quinta-feira, 26 de março de 2020

Entrevista: Paulo Sérgio Almeida, diretor do Portal Filme B


“Para a indústria do cinema,
o que está acontecendo é uma devastação.”

Paulo Sérgio Almeida, diretor do Filme B
Nada é mais importante do que a preservação das vidas humanas nessa pandemia do coronavírus. As medidas de não aglomeração de pessoas diante da proliferação do COVID-19 fizeram muitos filmes cuja demanda de público lotariam salas de cinemas em situações normais serem adiados para o final do ano, diminuído, assim, um imenso e já certo prejuízo financeiro. São obras como Um Lugar Silencioso Parte II, continuação do esmero de 2018 dirigido por John Krasinski; o novo filme da Marvel Studios, Viúva Negra, além dos novos 007 e o mais novo longa da lucrativa franquia Velozes e Furiosos.


Sobre o assunto, o A Tarde conversou com Paulo Sergio Almeida, fundador da Filme B, empresa brasileira especializada em análise e números do mercado cinematográfico no Brasil. Mais completo site no acesso a informações relacionadas ao aspecto de negócios oriundos da produção de cinema e distribuição de filmes em território nacional, o Filme B é peça fundamental na pesquisa para quem se interessa ou tem o cinema como meio de subsistência direta ou indireta. Confira a entrevista.

Por João Paulo Barreto

Com o adiamento e suspensão dos lançamentos, como você prevê os próximos meses no mercado das salas de cinema no Brasil?
Em 2020, você pode contabilizar um janeiro e fevereiro muito bons. Março com sinais de crise. Havia algumas salas abertas no começo do mês, mas, a partir de agora aí, temos zero de cinemas funcionando no Brasil. Abril, maio, junho e julho, zero de salas. Nós nunca vivemos uma situação como essa. É o colapso! O cinema, como o resto da economia, vai entrar em colapso. A previsão é de no mínimo três meses sem possibilidade de reabertura de salas. 
A mesma previsão vale para outros países. China, Itália, França, Inglaterra, Coréia do Sul, Japão, Espanha, Portugal e EUA. Todas as salas fechadas. Quer mais do que isso? É uma devastação. Para a indústria do cinema, o que está acontecendo é uma devastação. Quando acabar a crise, a gente vai ver quem sobrou.

Com os adiamentos das estreias internacionais, como o streaming entra nisso?  
O cinema hoje está globalizado. Eu não posso lançar um filme no Brasil ou em qualquer outro lugar de maneira separada. Ou o filme vai para o mundo todo ou não vai. Isso em relação ao filme estrangeiro. Todos os lançamentos de blockbusters estão sendo adiados, um depois do outro. Acabou de ser adiado o Minions, grande blockbuster infantil para as férias de julho. Já foi adiado 007, Trolls e o novo Velozes e Furiosos. Não é caso destes citados, mas há uma série de filmes que deverão ser lançados diretamente no streaming. Essa é a grande revolução. Os filmes estão, na sua maioria, prontos. Exceto Minions 2, que foi cancelado e o Ilumination, o estúdio de animação sediado em Paris, foi fechado. Mas todos os outros estão prontos e com a campanha na rua. Os investimentos estão feitos, e não podem parar de repente para ser lançados apenas no ano que vem. Aí você tem que investir de novo no marketing, fazer tudo de novo, para recuperar as campanhas. O que está acontecendo é que os filmes estão indo direto para streaming. Vai ser um ano perdido para o cinema. Praticamente perdido. Se voltar à atividade no Brasil, deverá voltar por volta de agosto, setembro. Mas aí com títulos debilitados, com a frequência ao cinema debilitada. Não podemos esperar grande coisa. 

