoberta, de encontro entre os dois, apesar de você colocar inicialmente essa possibilidade no interesse de Elias por Filipe, o que, para mim, demonstrou essa ideia de desconstrução positiva da expectativa. Acho que já está mais do que na hora destas características serem inseridas na ficção de forma mais fluída, sem a necessidade fazer daquilo um bicho de sete cabeças que tanto o espectador quanto as pessoas dentro da trama precisam se torturar para aceitar. Também seguiu esse direcionamento a sua escrita?

Elias tem uma orientação sexual e não uma opção sexual. E acho que essa confusão de termos na sua pergunta me leva a uma reflexão. Justamente por não ser uma opção, eu não preciso marcar a narrativa com um ponto de virada: "oi, eu sou gay", "olá, encontrei um homo-amor" a partir de um ou outro momento do filme. É uma orientação no sentido de um fluxo, do desejo, da pulsão do corpo com a trajetória de um rio, por isso essa idéia do desaguar no mar é tão presente no filme. Os personagens estão no mundo imenso, são atravessados por diversas questões raciais, sociais, trabalhistas e não apenas pela identidade sexual. Mas ser gay também é uma afirmação para Elias e Wellington, a partir do momento que eles não negociam sua sexualidade dentro do grupo predominantemente hetero dos trabalhadores. Mas, sim, no roteiro eu não quis confinar o Elias às clássicas histórias de coming-out e boy-meets-boy, como criticam os estudos queer estrangeiros. A idéia é sempre buscar um novo repertório de encontros e amores, jogar num campo mais estranho e menos premeditado.

Você trabalhou no casting de Aquarius, onde conheceu Kelner. Do mesmo modo, passou por experiências também como assistente de direção junto a Gabriel Mascaro, em Boi Neon, e colaborou como assistente de direção de Hilton Lacerda em Tatuagem, além de outros trabalhos no audiovisual. Com essa bagagem. migrar para a a direção, mesmo já tendo curtas metragens no currículo, foi um processo difícil?

O processo foi bastante tranquilo, justamente por toda a experiência de trabalhar com esses diretores. Não tenho formação acadêmica no cinema e no set ocorreu meu grande aprendizado de técnicas de direção. A última diretora para quem fiz assistência, a Anna Muylaert, me ensinou muito sobre como olhar para além das minúcias do roteiro e focar na estrutura narrativa como norte das filmagens. Poderia dizer uma coisa incrível que descobri com cada um deles, mas na essência prefiro dizer que aprendi exatamente a respeitar minhas obsessões e excentricidades, a seduzir a equipe e elenco para um ponto de vista, para uma necessidade da cena. É o que fica: a necessidade de fazer o filme!

Momento de união de todos os personagem em cena de difícil orquestração

Há no seu filme um momento bem bonito no modo como o posicionamento dos personagens e a entrada e saída de cada um em cena denota não somente uma união do elenco como, aos poucos, vai apresentando características pessoais de cada um deles. Refiro-me ao momento em que, tarde da noite, todos eles saem da confecção e caminham pela rua. Como foi a construção daquela cena? Tanto no papel, com todas as nuances dos que você queria exibir nas personalidades dos participantes dela, quanto na prática, ao se ver diante dos desafios que o ato de filmá-la trouxe.

Essa cena foi construída na sala de ensaio com participação ativa dos atores e como resultado de um longo processo de pesquisa. Com todos atores nós fizemos uma imersão no universo dos trabalhadores do Bom Retiro, com visitas à fábricas e conversas. Tendo esse repertório em mãos, nós começamos a desenhar quem seria quem dentro da fábrica. Quais as questões afetavam o presente de cada um deles e como cada trabalhador existiria enquanto uma individualidade. Com isto definido, começamos a desenhar os afetos dentro da fábrica, quem se gostava, quem não, quem nem se conhecia, quem tinha intimidade com outro. Fui propondo exercícios cênicos de improvisação e percebendo essas relações, definindo sub-grupos. Daí fomos para a rua caminhar juntos, montar essa coreografia in loco. Filmei os ensaios, editei e mandei para os atores tudo que achava rico das nossas descobertas no improviso. E, aí, criei uma espécie de roteiro coreográfico para repetirmos no dia da filmagem.

