sábado, 26 de setembro de 2020

Alta Fidelidade - A Série

 

Top Five 

Erros de Vida



STREAMING Adaptação de clássico da cultura pop escrito por Nick Hornby, série Alta Fidelidade reinventa com maestria para os tempos solúveis do digital os conflitos românticos de todas as épocas

Por João Paulo Barreto

É improvável, claro, com a atual facilidade de acesso a informação através da internet. Mas, talvez, seja justamente por esse bombardeio  de links, lives, stories, tuites e tiktoks disfarçado de "acesso a informações" que parte da audiência pode chegar ao final dos dez episódios da série Alta Fidelidade sem saber de sua origem cinematográfica com a obra homônima dirigida há vinte anos pelo britânico Stephen Frears. Em um período de poucos aprofundamentos, tempos breves e escassos de acessos a leituras mais profundas, foco concentrado em apenas dez segundos e em um constante rolar de dedos em telas de celular, é possível que parte das pessoas que se aventurem por essa bela primeira temporada, desconheça (ou nem se esforce em se aprofundar) na ideia de revival de um dos melhores filmes lançados no fértil final do século XX para o cinema estadunidense.            

Baseado no bestseller do também britânico Nick Hornby, High Fidelity trazia os conflitos de Rob Fleming (nas telas, Rob Gordon), uma enciclopédia musical humana viciado em criar listas de cinco mais (o top five do título). Colecionador de discos e de fracassos em relacionamentos amorosos, Rob é dono de uma loja quase falida que ainda vendia discos de vinil, cassetes e CDs antes destes se tornarem itens de resistência da mídia física em um tempo de "facilidades" fugazes e solúveis do streaming. E é justamente nessa ideia de atualização dos tempos que se baseia a proposta de adaptação para 2020 da história de Rob, agora, Robyn "Rob" Brooks, também colecionadora de discos e de complicações afetivas, bem como dona de uma loja de discos ainda mais falida, quando as coletâneas gravadas em fitas cassete se tornam impessoais playlists de aplicativos, como Spotify e Deezer.

Rob em seu ambiente natural: a quase falida loja de discos 

NOVA PROTAGONISTA

Vivida por Zoë Kravitz com o nível exato de desdém e pedantismo já trazido por John Cusack em sua versão original, a Robin dessa nova versão passa pelas mesmas provas de paciência diante de pessoas cujas proximidades com a Música (sim, M maiúsculo) não têm o mesmo nível de comprometimento, busca e percepção que o dela e de seus dois amigos/funcionários. Do mesmo modo, as lições de humildade e menos arrogância são semelhantes  àquelas pelas quais passam o Rob londrino das páginas de Hornby e o estadunidense de Chicago vivido por Cusack. A novaiorquina Robyn de Kravitz encara, em 2020, os erros em relacionamentos anteriores que voltam para atormentá-la durante sua busca por sentido no reajuste mental de contas. E quem nunca, não é mesmo?

Fugindo de uma artificial e forçada contextualização aos tempos digitais, a série é bem sóbria no pincelar dessas novas rotinas e condições propostas para absorção de música, com Rob, também, se rendendo às playlists enviadas por WhatsApp e às visitas (leia-se stalkeadas) a perfis de redes sociais na busca por informações daquelas que representam cicatrizações em seus relacionamentos arruinados por atitudes precipitadas e imaturas. Em uma dessas atualizações para os tempos modernos, a ideia de brincar com a ridícula e descartável (porém, lucrativa) vida de influenciadores digitais, traz um dos momentos mais hilários dentre os dez episódios dessa primeira temporada, com Rob cumprindo uma das etapas de seu Top Five de piores términos ao revisitar uma ex-namorada.