Um Lugar Silencioso - Parte II é dum dos filmes adiados

E para o cinema nacional?
Em relação ao cinema nacional, o panorama é mais dramático. Porque toda a operação de cinema nacional no Brasil, a Ancine, Secretaria Especial de Cultura, está tudo paralisado desde que o governo Bolsonaro entrou.  Todos os lançamentos já vinham sendo adiados por falta não de recurso da Ancine, pois eles existem, mas por falta de uma diretoria, por falta de comando e de gestão. São atos que esse governo vem fazendo com a cultura propositadamente. O que os filmes nacionais estão tentando fazer, também, é ir direto para o streaming. Mas a Ancine proíbe esse lançamento direto nas plataformas. Em relação ao filme americano, não tem lei que proíba. É um acordo entre o exibidor e o distribuidor de se manter uma janela. Mas em um momento como esse, de força maior, os exibidores estão compreendendo que eles não podem fazer nada, já que as salas estão fechadas e o distribuidor não pode ficar com o filme parado sem faturamento. Ele tem que pagar seus empregados. Tem que fazer a máquina girar. Aqui no Brasil, os principais filmes são financiados com dinheiro do fundo setorial, via Ancine, via BNDES, e tem uma regulação que obriga os filmes a estrearem antes nos cinemas e depois no streaming. Os produtores estão tentando, junto à agência, que essa proibição seja cancelada. Pelo menos momentaneamente, para que os filmes possam entrar direto no streaming, também. Porque, senão, vão ficar dois anos parados. 

Filmes de alto orçamento como 007, Um Lugar Silencioso Parte 2 e Velozes e Furiosos, apesar de já adiados, podem ser lançados no streaming?
Não. Hoje, os filmes de orçamento muito alto precisam da bilheteria do cinema. Mesmo a Disney, que já tem o seu próprio canal. Ela até poderia lançar os filmes no seu próprio streaming, mas não teria um bom retorno. Só poderia ser feito com filmes médios e pequenos. Filmes de grandes orçamentos, não. Isso poderia até quebrar a MGM, que é a detentora dos direitos dos filmes da franquia 007. Não pode abrir mão da bilheteria. Principalmente da China. Hoje, o mercado dos grandes filmes é guiado pela China. Então, esses filmes não podem ir para o streaming diretamente. Um Lugar Silencioso Parte II não vai direto para o streaming nunca. O retorno é muito baixo. Minions 2 seria um desperdício lançar direto no streaming. O que está sendo lançado no streaming são filmes como Bloodshot, da Sony, que teve a bilheteria interrompida e tem que ser lançado no streaming, ou Trolls, que é um desenho da Universal que já está com a sua campanha no ar e tem uma bilheteria média. Agora, é importante ressaltar o seguinte: não é só ver isso na área da produção dos filmes, a gente tem que ver isso na área do mercado. Poucos exibidores vão resistir a ficar quatro meses fechados. Só os grandes. E, assim mesmo, com medidas drásticas de demissão de funcionários, de corte de custos violentos. Enfim, vai ser uma loucura. Realmente, a indústria nunca mais será a mesma. 

Nova aventura do 007, principal investimento da MGM, pode dar prejuízo

Podemos prever como será a relação entre shoppings e salas de cinema quanto a taxas de aluguel?
Isso vai ser uma longa negociação. Depende, primeiro, de determinações oficiais. Se o governo do estado determinou que os shoppings e cinemas têm que fechar,  ou que existe um estado de calamidade pública, isso abre um espaço enorme para os exibidores negociarem com os shoppings. De pagar o mínimo, que eles chamam de mínimo garantido. Fora isso, tem a negociação com os empregados. O governo autorizou a você fazer o pagamento de férias de um mês. Após isso, ou a pessoa trabalha em casa com 50% de redução de salário, ou partem para demissão voluntária. A exibição no Brasil é muito diferenciada. Existem desde de empresas internacionais, multinacionais, como Cinemark e UCI, como empresas nacionais familiares, como a Orient, aí em Salvador. Todos os outros, tirando a Cinemark, a Cinepólis e a UCI, são empresas nacionais familiares que não têm acesso a crédito como as multinacionais têm. Cada uma precisará de uma solução. Já lá fora, a situação é preocupante no seguinte sentido: os estúdios de hoje estão ligados a conglomerados de mídia. Estúdios como Universal Pictures  e a Paramount, por exemplo, estão alavancados em Wall Street. E a bolsa de valores está virando pó. Eles estão pedindo ajuda ao Trump. E eu tenho certeza que Trump vai dar. Tanto os exibidores como os estúdios vão ter um apoio. Para eles, o cinema é uma questão de Estado. Enquanto aqui no Brasil, o Estado é contra o cinema.