Lembro-me de ter visto um comentário seu acerca da influência do Maurice Pialat na criação não somente desse momento, mas na bela tomada em que vemos Elias caminhar por entre os guarda chuvas. Em quais outros aspectos você citaria essa influência?

O Pialat sempre me fascinou pela forma com que trabalha a potência do momento presente na encenação dos corpos. Há um grau de intuição e instintividade na forma como os atores agem, há pouca premeditação, parecem corpos sem consciência do passado ou do futuro, eles estão à mercê do presente apenas. Isso é desafiante, trabalhar para eliminar do ator suas expectativas, seus cálculos. Convidá-los para existir nas relações entre os corpos em cena, jogar uns com os outros. Essa para mim é a marca de filmes como A Nos Amours (A Nossos Amores, filme de 1983), que me influenciou muito enquanto técnica de direção.



Essa cena em questão é outro símbolo do que me referi no começo, acerca do modo como seu filme deixa para o espectador a responsabilidade dessa percepção. Elias caminha pela chuva, sem se preocupar em se molhar, tá ali em São Paulo, uma cidade que pode assustar quem chega para tentar dominá-la, principalmente alguém vindo do nordeste. E ele não faz planos. Apenas segue à deriva, algo que a gente vê impresso na hora em que ele é arguido por um supervisor na confecção acerca de onde se imagina em cinco anos.

Sim! E os métodos do Pialat e sua relação com o instante de existência dos corpos tem a ver com isso. Outra coisa que gosto do Pialat é a repetição, os homens que Suzanne deita, os tapas que ela leva quando volta para casa, as reincidências e as repetições. Filmei a cena da saída de Elias na multidão da José Paulino diversas vezes, com vários figurinos do personagem, justamente para ter esses elementos de repetição dentro do filme. Foi tudo no mesmo dia, variando pouco o ângulo... só que choveu no meio dessas duas horas de filmagem, o que fez surgir os guarda-chuvas.

Observando essas nuances de seu roteiro, seria muito óbvio e previsível achar que o nome do filme tem algo a ver somente com a energia dos seus personagens. E aí você confirma isso ao falar da influência de Walt Whitman nessa escolha. Em que mais os escritos do estadunidense contribuíram?

Whitman influenciou a decisão de trabalhar com um personagem prismático, capaz de se moldar nos encontros com os outros, dos diversos outros. É essa abertura para aceitar a diferença sem julgamento que fazem de Whitman o espírito democrático que nenhum sistema de governo será capaz de recriar. Ele propõe um ideal humano e a eletricidade é essa potência que muitas vezes está dormente, oprimida, aniquilada. Mas ela está ali, basta olhar com cuidado. Eu fiquei mal impressionado ao ler críticas que falam de falta de eletricidade no filme. Basta ler o Whitman e entender qual conceito de eletricidade estou trabalhando, é mais elástico. O olhar de Whitman não é agitado, nem dionisíaco, muito menos explosivo. Ele observa, deixa o outro se mover em seu tempo, penetrar no seu olhar, ficar um tempo e sumir. Tem muita beleza nisso, no olhar, e não diz respeito à velocidade, mas, sim, à idéia de potência de liberdade. De respirar junto dos outros corpos.

Você trabalhou com Márcia Pantera e Linn da Quebrada. Foi difícil em termos de direção colocá-las para atuar ou o processo de ensaios fluiu bem?