Cherise e Simon acompanham os dramas diários em papos pops


AMADURECER LÁ E CÁ

Enquanto lá em 2000, o filme de Stephen Frears serviu para revelar o talento versátil de Jack Black em seus (hoje, já telegrafáveis) trejeitos, olhares, caras e caretas, a versão em formato televisivo desenvolvido por Sarah Kucserka e Veronica West (dupla que já havia surpreendido com a ótima série Ugly Betty) traz na presença de Da'Vine Joy Randolph não uma versão feminina do  despachado Barry, mas algo com maior profundidade. Sua Cherise, aqui, é uma total reconstrução da ironia e do sarcasmo na análise da sua rotina dentro de uma vida dedicada à cultura pop, porém, com um desenhar de inseguranças, ambições e receios na vontade de encontrar-se em uma vocação para além daquela vida.

"Não importa quem você é, mas, sim, as coisas que você gosta. Livros, discos, filmes - essas coisas importam. Podem me chamar de superficial, mas essa é a p... da verdade", afirma Rob (e Robyn) em uma das melhores linhas escritas por Hornby. Cherise, no entanto, começa a perceber, da mesma forma que Barry, que a vida pode unir aquele talento de um gosto cultural aprofundado (sim, isso é um talento) a algo para além de uma repetição de conversas diárias sobre os mesmos temas. E o momento em que ela alcança sua maior ambição material e artística, é de uma beleza única no desenvolvimento de sua personagem. Randolph já havia surpreendido com sua versão para Oda Mae Brown no musical da Broadway, Ghost. Em Alta Fidelidade, sua Cherise traz a mesma energia. Em paralelo e do mesmo modo, o terceiro pilar daquela amizade tem em Simon (um David Holmes contido, mas não introvertido de modo clínico) uma eficiente inovação e desenvolvimento de um arco dramático para o personagem que, na obra de Hornby, centrava-se na timidez de Dick (no cinema, vivido por Todd Louiso como um ponto de contraste para o espalhafatoso Barry de Jack Black).

Rob em uma de suas lembranças que voltam para atormentar

Com as precisas referências tanto ao livro de Hornby quanto ao filme de Freas (o nome de um dos locais frequentados por Robyn é De Salle, personagem vivida por Lisa Bonet, mãe de Zoë Kravitz a camiseta idêntica usada por Rob e Robyn; e, claro, o belo momento com I Believe, música de Stevie Wonder), a série constrói uma homenagem à sua origem cinematográfica  de duas décadas atrás, mas, do mesmo modo, cria uma identidade própria, independente e inovadora.

Alta Fidelidade acaba sendo um relato em dez partes sobre o amadurecimento. Sobre errar e aprender (ou não) com esses mesmos erros. Sobre quebrar a cara e, mesmo assim, oferecer a outra face. Tal amadurecimento pode chegar com atraso; pode machucar ao vir; pode, também, não fazer a menor diferença quando chegar. Porém, seja lá qual for a circunstância na qual ele chegue, será sempre bem vindo. 

Essa percepção pode vir a longo prazo, mas, vai por mim, ela vem. 

Quando vier, abrace-a.

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*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/09/2020



sexta-feira, 4 de setembro de 2020

HQ Pandemonium


Horror 
sem Censura

ARTE SEQUENCIAL Dentro de uma proposta do terror e do fantástico calcada em publicações clássicas dentro dos quadrinhos de gênero,  HQ baiana Pandemonium está em financiamento coletivo

Por João Paulo Barreto

O mercado editorial dos quadrinhos independentes, distantes da realidade de gigantes como a editora Panini e sua extensa gama de edições que variam entre simples brochuras a luxuosos (e caros) encadernados, respira em um ritmo diferente de sobrevivência.Também há  exemplos de sucessos com editoras que surgiram como projetos independentes de amigos, leitores  e colecionadores (como é o caso da bem sucedida Pipoca&Nanquim), mas há diversos outros artistas do lápis e escritores entusiastas dessa representação cultural. Tais artistas seguem em uma luta constante no escalar dos infernos atrelados a conseguir produzir, imprimir e levar ao público leitor (e colecionador) de quadrinhos um material de qualidade dentro do nicho da literatura de gênero do terror e do fantástico.