*Entrevista originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 26/03/2020



quarta-feira, 18 de março de 2020

CORONAVÍRUS - Fechamento dos Cinemas

Cultura e Salas Fechadas 


Com o necessário fechamento dos cinemas como forma de impedir aglomerações e a proliferação do coronavírus, a economia do setor do audiovisual sofre mais um baque 

Por João Paulo Barreto

O trágico impacto da pandemia do coronavírus, também conhecido como COVID-19, começou a ser sentido no Brasil no final de fevereiro. Após surgir na China, local onde o número de mortos já passa de 3500 e ter, fora do oriente, seu maior número de contágios e de vitimas fatais (o número de mortos já passa de 2000) na Itália, país com a população majoritariamente idosa, a doença atravessou o oceano Atlântico e já possui milhares de casos confirmados nas Américas. A primeira morte no Brasil foi confirmada na terça-feira, dia 17, em São Paulo, cidade com maior número de infectados no Brasil (mais de 150) e local onde vivia o homem de 62 anos que estava internado em um hospital particular.

Com mais de 230 casos confirmados em território nacional, as orientações para que aglomerações de pessoas sejam evitadas e os cuidados básicos com higiene (lavar as mãos com frequência, evitar o toque no rosto, usar álcool em gel para esterilização) se tornaram prioritárias. Isso, claro, mesmo que o homem com o maior cargo político do Brasil e símbolo de maior incompetência, com uma missão de desmonte da cultura e da pesquisa científica, queira minimizar a situação e incentive seu gado, digo, seguidores a ir às ruas em manifestações públicas de apoio ao seu desgoverno. 

“Com a chegada do coronavírus ao Brasil, começamos a sentir os efeitos na bilheteria e já sabíamos que, mesmo se o governo não tomasse alguma providencia, teríamos, realmente, que fechar as salas."
Suzana Argollo 


CINEMAS DE SALVADOR

No quesito relacionado ao evitar aglomerações de pessoas, as salas de cinemas de Salvador também já começam a sentir o impacto da suspensão das atividades e da ausência de programação. Fechadas desde a ontem por um período de 15 dias, através de um necessário decreto do prefeito da cidade, e por 30 dias a partir do decreto do governo da Bahia, pela primeira vez na história não haverá estreias de filmes nas telonas da cidade. O negativo impacto econômico para os estabelecimentos é palpável. Cláudio Marques, sócio proprietário e gestor do Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha, na Praça Castro Alves, lembra que, em outros locais do mundo, como França, o governo local propôs subsídios como isenções de contas de energia, água e gás para toda a população. “Na Alemanha, o governo local vai subsidiar os cinemas de rua. É um momento dessa economia da maneira com ela vinha sendo tocada em muitos países, ser revista. Esse chamado neoliberalismo, todo poder ao mercado, é o momento em que talvez ele seja revisto. E talvez isso seja alguma coisa positiva, vinda dessa crise. Mas, eu, sinceramente, não sei ainda o que vai acontecer. Estamos em um momento de recessão e, mais grave, de depressão econômica. Vamos ter que esperar um pouco para saber como vamos ressurgir depois de duas, três semanas de quarentena”, afirma Cláudio.