Olha, são duas gerações queers. Com muitas diferenças, muitas. Mas não foi difícil, pois são duas das artistas mais generosas com quem trabalhei. Linn é muito intelectualizada, inteligentíssima, seu corpo é político, como diz o filme da Alice Riff. Márcia é um ser da noite, de um trabalho de uma fisicalidade ímpar, do bate-cabelo. E a geração desconstruída dos jovens de hoje estranha muito os shows de drag da geração da Márcia, parecem apolíticos, anacrônicos, especialmente os shows de humor. Por isso mesmo elas se viam, não se entendiam, mas estavam abertas para conhecer a fundo o universo da outra. Eu soube me valer disso para as cenas e há sempre um ruído entre as personagens delas. Ah! É importante lembrar que a Linn está interpretando a personagem Simplesmente Pantera e na época que filmamos não existia a Linn da Quebrada!

Eu volto a abordar essa naturalidade com que seu filme insere a sexualidade de seus personagens, só que, dessa vez, em um contexto novo. Esse mês, a imbecilidade da direita brasileira levou um juiz a liberar liminar de um grupo de psicólogos que solicitava a permissão para manter terapias de "reversão sexual". Isso me faz pensar com certo medo no que os próximos anos podem trazer, se esse retrocesso continuar a avançar no Brasil. Não somente esse fato recente, mas diversos outros que ferem a liberdade, tornam urgente a existência de um cinema que aborde temas LGBT com ainda mais continuidade. Como parte da geração atual de cineastas, como você encara a função do cinema na missão contra essa leva de ignorantes e oportunistas políticos?

Olha, desde que eu nasci assim e cresci assim tive que aprender a lidar com o conservadorismo. Ele é mutante, vai se transformando no tempo, mas voilá... permanece obsessivamente homofóbico. Minha função é criar um repertório para um lugar novo, novas imagens, universos em que eles não possam pautar minha criação. É uma luta, pois a imbecilidade deles o tempo todo me destrói! Mas é preciso reerguer e seguir. Avante!

A TARDE: Black Sabbath - The End of The End


Black Sabbath - The End of The End

(UK, 2017) Direção: Dick Carruthers. Com depoimentos de Ozzy Osbourne, Tony Iommi e Geezer Butler. 


Por João Paulo Barreto

The End of the End, mescla de documentário e registro fílmico da última apresentação ao vivo do Black Sabbath, a banda que deu origem ao heavy metal, inicia com imagens de uma siderúrgica em Birmingham, Inglaterra, cidade onde Ozzy Osbourne, Tony Iommi, Geezer Butler e Bill Ward criaram o embrião do que seria o fenômeno base do hard rock.

O simbolismo destas imagens traz não somente uma rima visual para com o peso do som que o Black Sabbath popularizou durante décadas, mas, também, alude à carga emocional que o espectador e fã do bom Rock and Roll presenciará pelos próximos 120 minutos. Sim, neste aspecto, trata-se de um filme de peso. Mas não por pretender apelar para nostalgia ou lamentações em torno do término da banda. Nem por querer abordar o emocional nas falas de fãs acerca da importância do Sabbath para a vida de cada um deles. Através do depoimento dos seus integrantes, o  peso dramático do trabalho dirigido pelo experiente diretor de documentários musicais, Dick Carruthers, centra-se não na ideia de lamentar o fim, mas na celebração dos quarenta e nove anos de carreira e, mesmo após tantos excessos, na ainda atividade de Osbourne, Iommi e Butler.

Ozzy se diverte ao relembrar as loucuras dos tempos áureos 
O show em questão foi gravado em fevereiro desse ano, na cidade natal deles. Foi lá que, na segunda metade dos anos 1960, um garoto chamado John Michael, mas apelidado de Ozzy, afixou anúncios em bares demonstrando interesse em formar uma banda de focada em Rock e Blues. O interesse surgiu de Tony Iommi, que já conhecia o Ozzy da escola, mas ficou em dúvida se aquele moleque do colégio era o mesmo que agora queria iniciar um grupo musical. Começaram sob a alcunha de Earth, tocando Blues no Pokey Hole Blues Club, na cidade vizinha de Lichfield. Não tardaria muito para aquele grupo de Blues migrar para o Rock como Black Sabbath, nome de um dos filmes do diretor italiano Mario Bava, muito apreciado por Tony Iommi.