Uma analogia (um tanto gratuita, verdade) a Alighieri nessa linha anterior apenas para que seja possível traçar uma ponte entre os escritos infernais de Dante e, assim, pode falar de John Milton e seu Paraíso Perdido. Lá, o palácio do rei das trevas era chamado na obra do século XV de Pandemonium. O nome, bastante apropriado, diga-se de passagem, batiza o quadrinho tocado por alguns autores daqui da Bahia. Pandemonium, coletânea de histórias que caminha entre o fantástico, o terror gore slasher, bem como o psicológico, com inserções de noir e ficção pós apocalíptica, está em financiamento coletivo pelo Catarse (catarse.me/pandemonium) e delineia um mercado editorial na Bahia e no Brasil que encontra um público cativo e ávido por histórias dentro do gênero abordado. 



Idealizado pelo coletivo Quadrinhos de Emergência e pelo grupo por trás da Mostra CINE HORROR, Pandemonium tem como um dos um dos roteiristas/desenhistas o artista gráfico Valmar Oliveira. Aqui, Valmar analisa a questão da barreira financeira para trazer a esse público obras criativas e impactantes dentro dessa proposta. "A parte financeira é um grande problema. Como uma publicação independente, temos o preço do papel e das gráficas que sempre varia. O financiamento coletivo é uma forma de pré-venda na qual  contamos com os interessados em adquirir o produto. Nós, assim,  só imprimimos a quantidade realmente necessária. Mas tem outro fator que é a divulgação para que as pessoas tenham conhecimento do projeto. Como existem vários quadrinhos sendo planejados e lançados, temos um grande trabalho para aparecermos e nos destacarmos. Sem a devida divulgação, não temos como alcançar nosso público alvo, e, por consequência, não teremos como alcançar o objetivo de lançar nossa publicação", explica Valmar.

O co-autor Valmar Oliveira

LINHAS EDITORIAIS

Outro aspecto a ser destacado dentro dessa dificuldade reside na resistência de algumas linhas editoriais em enxergar o potencial dos quadrinhos dentro da proposta do terror e do fantástico. Seja isso por medo de uma patrulha virtual, tão comum na era dos "cancelamentos", ou por não acreditarem que tais publicações possam gerar retorno em vendas. Roteirista presente em Pandemonium, Saul Mendez Filho destaca que, para algumas editoras, " é mais difícil apostar hoje em algo novo que possa ser linchado virtualmente do que em uma franquia estabelecida, ainda que a mesma seja considerada “incorreta” em diversos sentidos. Existem marcas e personalidades que sempre estarão livres de ataque, e outras não".

O co-autor Saul Mendez Filho
O co-autor traz um exemplo preciso ao abordar as diferentes mídias em análise de uma obra mundialmente conhecida como Lolita. " ainda hoje se assiste Lolita, filme de Kubrick, nos círculos cinéfilos, sem qualquer comentário que não seja elogioso. Ao mesmo tempo se cancela Nabokov e sua obra literária, ainda que o livro possua mais questionamento e culpa em seus milhares de caracteres em relação às aplaudidas linhas de roteiro que foram confeccionadas pelo próprio autor para o filme. Kubrick nunca será criticado, porque isso se tornou um padrão. Da mesma forma, criticar alguns nomes específicos – como Woody Allen - se torna um padrão, e a sensação de participar na internet de um grupo que concorda é sempre fantástica. Em grupo, se abate quem pensa diferente com muita maestria", compara Saul.



LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A análise em relação ao tipo de julgamento oriundo do público não familiarizado com a proposta dos quadrinho de gênero ganha contornos mais profundos quando alcança aspectos da liberdade de expressão. Valmar Oliveira levanta alguns dos questionamentos que tiveram por parte de editoras. "Tivemos criticas em relação ao nome, que diziam ser uma alusão à pandemia, além de criticas à nudez na capa e ao conteúdo de algumas historias. O nome da revista é referência ao clássico O Paraíso Perdido (1667), de John Milton. A nudez é algo clássico nas revistas de horror e ficção das épocas que nos inspiram, e parecia lógico usar a incrível arte do Hélcio Rogério, um ilustrador baiano premiado".


