sábado, 16 de janeiro de 2021

O Poderoso Chefão Parte III - CODA

 Revisitando o Padrinho


CINEMA
Em desnecessária nova versão, Coppola remonta terceira parte de O Poderoso Chefão, altera momentos cruciais, exclui cenas e deixa a saga dos Corleone aberta a continuações

Por João Paulo Barreto

Preciso pedir licença para uma introdução confessional e intima em relação a importância que a trilogia O Poderoso Chefão tem em minha formação como cinéfilo e estudioso de Cinema. Trata-se do meu filme preferido. Sim, considero as três partes como um único filme de quase dez horas de duração. Desde a adolescência, quando a paixão pela sétima arte se consolidou, tenho um compromisso anual de visitar os Corleone e adentrar nas camadas narrativas e visuais criadas por Mario Puzo e Francis Ford Coppola. E a cada nova visita, me deparo com algo novo e surpreendente. Por isso, nada mais natural que em minha visita de 2021, eu tenha criado uma expectativa acima do habitual para assistir ao "novo" terceiro capítulo, batizado por Coppola de Coda: The Death of Michael Corleone (ou Desfecho: A Morte de Michael Corleone). Coda, uma referência ao termo musical que define um epílogo, era o título proposto no lançamento original, em 1990, sendo descartado à época.

Michael: tenacidade e sagacidade oriundas da velhice

ARCO DRAMÁTICO

Antes de adentrar no mérito desse texto, no caso, a tal nova versão para a parte final, permitam abordar um dos magnéticos aspectos da obra em três tomos dirigida por Coppola entre 1972 e 1990. Trata-se, claro, da transformação de Michael Corleone (Al Pacino). De um assumido rebelde e dissidente de suas heranças familiares a um sagaz e calculista Don, a metamorfose do rebento caçula dos filhos homens de Vito Corleone (Marlon Brando) na guerra contra os inimigos e traidores da sua família é o que mais fascina na relação de O Poderoso Chefão com seu público cativo. Em um exercício mental, a visita à saga nos permite imaginar qual teria sido o desfecho de Michael se sua primeira esposa, Apollonia Vitelli, não tivesse sido vítima de um atentado que, originalmente, tinha ele como alvo. Constituindo uma família com ela, o aborto provocado por Kay Adams (Diane Keaton) não teria sido o fator preponderante para seu ódio contra inimigos já derrotados e, naquele momento, inofensivos. A perda de um herdeiro ainda não nascido o levou a desprezar a clarividência que o impediria de, em circunstâncias mais pragmáticas, matar o próprio irmão, Fredo (John Cazale), em um ato insano que gerou um peso que ele carregou e que o desestabilizou para sempre. "Nunca odeie seus inimigos. Afeta seu julgamento," diria o próprio Michael, já experiente.

Condecoração da igreja como parte do acordo: cena excluída

ORIGINAL INTOCÁVEL

Apesar de ser um fã da trilogia, é admissível a percepção de que a terceira parte carece de um apuro narrativo que as duas primeiras têm de sobra. Mas não me entendam mal. Apesar de reconhecer alguns dos seus problemas relacionados, por exemplo, à grandiloquência forçada do roteiro no que tange ao poder mundial que Michael Corleone alcançou em sua ascensão religiosa e financeira junto a Igreja Católica, sempre considerei o desfecho da saga "de la famiglia" como bastante satisfatório.

