quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Marighella


 A censura perdeu

ESTREIA Marighella, primeiro trabalho de Wagner Moura na direção de longas metragens, chega finalmente aos cinemas após sofrer perseguição de um governo mentiroso e fadado ao fracasso

Por João Paulo Barreto

A nova visita a Marighella dentro de uma sala de cinema gerou um impacto ainda mais forte. A anterior foi há onze meses, em uma sessão especial que aconteceu no então Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha, a primeira do filme em um cinema do Brasil, na Semana da Consciência Negra do ano passado. Em um final de ano como o do catastrófico 2020, quando as mortes pela pandemia cresciam exponencialmente, verbas de vacina (como viemos a descobrir alguns meses depois) eram desviadas e a falta de perspectivas de um país perdido desesperava os mais atentos, a sessão de Marighella, na minha primeira visita ao Cine Glauber após meses de confinamento, bateu pesado neste escriba.

Corta para esse final de 2021, e o sentimento em relação ao que acontece ao nosso redor não mudou muito. Porém, após a segunda dose da vacina (mas ainda usando máscara em locais públicos, evitando aglomerações e podendo sair de casa com mais regularidade), a comparação com aqueles últimos meses do ano passado, quando a pancada dirigida por Wagner Moura me fez deixar combalido a Sala 1 do Glauber, é inevitável. No entanto, a sessão para imprensa da obra acabou por causar resultado semelhante àquele inicial do ano passado. Para quem sabe reconhecer a fragilidade de nossa democracia e percebe os riscos de um Brasil desgovernado por fanáticos, as duas horas e meia de projeção de Marighella nos traz para essa realidade de maneira brutal.

Moura dirige Seu Jorge em cena de Marighella

Depois de embargos da Secretaria de Cultura do governo brasileiro e imbróglios burocráticos gerados de modo proposital pela Ancine gerida pelo atual executivo, a obra dirigida por Wagner Moura alcança seu público após quase três anos da data inicial prevista para sua estreia, que seria no começo de 2019. "O fato de você ser atacado pelo governo de um país porque você fez um filme é um negócio que temos que parar para pensar em como é algo extraordinariamente louco. Quando você tem um presidente e membros de um governo que te atacam porque você fez um filme, diz muito mais sobre o tempo que a gente está vivendo do que sobre o filme em si. Porque é um filme", explica Wagner Moura em entrevista ao A TARDE por ocasião da sua visita a Salvador para uma sessão especial para convidados no Teatro Castro Alves.  O diretor, dentro desse constatar estupefato  da perseguição de um governo contra seu trabalho, não esmaece: "Claro que eu não facilito para ele. Porque eu sou combativo. E não faria nenhum sentido se eu não fosse. Porque eu sou assim. Porque eu acho que vivemos um momento muito sério no país de hoje. Então, é hora de todo mundo que puder, vir para o combate, mesmo. Tem que ir para o enfrentamento", afirma Moura.

RECONSTRUÇÃO

Baseada no denso livro escrito por Mário Magalhães, a cinebiografia de Marighella levada às telas por Wagner Moura é um de um estampido que ecoa muito tempo depois de seus créditos finais. É um filme alerta para os riscos que nos ameaçam como um país que deu voz e poder a projetos de ditadores e genocidas por convicção. Na sua abertura, um letreiro nos fala sobre as perdas de liberdades que os militares impuseram logo após retirar João Goulart do poder em 1964 sob o pretexto de salvar o Brasil da "corrupção e da ameaça comunista". A promessa de novas eleições após um ano do golpe militar, claro, não foi cumprida. O Brasil amargou 21 anos sob a alçada sanguinária da ditadura.

O estampido citado acima é daqueles de cenas explosivas, sim, mas a dureza de Marighella se faz presente ainda mais forte em seus momentos de ternura, como quando Clara e Carlos se despedem, e o deputado deixa uma fita gravada para seu filho, que não pôde reencontrar como lhe prometeu. Em outro ponto, engolimos em seco o momento em que vemos as lágrimas do homem dentro do carro voltando de Cachoeira, cidade do Recôncavo, onde teve que deixar o filho após este perceber e alertar o pai da emboscada dos militares. Tais momentos doloroso reverberam com mais força que os tiros e bombas que explodem no decorrer daquela trajetória do grupo de homens e mulheres que decidiu não aceitar os desmandos tirânicos e assassinos de uma corja sanguinária de militares.

Carlos e Clara: momentos antes da tormenta

HINO EM BRADO

Marighella se torna um filme símbolo de um momento em que o Brasil se vê quase perdido. Quase. A força de sua cena durante os créditos finais, quando é cantando com força o hino nacional, esse outro símbolo que, de alguns anos para cá, foi cooptado por forças mal intencionadas e mesquinhas, traz esse sentimento de que merecemos mais do que esse país levado para trás por mentiras, notícias falsas, obscurantismo e negacionismo. Wagner Moura traz em sua fala uma força semelhante àquela dos personagens ao bradar o nosso hino. "Eu acho que o Brasil já vive um momento em que nos demos conta de que a eleição de 2018 foi pedagógica. A nossa história, a História do Brasil, é também absolutamente violenta, autoritária, golpista, racista. Bolsonaro sintetiza esse Brasil elitista que, em determinado momento, os eleitores foram às ruas dizer: 'esse Brasil existe. Olhem para esse Brasil que ele existe.' E esse Brasil é sintetizado na figura de Bolsonaro. Agora, eu acho que esse mesmo país é muito mais do que isso. E esse mesmo país, hoje, olha para isso e diz: 'Não é esse o Brasil que queremos.' Nós nos defrontamos com isso. Somos um país mestre em camuflar as coisas. É o país da lei da anistia. É o país do racismo disfarçado. E Bolsonaro mostrou que o Brasil é um país com um histórico terrível. Só que a gente está olhando para isso e todas as pesquisas dizem que não queremos mais", pontua o cineasta e  afirma: "Eu sou muito otimista com 2022. Vamos ter que reconstruir um país. Vai ser um trabalho muito duro, porque andamos para trás. Foi algo devastador em todas as áreas. Mas é assim. Vamos reconstruir e caminhar para vocação que eu vejo que é a desse país: a de um lugar exemplo para o mundo", completa.

Depois daquele dia em novembro do ano passado, quando as incertezas e medos eram mais densos, sair de um cinema depois de uma sessão de Marighella em outubro de 2021 traz uma novas perspectivas para um futuro menos sombrio em nosso país.  

*Texto originalmente publicado no Jornal A TARDE, dia 03/11/2021



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