Valmar aprofunda essa questão no que se refere à responsabilidade atrelada a tal liberdade. "Em plena democracia, não podemos ter medo de nos expressar livremente. Liberdade é a base de toda democracia. A intolerância não pode vir por parte de quem deveria, justamente, defender a liberdade de pensamento e a pluralidade de ideias. Queremos, sim, abordar temas polêmicos com responsabilidade, ter liberdade de desenhar e escrever o que queremos. Não estamos fazendo apologias a violências de qualquer natureza.  Se alguém não gostar de nossa publicação, é só não ler", pontua.



A liberdade de expressão caminha de mãos dadas com a responsabilidade citada acima. Haverá um público consciente dessa proposta de literatura e interessado em consumir. Saul Mendez Filho complementa afirmando que "a  Pandemonium é uma questão de escolha para o leitor, assim como o é para uma editora. Mas em algum momento, em meio a toda essa onda de cancelamentos que tende a moldar a multiplicidade a uma só perspectiva do real, haverá de caber o auto-julgamento se seguiram o melhor caminho de fato. Chegarão até eles, também, julgamentos reversos completamente esdrúxulos e inesperados por parte dos consumidores. As editoras não estão livres disso. O melhor é sempre a sinceridade consigo mesmo e com seu próprio projeto. Ninguém é algum '...ista' só porque decidiram", finaliza.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 05/09/2020




quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Memórias do Brasil

 Tempo e Artista

O registro da História Cultural de um país plural é o foco de Memórias do Brasil, série em 13 episódios que revisita trajetórias de nomes pilares das Artes desta nação que precisa valorizá-las

Por João Paulo Barreto

Dentro da necessidade intrínseca a um povo consciente de sua História, bem como da relevância do seu patrimônio cultural enquanto país detentor de um legado ameaçado por hordas de ignorantes que buscam a todo custo apagá-lo, falar (e registrar para a posteridade) de trajetórias de pessoas que ajudaram o Brasil a construir alguns de seus pilares culturais é tarefa crucial neste 2020 que não parece o futuro que imaginávamos.

Assim, celebrar trajetórias de pessoas que seguem construindo essa identidade, bem como  honrar a memória de algumas delas que já nos deixaram, surge como um dos ponto mais louváveis de Memórias do Brasil, série em 13 episódios que tem exibição toda sexta-feira no Canal Arte 1, sempre às 20h30. Outro ponto louvável é a possibilidade de apresentar tais pessoas às novas gerações, tão presas ao imediatismo e à superficialidades dentro do consumo bombardeador de informações rasas em um século que chega a sua segunda década movido pela criação (e pelo fugaz esquecimento) de "ídolos" instantâneos e sem muito a oferecer além de polêmicas em redes sociais, "stories"e "lacrações".

A cineasta Vania Lima e o artista plástico Severino Vitalino

Idealizada por Vania Lima (que dirigiu dois episódios), da TêmDendê Produções, a série conta com sua direção geral,  e teve em seus capítulos a direção de mais três cineastas: Diogo Oliveira, Walkiria Hamu e Rodrigo Luna. Sobre essa questão citada em relação a importância do resgate da memória, Vania explica: "Eu tenho um pertencimento muito forte a essa ideia de resgate. Na minha ideia, memória é algo que você escolhe lembrar ou escolhe esquecer. Meu trabalho todo se baseia nesse aspecto da História. O Brasil tem essa síndrome. Parece que queremos apagar coisas da nossa memória deliberadamente. E eu queria muito começar a construir materiais orgânicos que pudessem trazer coisas que não pudessem ser assim tão facilmente apagadas," explica a cineasta por trás da direção dos capítulos sobre Lia de Itamaracá e sobre Severino Vitalino.