No Circuito Saladearte, que possui cinco salas em Salvador, sendo três delas cinemas de rua, a sócia proprietária, gestora e programadora, Suzana Argollo, salientou uma queda de público de quase 70% no último final semana em comparação ao da semana anterior. “Já esperávamos, mesmo sem a pandemia, uma queda de público em março, uma vez que os filmes do Oscar tiveram seu maior público nos meses anteriores”, explica Suzana. “Com a chegada do coronavírus ao Brasil, começamos a sentir os efeitos na bilheteria e já sabíamos que, mesmo se o governo não tomasse alguma providencia, teríamos, realmente, que fechar as salas. Primeiro por um compromisso social e coletivo. Para que isso não atingisse os mesmo níveis que acontecem na Itália. Segundo porque nosso público é, em sua maioria, formado por idosos”, complementa a gestora. 

“Precisamos pensar em como manter as atividades culturais, como manter os pequenos dentro do comércio, da atividade econômica de uma maneira geral."
Cláudio Marques

FECHAMENTO TEMPORÁRIO

Tanto Suzana Argollo quanto Cláudio Marques pontuam que, diferente da rede Cinemark, que propôs um plano de demissão voluntária, o quadro de seus funcionários é uma prioridade. “A questão dos funcionários é uma preocupação nossa. De que, em um primeiro momento, não existam demissões. É uma situação difícil para todo mundo. Como manter sem ter receita? Lembrando que as duas últimas semanas já foram de diminuição radical da receita e do público aqui nas salas de cinema. Mas é um momento de ter calma para tentar pensar da melhor maneira possível”, pontua Cláudio.

No Circuito Saladearte, Suzana esclarece que a empresa está trabalhando no sentido de minimizar o impacto. “As salas terão que ficar fechadas por 30 dias, segundo decreto do governo do estado”, explica Suzana. “O que a gente pode fazer agora? Dar férias coletivas para os funcionários? Sabemos que vamos tirar os direitos dos funcionários de gozar livremente essas férias, porque, com a quarentena, ele está cerceado até mesmo no direito dele de ir e vir. Mas se nós não fizermos isso, não sabemos se depois a gente sobrevive. Queremos minimizar impactos, reduzir os danos na empresa, mas também não querermos fazer suspensão de contratos de trabalho de ninguém. Não queremos que coisas desse tipo aconteçam, como reduzir salários. Queremos fazer o máximo que puder para minimizar os riscos e os danos sem prejudicar os funcionários. Queremos ter a garantia de que eles terão emprego quando isso tudo acabar”, finaliza.

Sobre os exemplos oriundos de outros locais no aspecto de subsidio governamental voltado para a Cultura, Cláudio Marques é incisivo: “Precisamos pensar em como manter as atividades culturais, como manter os pequenos dentro do comércio, da atividade econômica de uma maneira geral. Caso contrário, vamos ter uma economia totalmente dominada pelos de fora. A estética de fora, o olhar de fora, o dinheiro de fora. E o dinheiro que vai pra fora. Isso em todos os setores”.

CINEMARK E UCI

Seguindo por uma via diferente, a rede Cinemark anunciou um plano de demissão voluntária de seus funcionários ou a opção de um programa de qualificação, no qual o empregado ficaria sem trabalhar, mas teria que realizar cursos on line, e o pagamento do salário ficaria na faixa de até 80%. Tanto a Cinemark quanto a rede UCI, em contato com A Tarde, divulgaram a carta aberta da Feneec (Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas), na qual é feito um pedido aos gestores públicos para que os importantes decretos de fechamento das salas sejam feitos de forma emergencial, por conta da pandemia do coronavírus.

Sobre o imbróglio envolvendo a possível demissão de seu quadro de funcionários sem pagamento de multa rescisória, a Cinemark divulgou a seguinte nota: "Em cumprimento às determinações de fechamento das salas pelas autoridades estaduais e municipais, a Rede Cinemark suspendeu o funcionamento dos cinemas. Diante disso, a Rede iniciou diálogo com seus colaboradores em parceria com o sindicato dos funcionários para encontrar de forma conjunta as melhores alternativas para a administração da crise sanitária e econômica.”