O documentário corta para os companheiros de longa data caminhando em direção ao seu último show, em Birmingham. Durante aqueles passos, ouvimos Tony comentar que se sente como se caminhasse em um corredor da morte. Muito pelo contrario, na verdade. Para alguém que conseguira, sem parte dos dedos da mão, se transformar em um dos mais influentes guitarristas do mundo, além de sobreviver a um linfoma tratado com quimioterapia durante as gravações e turnê do último disco, o Thirteen, lançado em 2013, aqueles passos em direção ao seu derradeiro concerto significa muito mais uma superação e vitória da vida, do que a caminhada de um condenado.

Ao nortear o peso do Heavy Metal trazido no quase meio século de estrada do Balck Sabbath, o Blues inicial da carreira do grupo funcionou como base. O guitarrista e bluesman baiano, Álvaro Assmar, pesquisador e profundo conhecedor da carreira do grupo confirma isso. “O Blues é a matéria prima da música pesada do Sabbath. Isso é perceptível desde o primeiro disco, em canções como Warning. Há um trecho em Warning que é um típico Blues padrão de 12 compassos. Quando ainda se chamava Earth, a banda tinha seu foco principal no Blues ”, explica Álvaro, que começou a ouvi-los em 1972, esteve no show deles no Rio de Janeiro em 2016 e assistiu bastante emocionado ao filme que simboliza o final do grupo. “O filme traz momentos que para um fã do Black Sabbath são muito impactantes. No meu caso, que os escuto já há 45 anos, confesso ter me emocionado, principalmente durante as apresentações de Snowblind e War Pigs”, admite o guitarrista, pai do Blues baiano.

O guitarrista Álvaro Assmar, profundo conhecedor do Black Sabbath
As duas faixas em questão, pilares da discografia do Sabbath, sendo a primeira um relato dos excessos que a banda teve com cocaína, e a segunda um hino do protesto antibélico, representam uma desmistificação da suposta áurea relacionada à magia maligna que o grupo possui. Durante o filme, os integrantes remanescente, Ozzy, Tony e Geezer (por questões pessoais e de saúde, Bill, o baterista original, foi substituído pelo eficiente Tommy Clufetos) explicam que tudo isso foi construído por conta de uma escolha da gravadora em colocar uma cruz invertida na contracapa do primeiro disco. A banda, ao perceber que isso atraia público, apenas seguiu no embalo. Em um episódio hilário, um grupo de adoradores portando velas acesas e trajando capas pretas acampou no corredor do hotel onde eles estavam hospedados durante uma turnê inicial. Para tentar afugentá-los de lá, a reação do grupo, que não contava com muitos seguranças, foi a de cantar “Parabéns para Você” e apagar as chamas, fato contado por Iommi entre risos dos dois outros parceiros. Um dos momentos simbólicos da celebração trazida pelo documentário.

Entre as execuções de riffs marcantes como os das duas músicas citadas, além das marcas registradas Iron Man e Paranoid, o show do Black Sabbath exibido no cinema traz para o fã momentos de pura catarse. Muito disso se deve à opção de apresentar uma montagem rápida e entrecortada pelos rostos ao mesmo tempo sorridentes, lacrimosos e alucinados dos felizardos que estavam presentes no estádio em Birmingham a testemunhar aquele momento histórico.

Ozzy em momento de catarse no show de fevereiro
“Essa é a característica mais marcante do Back Sabbath. A capacidade de Tony Iommi criar frases rítmicas ou riffs marcantes. São músicas que possuem uma finalidade de chegar ao grande público sem a necessidade de ter um guitarrista triturando um instrumento, tocando milhões de notas por segundo. Aqui, o que mais conta é criatividade e a sinceridade no ato de tocar”, afirma Álvaro Assmar ao lembrar do que, para ele, mais simboliza a banda inglesa. “Essa sinceridade, inclusive, juntamente com todos os percalços pelo que ele teve que passar na vida, é o que torna mais meritória a carreira de sucesso de Iommi e do Sabbath”, complementa Assmar.