DIFERENTES ESTRADAS

Ao visitarmos as estradas percorridas pelos nomes ilustrados em cada um dos 13 episódios da série, temos a sensação de um adentrar temporal que, sem preciosismo ou uma exacerbada valorização do passado, permite olhar para tais trajetórias artísticas e nos perguntar como poderemos viver em um país que não se volta para as expressões da Cultura como o tesouro potencial que elas representam. E isso tanto em identidade de um povo como em uma maneira de fortalecimento econômico de uma nação.

O DP Cláudio de Jesus, Lia Robatto e o cineasta Rodrigo Luna

A série ilustra esse potencial a partir dos nomes de Lia de Itamaracá, Tuzé de Abreu, Lia Robatto, Gerônimo, Nildão, Luiz Melodia, Gerson King Combo, Maria Alcina, Mara Salles, Zé Celso, Milton Hatoum, Fernando Mello e Severino Vitalino. Adentramos, assim, em  suas expressões artísticas a partir da Música, Dança, Culinária, Artes Plásticas e Visuais, Direção e Cenografia Teatral, bem como da Literatura.



Memórias do Brasil trouxe Luiz Melodia em sua última série de entrevistas

Diretor de quatro dos 13 episódios, o cineasta Rodrigo Luna construiu narrativas que mergulham nas vidas da coreógrafa Lia Robatto, dos músicos Tuzé de Abreu e Gerônimo, além do cartunista Nildão. No processo de captação de entrevistas e na montagem dos episódios (que teve direção capitaneada pela diretora de Montagem, Taguay Tayussy), Luna destaca a importância desse processo através da muitas horas de captação e do garimpo de imagens e de momentos chave no trabalho de montar os capítulos. Um exemplo é quando o diretor de Fotografia, Cláudio Antonio de Jesus, pede para a coreógrafa lhe explicar sobre a perspectiva de lente no movimento dos bailarinos. "Esse é o tipo de momento que eu mais gosto. Quando eu vi que rolou, foi um achado", explica Luna.  "Eu senti que eu estava documentando esse processo de criação, mesmo. Eu acho que não tem questão de vaidade, pois, para mim, o audiovisual é coletivo. E ali eu estava vendo um diretor de Fotografia falando com a diretora do espetáculo. Era isso que estava sendo registrado naquele momento. E, como disse, foi um grande achado. É um garimpo na montagem que, para mim, torna bem importante essa momento", finaliza Rodrigo Luna.

Vania Lima traz ainda outros aspectos desse processo: "Quando falamos em arte visual, buscamos pulsar em caminhos diferentes dessa arte. Descobrir quais eram os neurônios dessa memória que queríamos ativar. Queríamos falar de um Luiz Melodia em um país branco, onde vivia um artista negro que não era do jeito que se imaginava. Tinha uma Lia de Itamaracá, que é do interior de Pernambuco, e que trazia uma cantiga de roda. Uma coisa que os paulistas, quando viram a primeira vez, não entenderam. 'O que é isso? Música de criança?' Eles não entendiam porque as pessoas davam as mãos e giravam. A gente queria falar dessas coisas que estão na nossa memória, mas que precisam ser ativadas", define a diretora geral.


Lia de Itamaracá em cena do episódio dirigido por Vania Lima

RITMOS ÚNICOS

Na construção de narrativas através dos depoimentos, cada pessoa focalizada pelas lentes dirigidas por Rodrigo Luna, Vania Lima, Diogo Oliveira e Walkiria Hamu requer um ritmo diferente. Vania pontua a introspecção de Severino Vitalino durante as filmagens, o que a fez adentrar no tempo do escultor. "Com Severino, o caminho foi muito de observar, esperar e acreditar no tempo dele. Já com Lia de Itamaracá, foi outro movimento. Ela é uma mulher muito forte que teve muitas questões na sua vida. De ter que combater, de ter que sair desse lugar de opressão. Então, ela trouxe o discurso. Ela quis ir à praia. Lembro que ela disse: 'Vamos na praia. Meu movimento é no mar. Se a gente vai fazer uma ciranda, tem que ser na praia'. Ela se colocou mais em função de trazer coisas e discursos. Era um outro movimento. Temos que respeitar, também, e dialogar com esse outro movimento. No meu caso, foi assim que se deu. Eu tenho essa questão de muito observar. Eu gosto muito de trabalhar com as câmeras ligadas o máximo de tempo. " compara Vania.