*Matéria originalmente publicada no Jornal A Tarde, dua 19/03/2020


sábado, 14 de março de 2020

Better Call Saul


“Doutor” em Pilantragem



Tendo o respeito pela inteligência do público como prioridade de seu roteiro, Better Call Saul chega à quinta temporada na Netflix fazendo jus à sua genial origem: o marco Breaking Bad

Por João Paulo Barreto

Breaking Bad, pilar da TV no século XXI e série definitiva em termos de construção de roteiro no que tange aos arcos dramáticos de seus protagonistas, trazia Walter White, personagem magistralmente interpretado por Bryan Cranston, em uma perfeita curva dramática de 180 graus a representar todas as violentas mudanças que a sua vida teve em dois anos de trajetória errática.  Refletindo de modo exato o “ficando mau” do seu título original na figura de Walter a se transformar gradativamente no “cozinheiro” de metanfetamina e assassino Heisenberg e, claro, tendo que lidar com as brutais consequências de seus atos, BrBa trazia um brilhantismo na escrita de seu criador, o roteirista e diretor Vince Gilligan. Nesta escrita, era perceptível um respeito pela sua audiência fiel, colocando de maneira crível as situações daquele mundo do crime em paridade às frustrações profissionais de um inteligentíssimo, mas fracassado, White, que se vê, aos 50 anos, com uma esposa grávida, um filho com paralisia cerebral e com a data de sua morte agendada por um câncer devastador.Torcíamos por aquele homem que, devagar, vai ganhando nosso asco e rejeição por seus atos. Assistindo Breaking Bad, o público sentia a segurança de estar diante de um seriado dramático que privilegiava tanto a humanidade de suas figuras centrais (o Jesse Pinkman de Aaron Paul e sua devastação psicológica, por exemplo), quanto a noção de realidade que os profundos temas da série traziam consigo.

Dentro desse variado grupo de personagens inesquecíveis estava Saul Goodman, o competente advogado com um, digamos, flexível código moral. Vivido pelo notório comediante do programa de auditório Saturday Night Live, Bob Odenkirk, Goodman, a partir de sua aparição original na segunda temporada de Breaking Bad, passou a roubar (sem trocadilhos) todas as cenas nas quais participava. Sua sagacidade como advogado só se equiparava com o poder que ele tinha em observar as brechas legais do Direito e como isso o ajudaria a lidar com seus clientes traficantes, assaltantes, espancadores e trambiqueiros em geral, para usar apenas quatro adjetivos. Todos eles culpados, friso. Odenkirk, na pele do asqueroso Goodman, tinha uma personalidade magnética, que levava os olhos dos fãs de Breaking Bad diretamente a ele. Ao acabar a série, no distante setembro de 2013, mais do que um encerramento do perfeito arco dramático de Walter White e da curiosidade pelo que aconteceu a um liberto Jesse (algo que só descobrimos ano passado, no não menos brilhante El Camino), ansiávamos por saber mais da trajetória de Saul Goodman (ou it´s all good, man!, em sua referência à malandragem inerente ao dono daquele pseudônimo).

Jimmy em seu momento de virada para Saul

PARCIMÔNIA E SAGACIDADE

Corta para fevereiro de 2015, e o primeiro episódio de Better Call Saul vai ao ar pela Netflix. Nele, não é o repugnante Saul Goodman que aparece, mas, sim, um adorável Jimmy McGill, o carismático e boa praça advogado que se esforça para ganhar (pouco) dinheiro como defensor público em causas onde os réus são pessoas sem condições financeiras para arcar com os custos processuais gerados pelos seus crimes. Passando-se cinco anos antes dos eventos iniciados em Breaking Bad, Better Call Saul trabalha o desenvolvimento e mutação de seu protagonista de modo parcimonioso. E esse é o ponto mais notável no crescer dessa, digamos, gênese de vários elementos que vimos na outra série criada por Vince Gilligan, que, aqui, tem como co-criador o roteirista e diretor Peter Gould. Não há pressa em criar rimas temáticas forçadas entre as duas séries visando qualquer catarse dos fãs. Um dos méritos é uma independência temática e de ritmo entre os programas. Claro que, logo de cara, estão dois queridos e conhecidos personagens: o próprio Goodman (ou Jimmy) e o competente “consultor de segurança” da rede de restaurantes Los Pollos Hermanos, Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks). Mas Gilligan e Gould, juntamente a um azeitado grupo de roteiristas (muitos deles oriundos de Breaking Bad), sabem de modo preciso como construir aquelas pontes entre os seriados.

