sábado, 30 de janeiro de 2021

Inabitável

Inabitável País

CINEMA Selecionado para o prestigiado Festival de Sundance, Inabitável, curta protagonizado por Luciana Souza  e dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, denuncia um Brasil do qual buscamos escapar

Por João Paulo Barreto

"A gente está atrasada". A última frase proferida em Inabitável, curta metragem escrito e dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, denota não somente um desfecho de saída, de fuga para sua protagonista em um escape que flerta com a ficção científica, mas uma constatação. Nós estamos atrasados. Atrasados como Estado, como nação, como país. Atrasados como um lugar que não é ciente do poder das escolhas democráticas. Um lugar que não é ciente das consequências dessas escolhas. Único curta metragem brasileiro selecionado para a edição 2021 do prestigiado Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, que segue em plataforma on line até a próxima quarta-feira, o trabalho assinado por Matheus e Enock é um angustiante retrato de Brasil. Na história de Marilene, mãe em busca da filha desaparecida, Roberta, uma mulher trans que não volta para casa no dia seguinte após uma festa com amigos, a sensação e comprovação de insegurança de um lugar no qual as vidas LGBT, vidas negras, vidas indígenas, seguem ceifadas com um aval do Estado, compõe o desespero físico que é construído com um calejar que transparece na expressão de sua protagonista.

Marilene (Luciana Souza): dureza no olhar na busca por filha

A experiente atriz dos palcos baianos, oriunda da Companhia de Teatro Popular e vasta trajetória no Bando de Teatro Olodum, Luciana Souza, dá vida a Marilene, protagonista que tem em sua composição a aspereza que a vida e a falta de surpresas diante de um cotidiano tão brutal lhe servem como uma carapaça de proteção. "É uma temática dura. Eu penso que as pessoas que vivem essa realidade, elas se tornam também duras. Pode ter outras formas de se representar isso. Com certeza, tem. Mas o tema vem a apresentar muitas dessas pessoas calejadas com a doença da vida", explica Luciana acerca de sua composição para a dureza no semblante de Marilene diante daquela busca angustiante e sem respostas por sua filha. "Aquela é uma mãe que, de fato, não cede ao desespero e ao choro, porque ela já temia muito aquilo. É algo que estava no roteiro e que a Luciana soube trazer para as imagens, para as cenas do filme, de uma forma muito fiel. Também foi um trabalho de pensar em como ela não cederia a esse medo, a esse choro, a esse desespero. E, ao mesmo tempo, ela se manteria de certa forma com esperança de que a filha pudesse reaparecer", pontua Enock Carvalho, co-diretor.

Marilene, junto a Gilka e Juliana, encontra artefato: respostas

REFLEXÃO URGENTE

Trata-se de um filme com uma mensagem direta sobre esse país que se tornou inabitável para muitas pessoas. Um Brasil no qual, abertamente, um então candidato a chefe do Executivo fala que "as minorias têm que se curvar às maiorias. Ou as minorias se adéquam ou simplesmente desapareçam". E consegue se eleger com esse discurso. Inabitável é uma obra que nos mostra essa fuga urgente de um país que parece ter perdido sua humanidade.  "É uma sociedade adoecida por não conseguir ver o próximo, não conseguir olhar para o lado. Não conseguir ter empatia e compaixão e, de fato, eu acho que é uma falha social. Isso é uma falha do ser coletivo, mas que não aprendeu  a ser coletivo. Eu acho que quando as pessoas elegem políticos que são nocivos, que são ameaças, elas não têm, de fato, essa noção. Algumas têm, mas a maioria delas não tem noção do que eles podem ser capazes. E eles podem matar permitindo que pessoas morram. Eles podem matar deixando uma parcela da sociedade descoberta de leis que protejam seus territórios, que protejam seus direitos. E isso é matar. E você está colocando essas pessoas no poder. Você está votando por elas. Você está elegendo e endossando discursos. E o discurso de direita está muito atrelado ao racismo, ao fascismo, à homofobia", alerta Enock.

Luciana e Matheus discutem os nortes da personagem


Em seu filme, Matheus e Enock levam sua audiência a refletir em como um Estado mesquinho pode ser nocivo diante de sua indiferença. No desaparecimento de Roberta, e na busca de Marilene por sua filha, há símbolos de uma perda que representa um país perdido em uma desesperança. Em determinada cena, lá estão Marilene, Juliana, amiga de sua menina, e Gilka, a vizinha, a colar cartazes com a foto da filha desaparecida. Nas paredes, de forma sutil, outros cartazes aparecem. O padrão desses desaparecimentos surge evidente, porém. No país de um Estado omisso, que governa para poucos, e que prega o desaparecimento de suas minorias, tais cartazes se multiplicam. E em nosso atual presente, caótico e pandêmico, confirma esse comportamento assassino.

"É um sistema pautado na mentira, no caos. Quantas vidas perdidas nessa pandemia é fruto de uma irresponsabilidade de alguém que poderia, simplesmente, fazer diferente? Que teria todo poder nas mãos para fazer diferente. E quando pensamos nesses desaparecidos do filme, tentamos criar um padrão desses desaparecimentos. Claro que a Roberta é o símbolo disso tudo, mas o filme trata de um contexto que envolve outros desaparecimentos. Essa foi uma ideia que foi se formando ao longo da finalização do filme. Porque também começamos a pensar em quem são esses desaparecidos, sabe? E é inevitável não pensar em cada uma dessas mortes provocadas pela pandemia como, também, pessoas que sofrem de uma violência do Estado. De um descaso dos políticos e de um descaso do Estado. Um Estado que parece que não se preocupa em manter as pessoas vivas. Roberta é uma delas. A Marielle, a Matheusa, a Dandara, e tantas outras vidas que estão sendo perdidas todos os dias. E as pessoas parecem que estão nesse estado de letargia absoluta. A gente aqui está cansado, sabe? Está todo mundo cansado", desabafa Matheus Farias.

A dupla de realizadores Enock Carvalho e Matheus Farias

ESPERANÇA E FUGA

Marilene, em seu ensaio de um sorriso nos último momentos de Inabitável, abre para a audiência uma possibilidade de refletir em uma esperança. Sim, lá está a fuga. Sim, lá está a ideia de que não há mais futuro aqui. Mas aquele sutil sorriso traz um fio esperançoso.  Para Luciana Souza, "o filme dá esse contorno que é uma grande gancho. Esse contorno de uma certa esperança, mas de uma esperança que só é possível fora daqui. De alguma forma é até uma utopia. Uma utopia para esse âmbito em que vivemos. A gente não sabe de muitas coisas do além. Acho que dá esse caminho, dá essa esperança de que é possível que haja um lugar melhor para se viver", observa a atriz e questiona: "Que lugar é esse em que a gente vive e que é um lugar que não nos pertence? É um lugar que não temos o direito de existência? É um lugar que não temos direito a coisas básicas? Eu acho que o filme faz essa grande denúncia, sabe? Esse nome Inabitável é esse lugar que não é habitável. É interessante você falar isso do "Estamos atrasadas". Estamos atrasados, mesmo. Estamos atrasados de evolução, também. Estamos atrasados de sanar, de passar para outras questões existenciais, de sanar um tanto dessas diferenças", finaliza.

Estamos muito atrasados. 

 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 31/01/2021



*As fotos que ilustram essa matéria são de Gustavo Pessoa. 

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