sábado, 7 de março de 2020

Dois Irmãos



Magia Fraternal



Novo filme da Pixar, Dois Irmãos, ou apenas Seguindo em Frente, em seu motriz título original, traz análise do luto e a superação da perda paterna como sua maior força

Por João Paulo Barreto

Há um aspecto pessoal na labuta da escrita crítica cinematográfica que eu, desde meus primeiros e, convenhamos, constrangedores textos (todos têm um começo, oras...), deixo que se expanda livremente através das palavras colocadas na tela do computador: o modo idiossincrático como um filme me toca. Hoje em dia, porém, nem tanto. As reservas particulares e a antissocial característica de um pessimismo e amargor oriundos da idade chegaram. Mas, no geral, para mim, nestes doze anos de trabalho dentro de uma tentativa de se expressar analiticamente nos aspectos oferecidos por filmes, a ideia de que o modo como uma película lhe toca pessoal, afetiva ou ideologicamente pode, sim, servir como um norte na escrita e na construção de uma análise para o leitor. Isso, claro, unindo tais impressões afetivas a um destrinchar dos aspectos técnicos da obra em questão.

Dois Irmãos, novo filme dos Estúdios Pixar, me remeteu àquele período inicial dentro dessa tentativa de labuta na área da crítica de cinema. Na ocasião, havia perdido meu pai, vitima de um câncer fulminante que lhe tirou a dignidade e a vida no decorrer de extenuantes 14 meses. Vê-lo deixar de ser ele mesmo (frase citada em momento pungente de Dois Irmãos, friso) foi uma das coisas que mais me tornaram introspectivo naqueles meses, há dez anos. Tais sentimentos se expressaram em textos que eu fiz, por exemplo, acerca de Transeunte, obra de Eryk Rocha, e Hugo, de Martin Scorsese. E essa lembrança do modo como o velho Barreto se extinguiu gradativamente surgiu como uma pancada durante a sessão de Onward (em tradução literal, “superando e seguindo em frente”), animação na qual a Pixar, mais uma vez, estilhaça sentimentos e renova corações. Cafona, admito, mas a pura verdade.

Ian em sua introspecção e saudade do pai

HUMOR EMOCIONAL

Aqui, os dois irmãos do título nacional são Ian e Barley Lightfoot, elfos adolescentes em um mundo onde a magia de seres como centuriões, dragões, fadas e unicórnios se extinguiu diante da tecnologia que os tornou obsoletos, e do capitalismo que os tornou opacos em seu brilho. E tudo é apresentado dentro de elipses temporais em um resumo cômico e prático típico do Monty Python. Ian e Barley (dublados por Tom Holland e Chris Pratt), após descobrirem que, utilizando um cajado mágico, podem trazer o falecido pai de volta à vida durante o período de 24h, acabam alcançando tal intento pela metade, ficando com apenas as pernas e cintura do patriarca. As gags visuais na presença dos membros inferiores do pai cumprem a boa parte da “comédia física” do filme, mas é nos detalhes pequenos a representar aquela figura e sua relação nostálgica com os dois garotos que dão mais significado à animação da Pixar.

Nas fotos do pai, Wilden Lightfoot, estão presentes as roupas que rimam precisamente com as que o pequeno Ian tenta emular em um vestígio de lembranças daquele homem que não conheceu. São peças que também aparecem como uma marca do que se vê naquele atrapalhado par de pernas, com suas meias características e seus sapatos a refletir a lembrança que os dois garotos têm do seu velho. A fita K-7, na qual o único registro da voz extrovertida do homem a sorrir serve como consolo momentâneo, se torna um porto seguro para a insegurança do caçula que só ouviu falar daquela figura. Quem nunca se pegou pensando em ou tocando algum objeto pessoal que pertenceu a um ente querido? A Pixar insere isso de modo pungente.

Ian, Barley e seu meio pai em momento de diversão

PESSOAL E CRIATIVO

Independente de todas as suas sequências de risos causadas pelas brincadeiras que o roteiro co-escrito pelo diretor Dan Scanlon (que já havia feito o ótimo Universidade Monstro) cria nas disparidades entre o nosso mundo real, físico e capitalista, e seu encontro com o mágico universo em decadência que o filme traz, Dois Irmãos tem seu pilar exatamente nas reminiscências que a perda de alguém tão querido quanto um bom pai traz ao amadurecimento. Seja no constante esconder de suas dores e frustrações atrás de um senso de humor e carisma gritantes, como aquele que o mais velho Barley tem, ou na introspecção e timidez que o caçula Ian mantém como um escudo

“O que é mais pessoal é sempre o mais criativo”. Essa frase de Scorsese foi citada por Bong Joon-Ho no seu discurso de agradecimento pelo prêmio de Melhor Diretor na cerimônia do Oscar desse ano, momento no qual saudou o mestre quase octogenário. Saber que o diretor Dan Scanlon trouxe para sua escrita exatamente essa falta pessoal que a perda precoce de seu próprio pai lhe causou, torna essa máxima do velho Scorsese tão precisa e emocional quanto Dois Irmãos o é em seu dilacerante (sem exageros) resultado final.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/03/2020


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