Vivendo à sombra do peso do nome McGill, que tem na figura do seu irmão mais velho, o renomado e bem sucedido advogado Charles “Chuck” McGill (Michael McKean, o eterno David St. Hubbins, de This is Spinal Tap), a imponência e o respeito social advindo da nata da profissão do Direito, Jimmy é apresentado pela série que leva seu futuro bordão como nome, em uma rotina de trabalhos estafantes e de cuidados pelo irmão doente e semi-aposentado. No carisma e personalidade magnética do homem, além do seu histórico de trambiques e problemas com a lei, um disfarçado atrito com o irmão idoso, que suporta Jimmy por precisar dele, mas não nutre a mínima confiança no caçula. Nessa construção de amor e desprezo, a necessidade da presença de Jimmy em sua vida gera a Chuck uma amarga sensação de manter por perto alguém que precisa estar em constante vigilância devido ao seu histórico de desonestidade. Tendo, hoje, um diploma de advogado, as tendências perigosas de seu irmão mais novo se multiplicam. E essa relação é um dos pontos para entendermos como Jimmy caminhou para se tornar Saul, alguém cuja necessidade de andar na linha já ficou para trás há tempos.

Velhos rostos: Mike e Tio Salamanca

DRAMA PROFUNDO

Nas citadas pontes entre as duas séries, vemos ressurgir pouco a pouco personagens marcantes como Hector “Tio” Salamanca e Gustavo Fring, figuras cujas origens já conhecemos, mas que têm, aqui, seus desenvolvimentos a pavimentar suas personalidades insanas, assassinas e calculistas. Mas é na figura de Mike, o articulador de olhos mortos, mas um adorável vovô preocupado com o futuro da neta, o outro lado de uma balança dramática precisa. Tendo seu passado violento e traumático como o ex-policial que perdeu um filho para colegas corruptos na força, destrinchado de maneira densa pela série, o Mike Ehrmantraut de Better Call Saul dá a Jonathan Banks uma oportunidade de (des)construir aquela figura anti-heróica que aprendemos a amar em Breaking Bad. Em tal desconstrução, a dor do pai que perdeu o filho, mas soube vingá-lo de maneira catártica, é o que é salientado de maneira pontual na melhor origem que a série trouxe logo em sua temporada inicial.

Caminhando para o seu sexto e derradeiro ano em 2021, Better Call Saul se consolida, junto ao recente El Camino, como o terceiro pilar desse universo ficcional indefectível criado por Vince Gillingan há 13 anos. A inteligência do seu público cativo agradece.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 15/03/2020


sábado, 7 de março de 2020

Dois Irmãos



Magia Fraternal



Novo filme da Pixar, Dois Irmãos, ou apenas Seguindo em Frente, em seu motriz título original, traz análise do luto e a superação da perda paterna como sua maior força

Por João Paulo Barreto

Há um aspecto pessoal na labuta da escrita crítica cinematográfica que eu, desde meus primeiros e, convenhamos, constrangedores textos (todos têm um começo, oras...), deixo que se expanda livremente através das palavras colocadas na tela do computador: o modo idiossincrático como um filme me toca. Hoje em dia, porém, nem tanto. As reservas particulares e a antissocial característica de um pessimismo e amargor oriundos da idade chegaram. Mas, no geral, para mim, nestes doze anos de trabalho dentro de uma tentativa de se expressar analiticamente nos aspectos oferecidos por filmes, a ideia de que o modo como uma película lhe toca pessoal, afetiva ou ideologicamente pode, sim, servir como um norte na escrita e na construção de uma análise para o leitor. Isso, claro, unindo tais impressões afetivas a um destrinchar dos aspectos técnicos da obra em questão.