O que fica ao final é a sensação de um trabalho bem feito. Um cumprimento de uma missão. Definindo essa labuta de 49 anos, Iommi afirma que se sente feliz por poder sair de cena em um momento programado por eles, sem permitir que acabem por se tornar convidados indesejados em na festa do Rock and Roll. Receita infalível para a eternidade. 

Vida longa ao Sabbath! 

A formação clássica acompanhada pelo baterista  Tommy Clufetos





quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O Piano que Conversa

(Brasil, 2017) Direção: Marcelo Machado. Com Benjamim Taubkin.



Por João Paulo Barreto

A rigor, documentários musicais seguem à risca uma fórmula que pode ou não ser bem sucedida. Tal estrutura se baseia em uma série de depoimentos acerca de um tema, de uma banda ou pessoa específica ou de um disco marcante. Tais falas são geralmente intercaladas por imagens de arquivo do objeto de pesquisa, shows e cenas familiares. Este é o lugar comum dos documentários musicais. Não que seja um erro seguir este padrão. Só para citar dois excelentes: Searching For Sugarman, sobre o músico Sixto Rodriguez, e Living in the Material World, documento sobre a vida de George Harrison, com Scorsese capitaneando, acertam em suas construções, mesmo se baseando nesta direção. No entanto, quando um realizador ousa fugir deste enquadramento, é quando as verdadeiras surpresas se apresentam ao espectador.

No caso de O Piano que Conversa, vencedor do Prêmio Petrobrás do Festival In-Edit Brasil, essa riqueza de possibilidades exploradas é o que salta aos olhos (e ouvidos) do público. Trata-se de uma proposta ousada: apresentar um documentário acerca da música, usando o piano como norte, mas sem se basear em falas.  Tendo o instrumento como chave e sem qualquer diálogo ou depoimento para a câmera, o diretor Marcelo Machado constrói gradativamente uma narrativa através desta união, apresentando um leque surpreendente de possibilidades nos caminhos encontrados ao optar apenas pela música para levar pela mão o seu público.

Benjamim Taubkin durante apresentação que integra o filme
Nesta missão, ele acompanha o experiente pianista Benjamim Taubkin, que se encontra com músicos de diversas partes do mundo, construindo um diálogo entre o piano e os mais variados instrumentos. Sem discursos, o filme deixa que quem o assista perceba como será guiado por aquela narrativa. E o que encontramos é a já citada comunhão de sons e de povos. O pianista se apresenta com profissionais do Brasil, Israel, Moçambique, Polônia, Bolívia e Coréia do Sul. Todos os encontros são inseridos na tela de forma orgânica, calma, fazendo o espectador perceber a cumplicidade daquelas pessoas apenas através de seus sorrisos, cantos e toques musicais.

“Eu passei muito tempo ensaiando e pensando como fazer esse filme. Neste período, me aproximei do Benjamim, ouvindo-o tocar e pensando em possibilidades. O que o eu percebi é que a música instrumental tem um caráter universal. Mesmo tendo algumas canções cantadas, notei que aquela era uma oportunidade incrível para poder privilegiar a essência da música. Com isso em mente, a ideia era se afastar da palavra, se afastar das entrevistas, dos depoimentos, que são umas características fortes dos documentários musicais”, explica o diretor Marcelo Machado.

UNIÃO DE INSTRUMENTOS

Para Benjamim Taubkin, criar esse diálogo através da música não era algo tão difícil em sua posição de instrumentista. “Em minha vida, quando estou tocando, eu acho que expresso coisas que são mais difíceis de expressar em palavras. De alguma forma, sinto que há uma comunicação que vai direto para a música. Que é uma linguagem dela. Durante o projeto, essa sensação de que tal linguagem estava prevalecendo era clara. E eu me sentia muito bem com isso”, explica. Com a não inserção de diálogos, o filme valoriza essa comunicação, extrapolando-a para um nível ainda maior, quando, por exemplo, une instrumentos de diferentes culturas (no caso, um berimbau e de uma cítara coreana) em uma mesma mensagem.