Por isso, convém lembrar alguns dos elementos mais marcantes desse desfecho, tais como a dor e culpa destrutivas de Michael pelo assassinato de Fredo, representada logo na cena de abertura, com o lago e a residência dos Corleone, fria, abandonada ao tempo e às chagas abertas;  a tentativa de salvar o mínimo de afeto entre ele e a ex-esposa (e mãe de seus filhos), Kay, mesmo após a decisão macabra, anos antes, de propositalmente matar um Corleone ainda seu ventre; a busca de Michael pelo perdão divino por seus pecados, algo que denota uma de suas fraquezas advindas da velhice, junto, claro, com a diabetes. Seu final ainda mais doloroso, representando a perda do que Michael mais prezava e protegia: sua família.  E, claro, a lembrança precisa de três momentos de dança com as mulheres de sua vida a fazer a audiência perceber o quanto aquele último golpe desferido lhe tornaria ainda mais distante da redenção que ele almejava e daqueles momentos tenros. Além disso, é inevitável pontuar seu último suspiro antes de ser traído pelo coração frágil que terceira idade lhe concedeu. Na Sicilia, sozinho, vivendo de recordações e de mágoas, ele apenas lembra e se corrói em tristeza, até ceder ao abraço da morte natural.

Ao fundo, Vincent Mancini (Andy Garcia): nova geração

MUDANÇAS DESNECESSÁRIAS

Coppola, infelizmente, priva o espectador de alguns desses elementos em sua nova montagem. Com uma nova cena de abertura que já era conhecida pelos extras das edições em mídia física, na qual Michael negocia com o arcebispo a compra de uma dívida do Vaticano, o diretor de Apocalypse Now substitui o ritual litúrgico da homenagem a Don Corleone. Assim, ao retirar a cena com a celebração na igreja, Coppola quebra uma marca de sua própria trilogia, que tem em seus primeiros atos uma cerimônia religiosa a marcar as relações da máfia com um aspecto sagrado para acordos firmados. No primeiro, os negócios da família eram discutidos durante o casamento de Connie. No segundo tomo, a primeira comunhão de Anthony. Do mesmo modo, a exclusão do prelúdio, com o revisitar do espectador ao local da morte de Fredo, retira um peso introdutório da atmosfera de luto que o filme original de 1990 possui. 

Kay e Michael: terceiras chances e mágoas (quase) esquecidas

Para além disso, as reduções de diálogos, como a conversa de Don Altobello com o assassino contratado, na qual destaca-se a fala do personagem de Eli Wallach sobre a pureza do azeite de oliva siciliano, e o juramento de Vincent Mancini (Andy Garcia) a sua tia Connie (Talia Shire) sobre a sua responsabilidade para com a família, são exemplos que representam escolhas visando, claro, dar melhor ritmo ao filme. Mas as mesmas não se justificam, uma vez que a metragem do longa nunca foi um problema. A perda dos exemplos de tradições culturais dentro do fascinante universo da máfia, sim. Essas ausência em Coda se tornam um problema.

MORTE DE MICHAEL?

Nada mais grave em seu retalho desnecessário, porém, que a alteração que o cineasta fez do final do filme em seu ultimo take. Privando sua audiência de um desfecho físico para seu protagonista, quando o mesmo não mais cede à morte em seu derradeiro mergulhar nas lembranças entrecortadas pelas belas cenas de Michael a bailar com as mulheres de sua vida, Apollonia, Kay  e Mary Corlene, Coppola contraditoriamente retira da obra o que ele mesmo anunciou em seu novo subtítulo. E isso apenas em troca de uma até impactante mensagem sobre a tenacidade da vingança siciliana, mas que, no final das contas, não traz qualquer adição narrativa de maneira positiva ao filme. Pelo contrário. A ausência da morte física de Michael Corleone em seu desfecho definitivo priva o espectador  de uma continuidade emocional para a catártica cena na escadaria, com o grito gutural de dor a chocar personagens e audiência, levando-nos gradativamente ao seu emocionante e doloroso desfecho.

O peso da velhice e da culpa atingem Don Corleone

Fica a conclusão de um legado quase irretocável que, apesar de menos grandioso que em suas duas primeiras partes, tinha na terceira uma conclusão mais do que satisfatória. Ainda bem que temos DVDs e blu-rays para novas visitas aos Corleone em sua versão original. Torcer para Francis não querer retocar ao seu bel-prazer os sagrados tomos um e dois. Afinal, respeitar tradições é um lema dos Corleone.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/01/2021



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