segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Entrevista: Marcelo Caetano - Corpo Elétrico

ENTREVISTA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE:
http://atarde.uol.com.br/cinema/noticias/1897345-em-corpo-eletrico-marcelo-caetano-aborda-com-propriedade-o-impacto-das-relacoes-trabalhistas


Em Corpo Elétrico, Marcelo Caetano aborda com propriedade o impacto das relações trabalhistas no intimo de indivíduos libertários 

O cineasta Marcelo Caetano (Foto: Divulgação)
Por João Paulo Barreto

Longe de trazer referências simplistas em seu título, Corpo Elétrico, primeiro longa metragem do diretor Marcelo Caetano, é um filme onde a relação entre seus personagens não se baseia unicamente na atração, digamos, elétrica que eles possuem entre si. A intenção aqui está em mais do que meramente aludir ao comportamento libertário e intenso deles. Na referência direta aos escritos do poeta estadunidense Walt Whitman, Caetano buscou para seu filme uma ideia mais profunda do que é a liberdade para os homens e mulheres que constroem aquela história. “O olhar de Whitman observa, deixa o outro se mover em seu tempo, penetrar no seu olhar, ficar um tempo e sumir. Tem muita beleza nisso, no olhar, e não diz respeito à velocidade, mas, sim, à idéia de potência de liberdade. De respirar junto dos outros corpos”, salienta o cineasta.

Nessa construção, o longa reflete acerca da necessidade de aceitação do que é diferente, algo do que a obra de Whitman trata. “É essa abertura para aceitar a diferença sem julgamento que fazem de Whitman o espírito democrático que nenhum sistema de governo será capaz de recriar”, complementa Marcelo.

Na entrevista abaixo, feita por e-mail, Marcelo Caetano responde algumas perguntas acerca não somente dessa profundidade temática levantada pelo seu trabalho, mas, também, acerca da brilhante crítica a um sistema no qual as relações empregatícias aprisionam o ser humano, tornando a necessidade da venda do próprio tempo e força de trabalho uma das principais algo a torturar física e psicologicamente as pessoas.

Confira o papo!

Seu filme aborda de forma eficiente diversos temas importantes, como a exploração empregatícia; a questão do imigrante que acaba, também, sendo explorado como mão de obra barata; a relação mesquinha entre patrão e funcionários, além do modo como isso afeta psicologicamente quem está no lado mais fraco desta relação. E isso é inserido de forma bem orgânica, sem ser panfletário, deixando para o espectador a conclusão destas reflexões. São cenas como aquela em que Diana, de viagem marcada para Londres, chega para Elias e diz que não o quer trabalhando até tarde: "Leva para casa", recomenda. Na escrita do seu roteiro, como se deu a construção destes temas?


Eu acredito que essas questões não sejam tratadas de forma panfletária no filme porque eu mesmo desconfio das soluções que geralmente nos são apresentadas. Acredito que o século XX, tanto nos países capitalistas quanto socialistas, colocou o trabalho como elemento central na construção das subjetividades e o que tento fazer no filme é mostrar esse desamparo, essa falta de horizonte uma vez que entendemos que o trabalho não nos tornará livres. As pessoas acham engraçado o modo como a chefe de Elias o vê apenas como mão-de-obra em aprimoramento, capaz de suportar tudo para ser um profissional melhor. Mas muita gente não se dá conta que ela mesma vai tirar férias pensando unicamente em trabalho, conectada no outro lado do mundo, indo a feiras de vestuário nas brechas do descanso. A questão central do filme vem ai: existe alguma possibilidade de liberdade dentro da sociedade capitalista? É óbvio que quem tem uma posição privilegiada consegue comprar tempo, enquanto os desfavorecidos vendem todo o tempo que tem para sobreviver. Mas todos os corpos estão desequilibrados na relação entre prazer e trabalho. Eu entendo quem acha o filme leve, divertido, mas eu particularmente sinto também um tom agridoce costurando muito
dos sentidos do filme, dessa relação entre ócio/catarse e trabalho.

Elias em sua vida de descobertas 


Na mesma linha fluída, a naturalidade com que os personagens levam suas opções confirma a intenção do projeto em não cair na armadilha de dramas bem comuns a diversos longas, quando o protagonista não está bem resolvido com sua opção sexual diante de uma sociedade que o cobra pelo contrário. Não há, por exemplo, aquela expectativa de descoberta, de encontro entre os dois, apesar de você colocar inicialmente essa possibilidade no interesse de Elias por Filipe, o que, para mim, demonstrou essa ideia de desconstrução positiva da expectativa. Acho que já está mais do que na hora destas características serem inseridas na ficção de forma mais fluída, sem a necessidade fazer daquilo um bicho de sete cabeças que tanto o espectador quanto as pessoas dentro da trama precisam se torturar para aceitar. Também seguiu esse direcionamento a sua escrita?

