Por João Paulo Barreto
“Tarso de Castro morava dentro de si mesmo”. A frase que
fecha o recorte cinebiográfico do jornalista fundador do jornal O Pasquim é
proferida pelo também jornalista Roberto d’Ávila, em conversa com o filho de
Tarso, João Vicente de Castro. O comentário informal surge durante um sensível
encontro, no qual João, curioso em saber mais sobre o pai que perdera quando
tinha apenas oito anos, começa a perguntar mais para o amigo de longa data que
seu velho tinha em d’Ávila.
É um dos diálogos que definem bem A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro, filme dirigido por Leo
Garcia e Zeca Brito, em cartaz em Salvador. A descrição do jornalista acerca de
Tarso, a quem, à época, visitou em um apartamento onde só tinha uma
mini-geladeira e um colchão velho no chão, resume uma figura que vivera em prol
do que mais amava fazer, que era escrever e pensar jornalismo em um Brasil
refém de ratos militares e de gigantes da imprensa e da TV que se corrompiam
junto ao governo ditatorial. Claro que dentre as coisas que Tarso mais amava também
estavam as muitas mulheres com quem se envolveu, a boêmia e, infelizmente, o
álcool que acabou por levá-lo à cirrose hepática que o matou aos 49 anos, em
1991.
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Sempre ao lado do que é genial: Tarso e sua amizade com Chico |
Desregrado, mas atento a tudo ao seu redor, Tarso de Castro
criou uma rede de amigos e inimigos que eram seu suporte de criação. O filme
traz boa parte desses amigos em depoimentos atuais e, alguns deles, que vieram
a se tornar inimigos, em vídeos da época. Entre os amigos, Luiz Carlos Maciel,
um dos fundadores d’O Pasquim define Tarso como alguém que gostava da companhia
de gente de talentosa, e cita nomes como Chico, Caetano e Tom. “Tarso são
suportava era a mediocridade. Mediocridade no poder, então...” e a afirmação de
um simbolismo imenso reverbera.
Porque era justamente essa a luta de Tarso de Castro. Uma
batalha contra a mediocridade e contra o conformismo de uma imprensa que não
podia lamber botas como já faziam os grandes veículos do período. Dentre os
diversos episódios narrados, um que se destaca é a não entrevista que Roberto
Marinho “concedeu” para o Jornal O Nacional, que tinha Tarso como editor.
Coletando depoimentos de afetos e desafetos do dono da Rede Globo, que,
possivelmente, confundiram O Nacional com Jornal Nacional, a matéria impressa
vinha com um espaço em branco dedicada a uma possível resposta do magnata.
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João Vicente de Castro e a tocante conversa com Robertod'Ávila |
DINAMISMO NA MONTAGEM
Com uma montagem dinâmica, que, mesmo precisando contornar o
risco que estruturas de cabeças falantes trazem em entrevistas sequenciais, o
filme consegue contornar a possibilidade de se tornar enfadonho justamente por
conta da riqueza dos depoimentos. Junto a isso, o acerto do montador Jarder
Machado em ilustrar diversos momentos com capas dos vários jornais, revistas e
folhetins criados por Tarso levam ao espectador a perceber como a história do
Brasil se repete, algo que um visionário como ele conseguiu perceber muitos
anos antes do nosso atual caos.
Sem buscar defender ou acusar o seu personagem central, o
documentário aponta para as diversas e controversas opiniões acerca de Tarso de
Castro. Quando Paulo Francis, ex-colega d’ O Pasquim, o chama de ladrão durante
uma entrevista ao Roda Viva, logo é replicado por uma das presentes dizendo que
todo o dinheiro do jornal era gasto em álcool e diversão. Logo, estavam todos
no mesmo barco. Da mesma maneira, quando acusado de ser um mau caráter, a
opinião é contrastada pela visão de uma das companheiras de Tarso, que o define
como alguém de bom coração. Assim, a construção do filme sobre a lenda do
jornalista deixa o espectador ainda mais curioso por desvendar a história
daquele homem que mereceu um roteiro sobre ele escrito por ninguém menos que
Glauber Rocha.
Define perfeitamente o jornalista José Trajano, um dos
entrevistados, quando cita a quantidade de impressos criados pelo próprio
Tarso, entre estes O Pasquim, Enfim,
Folhetim e O Nacional. “Poucos ou
nenhum jornalista, hoje, pode bater no peito e dizer que criou tudo isso. Só o
Tarso.” A vida extra-ordinária de Tarso de Castro, tanto o filme quanto a
própria vivida tão intensamente por ele, nos faz pensar sobre as nossas
próprias. Sobre pelo que vale a pena viver. “Prefiro viver ouro”, disse o homem
em vida. Se não fosse assim, ele preferia a morte. Não é para menos que a
genialidade muitas vezes caminha junto com o que é efêmero.
*Crítica originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 02/06/2018
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