O cantor Gerônimo, em episódio dirigido por Rodrigo Luna

Outro personagem de destaque nessa composição da série é o músico Gerônimo. Rodrigo Luna, que dirigiu o episódio sobre o cantor e compositor, destaca esse processo. "Uma coisa que eu admiro nele é essa coisa de falar mesmo. De ser verborrágico e não ter papas na língua. O Gerônimo é mais esculhambado, no melhor sentido da palavra.. Acho que esculhambado é a melhor forma de definir", explica Luna entre sorrisos. "Ele conta a sua história com muita propriedade. Foi  massa! O episódio nós filmamos onde ele nasceu, na Ilha de Santo Antonio dos Pobres. Foi bonito porque nós passamos na rua onde ele cresceu. Ele se sentindo em casa e contando sua história. E bem daquele jeitão dele, natural. Bem aquilo mesmo", relembra Luna.  

Com mais duas temporadas já previstas, uma com foco em mulheres que representam essa cultura brasileira, e outra em artistas que trabalharam a afrobrasilidade, Memórias do Brasil se torna um registro ainda mais amplo e necessário dessa História que se esforçam em querer apagar nesse tempo distópico .

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/09/2020




terça-feira, 1 de setembro de 2020

Thiago Brandão - Estação Esperança

Foto: Geovana Côrtes

A Estação Esperança 
do músico Thiago Brandão


MÚSICA Gestando para breve primeiro álbum, exímio e notório baterista mostra nova faceta de violonista, cantor e compositor em segundo single e videoclipe do projeto “em ti me dar”

Por João Paulo Barreto

Quem conhece a cena rocker de Salvador, já se deparou com as pancadas poderosas e, também, sutis de Thiago Brandão na bateria de bandas como as atuais Eric Assmar Trio, Cavern Beatles e, até 2016, com a Lo Han. Na sua trajetória com as baquetas, o jovem músico ajudou a criar nas bandas citadas uma unicidade potente, construindo em conjunto uma evolução palpável tanto em shows repletos de energia, quanto em discos singulares como o “Morning”, segundo álbum da Eric Assmar Trio, e o “Get High”, primeiro trabalho da Lo Han. Além disso, em paralelo a esse crescimento técnico e musical como baterista, Thiago também tem em sua trajetória um consistente trabalho como compositor por trás do violão e guitarra, bem como nos vocais.

Lançando em 2020 o projeto “em ti me dar”, o músico divulgou nesse mês de julho o vídeoclpe de “Estação Esperança”, faixa com pegada folk e texto reflexivo acerca de um futuro incerto, combalido pelo nosso atual presente, mas sem perder a utópica esperança de seu título. Trata-se de uma música cuja junção da letra com as imagens de seu videoclipe trazem essa análise do presente em seu cerne.  “Dependendo de como você interpreta [a letra], acaba que parece que eu estou sugerindo que ‘utopia é o que nos resta para viver e uma voz que traga sentido para tudo de novo.’ Mas eu estou muito mais citando essa visão das pessoas que parecem que se perdem nisso. Em vez de tentar ouvir umas às outras e buscar uma voz que seja comum, não, tem que ter uma voz de cima que meio que obrigue aos outros a seguir sempre essa voz. Isso me incomoda muito”, explica Thiago acerca da faixa que conta com sua produção e mixagem, e com a guitarra de Eric Assmar e o baixo de Vitor Magalhães.