Elias tem uma orientação sexual e não uma opção sexual. E acho que essa confusão de termos na sua pergunta me leva a uma reflexão. Justamente por não ser uma opção, eu não preciso marcar a narrativa com um ponto de virada: "oi, eu sou gay", "olá, encontrei um homo-amor" a partir de um ou outro momento do filme. É uma orientação no sentido de um fluxo, do desejo, da pulsão do corpo com a trajetória de um rio, por isso essa idéia do desaguar no mar é tão presente no filme. Os personagens estão no mundo imenso, são atravessados por diversas questões raciais, sociais, trabalhistas e não apenas pela identidade sexual. Mas ser gay também é uma afirmação para Elias e Wellington, a partir do momento que eles não negociam sua sexualidade dentro do grupo predominantemente hetero dos trabalhadores. Mas, sim, no roteiro eu não quis confinar o Elias às clássicas histórias de coming-out e boy-meets-boy, como criticam os estudos queer estrangeiros. A idéia é sempre buscar um novo repertório de encontros e amores, jogar num campo mais estranho e menos premeditado.

Você trabalhou no casting de Aquarius, onde conheceu Kelner. Do mesmo modo, passou por experiências também como assistente de direção junto a Gabriel Mascaro, em Boi Neon, e colaborou como assistente de direção de Hilton Lacerda em Tatuagem, além de outros trabalhos no audiovisual. Com essa bagagem. migrar para a a direção, mesmo já tendo curtas metragens no currículo, foi um processo difícil?

O processo foi bastante tranquilo, justamente por toda a experiência de trabalhar com esses diretores. Não tenho formação acadêmica no cinema e no set ocorreu meu grande aprendizado de técnicas de direção. A última diretora para quem fiz assistência, a Anna Muylaert, me ensinou muito sobre como olhar para além das minúcias do roteiro e focar na estrutura narrativa como norte das filmagens. Poderia dizer uma coisa incrível que descobri com cada um deles, mas na essência prefiro dizer que aprendi exatamente a respeitar minhas obsessões e excentricidades, a seduzir a equipe e elenco para um ponto de vista, para uma necessidade da cena. É o que fica: a necessidade de fazer o filme!

Momento de união de todos os personagem em cena de difícil orquestração

Há no seu filme um momento bem bonito no modo como o posicionamento dos personagens e a entrada e saída de cada um em cena denota não somente uma união do elenco como, aos poucos, vai apresentando características pessoais de cada um deles. Refiro-me ao momento em que, tarde da noite, todos eles saem da confecção e caminham pela rua. Como foi a construção daquela cena? Tanto no papel, com todas as nuances dos que você queria exibir nas personalidades dos participantes dela, quanto na prática, ao se ver diante dos desafios que o ato de filmá-la trouxe.

Essa cena foi construída na sala de ensaio com participação ativa dos atores e como resultado de um longo processo de pesquisa. Com todos atores nós fizemos uma imersão no universo dos trabalhadores do Bom Retiro, com visitas à fábricas e conversas. Tendo esse repertório em mãos, nós começamos a desenhar quem seria quem dentro da fábrica. Quais as questões afetavam o presente de cada um deles e como cada trabalhador existiria enquanto uma individualidade. Com isto definido, começamos a desenhar os afetos dentro da fábrica, quem se gostava, quem não, quem nem se conhecia, quem tinha intimidade com outro. Fui propondo exercícios cênicos de improvisação e percebendo essas relações, definindo sub-grupos. Daí fomos para a rua caminhar juntos, montar essa coreografia in loco. Filmei os ensaios, editei e mandei para os atores tudo que achava rico das nossas descobertas no improviso. E, aí, criei uma espécie de roteiro coreográfico para repetirmos no dia da filmagem.

Lembro-me de ter visto um comentário seu acerca da influência do Maurice Pialat na criação não somente desse momento, mas na bela tomada em que vemos Elias caminhar por entre os guarda chuvas. Em quais outros aspectos você citaria essa influência?

O Pialat sempre me fascinou pela forma com que trabalha a potência do momento presente na encenação dos corpos. Há um grau de intuição e instintividade na forma como os atores agem, há pouca premeditação, parecem corpos sem consciência do passado ou do futuro, eles estão à mercê do presente apenas. Isso é desafiante, trabalhar para eliminar do ator suas expectativas, seus cálculos. Convidá-los para existir nas relações entre os corpos em cena, jogar uns com os outros. Essa para mim é a marca de filmes como A Nos Amours (A Nossos Amores, filme de 1983), que me influenciou muito enquanto técnica de direção.