Dois Irmãos, novo filme dos Estúdios Pixar, me remeteu àquele período inicial dentro dessa tentativa de labuta na área da crítica de cinema. Na ocasião, havia perdido meu pai, vitima de um câncer fulminante que lhe tirou a dignidade e a vida no decorrer de extenuantes 14 meses. Vê-lo deixar de ser ele mesmo (frase citada em momento pungente de Dois Irmãos, friso) foi uma das coisas que mais me tornaram introspectivo naqueles meses, há dez anos. Tais sentimentos se expressaram em textos que eu fiz, por exemplo, acerca de Transeunte, obra de Eryk Rocha, e Hugo, de Martin Scorsese. E essa lembrança do modo como o velho Barreto se extinguiu gradativamente surgiu como uma pancada durante a sessão de Onward (em tradução literal, “superando e seguindo em frente”), animação na qual a Pixar, mais uma vez, estilhaça sentimentos e renova corações. Cafona, admito, mas a pura verdade.

Ian em sua introspecção e saudade do pai

HUMOR EMOCIONAL

Aqui, os dois irmãos do título nacional são Ian e Barley Lightfoot, elfos adolescentes em um mundo onde a magia de seres como centuriões, dragões, fadas e unicórnios se extinguiu diante da tecnologia que os tornou obsoletos, e do capitalismo que os tornou opacos em seu brilho. E tudo é apresentado dentro de elipses temporais em um resumo cômico e prático típico do Monty Python. Ian e Barley (dublados por Tom Holland e Chris Pratt), após descobrirem que, utilizando um cajado mágico, podem trazer o falecido pai de volta à vida durante o período de 24h, acabam alcançando tal intento pela metade, ficando com apenas as pernas e cintura do patriarca. As gags visuais na presença dos membros inferiores do pai cumprem a boa parte da “comédia física” do filme, mas é nos detalhes pequenos a representar aquela figura e sua relação nostálgica com os dois garotos que dão mais significado à animação da Pixar.

Nas fotos do pai, Wilden Lightfoot, estão presentes as roupas que rimam precisamente com as que o pequeno Ian tenta emular em um vestígio de lembranças daquele homem que não conheceu. São peças que também aparecem como uma marca do que se vê naquele atrapalhado par de pernas, com suas meias características e seus sapatos a refletir a lembrança que os dois garotos têm do seu velho. A fita K-7, na qual o único registro da voz extrovertida do homem a sorrir serve como consolo momentâneo, se torna um porto seguro para a insegurança do caçula que só ouviu falar daquela figura. Quem nunca se pegou pensando em ou tocando algum objeto pessoal que pertenceu a um ente querido? A Pixar insere isso de modo pungente.

Ian, Barley e seu meio pai em momento de diversão

PESSOAL E CRIATIVO

Independente de todas as suas sequências de risos causadas pelas brincadeiras que o roteiro co-escrito pelo diretor Dan Scanlon (que já havia feito o ótimo Universidade Monstro) cria nas disparidades entre o nosso mundo real, físico e capitalista, e seu encontro com o mágico universo em decadência que o filme traz, Dois Irmãos tem seu pilar exatamente nas reminiscências que a perda de alguém tão querido quanto um bom pai traz ao amadurecimento. Seja no constante esconder de suas dores e frustrações atrás de um senso de humor e carisma gritantes, como aquele que o mais velho Barley tem, ou na introspecção e timidez que o caçula Ian mantém como um escudo

“O que é mais pessoal é sempre o mais criativo”. Essa frase de Scorsese foi citada por Bong Joon-Ho no seu discurso de agradecimento pelo prêmio de Melhor Diretor na cerimônia do Oscar desse ano, momento no qual saudou o mestre quase octogenário. Saber que o diretor Dan Scanlon trouxe para sua escrita exatamente essa falta pessoal que a perda precoce de seu próprio pai lhe causou, torna essa máxima do velho Scorsese tão precisa e emocional quanto Dois Irmãos o é em seu dilacerante (sem exageros) resultado final.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/03/2020