Arte visual de divulgação do clipe de "O Irresponsável", lançada em março

Com essa segunda faixa a trazer tal reflexão (a primeira, “O Irresponsável”, lançada em março, possui em sua letra e imagens de videoclipe um recado mais direto quanto ao caos político que nos cerca), o músico reflete sobre esse estilo de criação. “É uma marca das minhas composições. Geralmente, elas partem de incômodos assim. E quando eu vi que esse era um caminho possível para essa letra, eu investi muito nesse lado. De trazer esses incômodos e, ao mesmo tempo, de mostrar um caminho que não precisa ser por aí”, contextualiza.

ORIGENS RÍTMICAS

Tendo tido a bateria como primeiro instrumento de expressão, o músico reflete acerca dessa variação em seu propósito artístico de criação. “O primeiro instrumento musical que eu senti em mim foi o meu próprio corpo. Batucando na minha perna, no meu peito. Essa coisa do ritmo, da baianidade. Eu sinto muito isso em mim. Eu cresci no Candeal, e, nessa época, ainda tinham os ensaios em que o pessoal ficava subindo e descendo ladeira tocando timbal. Isso formou muito, aguçou muito a minha noção rítmica. As pessoas que conviveram comigo quando eu era criança têm essa cena clássica: eu batucando na mesa, batucando na perna ou batucando onde eu estivesse”, relembra Thiago.

O início do contato com a bateria ainda na infância permitiu ao músico, no passar dos anos, um acúmulo técnico dentro do rock como estilo escolhido de expressão do instrumento, mas sempre tendo o violão como outro modo de criar. “A figura de Dave Grohl me mostrou esse caminho. O primeiro cara que eu queria ser foi o Dave Grohl. Depois vieram outros ícones da década de 1990. Eu tenho 33 anos e vivi essas realidades das primeiras figuras que marcaram o gosto musical nos anos noventa. Mas, paralelo a isso, eu estava sempre percebendo que o violão era o que reunia mais as pessoas. E, volta e meia, o amigo que estava ali tocando comigo na banda, aos 15 anos de idade, ou da banda que já estava semi-profissional, estavam me ensinando. E eu sempre fui um cara que absorve muita coisa facilmente. Essa amizade com o violão foi surgindo aos poucos. Foi mais lenta. A parte rítmica, da bateria, sempre foi muito forte”, salienta.

No confinamento necessário: faixa "Estação Esperança" gravada remotamente

AUDIOVISUAL

Thiago Brandão, além de músico, é também videomaker e montador, trabalhando na criação dos próprios clipes, como é o caso dos recentes lançamentos do projeto “em ti me dar”, bem como com o Eric Assmar Trio, no qual montou e finalizou o clipe da faixa “Morning”, abertura do disco homônimo lançado em 2016. Com experiência em trabalhos na publicidade e cinema (foi da equipe de montagem de documentários sobre Augusto Omolú e Rogério Duarte), Thiago tem no audiovisual uma maneira a mais de expressar sua música e buscar fazer essa diferença dando voz e imagem a causas pouco vistas. “[Trabalhar no doc sobre Omolú] foi um aprendizado extremo e, para além da técnica do editar, de como existem pessoas invisibilizadas hoje e que precisam ter essa voz através de um documentário. Nessa primeira experiência, eu percebi que o fazer documentários é uma coisa que eu quero levar para minha vida nesse sentido de poder trabalhar valorizando ou dando vida a questões que, às vezes, a televisão não dá, ou então ainda não deram evidência. Como era o caso de trabalhos como os de Augusto Omolú”, pontua. 

Na relação entre sua música e trabalho com audiovisual, Thiago é preciso ao salientar essa importância. “Sinto-me assim na obrigação de contar histórias, mas não é qualquer tipo de história. É uma história que eu me sinta parte. Mesmo distante fisicamente, mas que eu me encontre. Isso tem tudo a ver com “Estação Esperança”. É a tal da utopia. Eu me sinto parte dessa utopia e tento trazer isso para as outras pessoas. É uma das maneiras de eu me sentir vivo em momentos tão estranhos”, finaliza.
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*Texto originalmente publicado no
Jornal A Tarde, dia 02/09/2020