Essa cena em questão é outro símbolo do que me referi no começo, acerca do modo como seu filme deixa para o espectador a responsabilidade dessa percepção. Elias caminha pela chuva, sem se preocupar em se molhar, tá ali em São Paulo, uma cidade que pode assustar quem chega para tentar dominá-la, principalmente alguém vindo do nordeste. E ele não faz planos. Apenas segue à deriva, algo que a gente vê impresso na hora em que ele é arguido por um supervisor na confecção acerca de onde se imagina em cinco anos.

Sim! E os métodos do Pialat e sua relação com o instante de existência dos corpos tem a ver com isso. Outra coisa que gosto do Pialat é a repetição, os homens que Suzanne deita, os tapas que ela leva quando volta para casa, as reincidências e as repetições. Filmei a cena da saída de Elias na multidão da José Paulino diversas vezes, com vários figurinos do personagem, justamente para ter esses elementos de repetição dentro do filme. Foi tudo no mesmo dia, variando pouco o ângulo... só que choveu no meio dessas duas horas de filmagem, o que fez surgir os guarda-chuvas.

Observando essas nuances de seu roteiro, seria muito óbvio e previsível achar que o nome do filme tem algo a ver somente com a energia dos seus personagens. E aí você confirma isso ao falar da influência de Walt Whitman nessa escolha. Em que mais os escritos do estadunidense contribuíram?

Whitman influenciou a decisão de trabalhar com um personagem prismático, capaz de se moldar nos encontros com os outros, dos diversos outros. É essa abertura para aceitar a diferença sem julgamento que fazem de Whitman o espírito democrático que nenhum sistema de governo será capaz de recriar. Ele propõe um ideal humano e a eletricidade é essa potência que muitas vezes está dormente, oprimida, aniquilada. Mas ela está ali, basta olhar com cuidado. Eu fiquei mal impressionado ao ler críticas que falam de falta de eletricidade no filme. Basta ler o Whitman e entender qual conceito de eletricidade estou trabalhando, é mais elástico. O olhar de Whitman não é agitado, nem dionisíaco, muito menos explosivo. Ele observa, deixa o outro se mover em seu tempo, penetrar no seu olhar, ficar um tempo e sumir. Tem muita beleza nisso, no olhar, e não diz respeito à velocidade, mas, sim, à idéia de potência de liberdade. De respirar junto dos outros corpos.

Você trabalhou com Márcia Pantera e Linn da Quebrada. Foi difícil em termos de direção colocá-las para atuar ou o processo de ensaios fluiu bem?


Olha, são duas gerações queers. Com muitas diferenças, muitas. Mas não foi difícil, pois são duas das artistas mais generosas com quem trabalhei. Linn é muito intelectualizada, inteligentíssima, seu corpo é político, como diz o filme da Alice Riff. Márcia é um ser da noite, de um trabalho de uma fisicalidade ímpar, do bate-cabelo. E a geração desconstruída dos jovens de hoje estranha muito os shows de drag da geração da Márcia, parecem apolíticos, anacrônicos, especialmente os shows de humor. Por isso mesmo elas se viam, não se entendiam, mas estavam abertas para conhecer a fundo o universo da outra. Eu soube me valer disso para as cenas e há sempre um ruído entre as personagens delas. Ah! É importante lembrar que a Linn está interpretando a personagem Simplesmente Pantera e na época que filmamos não existia a Linn da Quebrada!

Eu volto a abordar essa naturalidade com que seu filme insere a sexualidade de seus personagens, só que, dessa vez, em um contexto novo. Esse mês, a imbecilidade da direita brasileira levou um juiz a liberar liminar de um grupo de psicólogos que solicitava a permissão para manter terapias de "reversão sexual". Isso me faz pensar com certo medo no que os próximos anos podem trazer, se esse retrocesso continuar a avançar no Brasil. Não somente esse fato recente, mas diversos outros que ferem a liberdade, tornam urgente a existência de um cinema que aborde temas LGBT com ainda mais continuidade. Como parte da geração atual de cineastas, como você encara a função do cinema na missão contra essa leva de ignorantes e oportunistas políticos?

Olha, desde que eu nasci assim e cresci assim tive que aprender a lidar com o conservadorismo. Ele é mutante, vai se transformando no tempo, mas voilá... permanece obsessivamente homofóbico. Minha função é criar um repertório para um lugar novo, novas imagens, universos em que eles não possam pautar minha criação. É uma luta, pois a imbecilidade deles o tempo todo me destrói! Mas é preciso reerguer e seguir. Avante!

Nenhum comentário:

Postar um comentário