O pianista junto ao percussionista israelense Itamar Doari
O diretor Marcelo Machado explica que “nessa cena, se você prestar atenção, verá que o timbre da cítara tocada por aquele musicista da Coréia e o do berimbau dialogam de forma linda. O berimbau, um instrumento rústico, de apenas uma corda, comparado à cítara, com 25 cordas. Há algo do encontro de algo ao mesmo tempo antigo e sofisticado com o elemento rústico do berimbau, mas não por isso menos rico”.

MONTAGEM APURADA

Um grande passo para tornar aquela narrativa fluída, sem descambar para o monótono, era a montagem. Para tanto, o cineasta contou com a experiência de Joaquim Castro, que já havia trabalhado em outros dois documentários musicais que surpreendiam por sua estrutura fora dos padrões.

“Após assistir ao filmes Jards, sobre o Jards Macalé, e Dominguinhos, ambos montados pelo Joaquim, eu percebi um olhar bastante sensível que ele tinha para essa construção. E ele não assina somente a montagem, mas, também, o desenho de som, junto com o Rafael Benvenuti”, salienta o diretor.

Neste aspecto técnico do filme, o do desenho de som, reside uma de suas principais riquezas: a construção de uma narrativa através de seus raccords, que é a união de elementos (sonoros, neste caso) que geram uma continuidade para o filme, uma estrutura em sua linguagem. Com tal percepção, o espectador se surpreende ao ver o barulho oriundo de uma ferramenta a lixar um piano migrar para o som de um caminhão que acolherá aquele instrumento na rua de uma cidade como São Paulo, onde todos os sons colaboram para uma cacofonia. Do mesmo modo, em outro cenário do filme, uma fazenda onde o grupo Clareira toca ao ar livre, o diretor e montador optam por ligar os sons oriundos de um chocalho bovino, para o som do toque de mãos em palhas de um telhado, seguindo para o barulho oriundo de uma fogueira.


Participação das cantoras bolivianas
“Essa ideia dos sons inseridos vem de algo que eu e o Benjamim tínhamos planejado fazer, que era abordar um documentário sobre essa transformação dos sons em música. Essa cacofonia, os sons da cidade, com os sons rurais, tudo contribuiu. Havia essa proposta de mostrar a criação da música através de ruídos, algo que, para mim, que passou a adolescência ouvindo o mestre Hermeto Pascoal, sabia que não era algo muito incomum. Sempre aprendemos com esses mestres aqui. Que desses ruídos era possível fazer música”, salienta Marcelo.

ALMA DO PIANO

Com o título a destacar principalmente a presença do piano em cena, o filme casa aos seus sons imagens do instrumento em uma ambientação repleta de simbolismo. É o caso quando o diretor opta por mostrar o funcionar de um piano por dentro, algo que remete à ideia de introspecção do músico. “Para mim, esses momentos trazem essa analogia do pianista que mergulha para dentro, sabe? Que busca em sua introspecção algo que o mova ao tocar, algo que vem de dentro, mesmo ”, completa Marcelo.

Para Benjamim, essa introspecção se relaciona justamente com o que foi dito por ele acerca de conseguir se expressar mais facilmente com a música do que com as palavras. O pianista, no entanto, em tempos xenofóbicos, ratifica uma mensagem ainda mais importante do filme: a de respeito por outros povos e culturas. “Nestes encontros, buscamos um contato verdadeiro com outras culturas. Buscamos conhecer a música e ter um diálogo com ela. O som gerado é algo comum aos dois lados. É uma descoberta e nós aprendemos muito”, afirma Benjamim. Para se transmitir respeito, nem sempre são necessários diálogos. Muitas vezes um sorriso sincero basta. O filme traz isso de sobra.