domingo, 5 de maio de 2019

A Sombra do Pai


A sombra da maturidade precoce



Com A Sombra do Pai, a cineasta baiana Gabriela Amaral aborda 
com esmero o terror oriundo da infância deixada para trás

Por João Paulo Barreto

É comum que o cinema de gênero, mais precisamente nas obras de terror, em que o ponto de vista infantil muitas vezes representado por clichês de meninas macabras com longas madeixas a esconder seus rostos e áurea sobrenatural assassina, utilize a pureza como modo de perpetrar o medo e a violência simbolizados pela força da perda da inocência. É no contraste entre tal inocência e a brutalidade de seus atos que reside muito do conteúdo de tais obras. Vide filmes como O Chamado, A Profecia e Cemitério Maldito, para citar apenas três.

Porém, ainda mais rico é o tipo de filme de terror no qual essa perda da pureza não necessariamente descamba para a violência assassina, mas, sim, para um encarar da realidade e da maturidade forçada, algo que surge na esteira de acontecimentos brutais, cuja influência na mente e no ponto de vista infantis tem resultado narrativo mais apurado do que o simples apelo slasher (para usar um termo oriundo desse cinema) e sanguinolento que thrillers simplórios e rasos utilizam para brincar com o choque causado a audiências não muito exigentes.

Não que haja algum problema nisso. No aspecto sanguinolência, filmes como os das séries Sexta-feira 13, A Hora do Pesadelo, Halloween e vários outros divertiram e, com seus méritos, formaram audiências durante boa parte dos anos 1980 e 1990. Sou um destes, inclusive. Mas a diferença para melhor reside em quando nos deparamos com obras cujo descortinar da perda da inocência infantil traz profundas consequências de cunho psicológico e o resultado disso, acompanhado de uma premissa sobrenatural, alcança reflexões que escapam à pura e simples catarse fílmica através da violência física. Em A Sombra do Pai, a cineasta Gabriela Amaral Almeida sabe exatamente aonde quer chegar com a história de Dalva (o achado Nina Medeiros), garotinha que enfrenta a perda da mãe e a ausência psicológica do pai através de sua introspecção e ligação com a magia. Aos poucos, o encontro com elementos que representam a morte começa a formar o julgamento da criança perante sua realidade. E Gabriela Amaral, também roteirista do filme, consegue com esmero representar isso.

Dalva (Nina Medeiros) e sua maturidade forçada e precoce

RIMAS VISUAIS

Desde sua cena inicial, quando uma boneca é desenterrada no quintal da casa onde Dalva vive, rima visual que planta uma pista cuja recompensa se dará no seu extasiante desfecho, a diretora constrói uma análise exata desse citado processo desencadeado pela perda da inocência infantil. Os símbolos são todos inseridos de modo orgânico, como quando a exumação do corpo de sua mãe para liberação do jazigo leva o pai a trazer de volta para casa cabelos e dentes que pertenceram à finada esposa. Cabelos, inclusive, que dão vazão a outra rima visual exata quando vemos na figura diminuta de Dalva um espelho para o que surge no clímax do longa. Como apreciadora do cinema de terror, Gabriela Amaral exibe trechos do citado Cemitério Maldito e de A Volta dos Mortos Vivos, filmes que a pequena Dalva assiste e alimentam seu imaginário de criança. Passo a passo, a criação de uma personalidade ainda mais introspectiva, mas repleta de entendimento do caos familiar que a cerca faz da garotinha alguém atropelada pelo trauma de crescer antes da hora.

TERROR REAL

Na figura do pai, Julio Machado dá a Jorge a presença exata do peso da sua existência tanto como obrigatório mantenedor do sustento do lar quanto na dolorosa rotina que leva para frente na ausência de sua amada. Diariamente subindo a construção como se fosse máquina, para citar a cadência exata de Chico e seu terror proletário, Jorge é mais um símbolo da derrota em seus aspectos mais extenuantes. Pálido e cadavérico, é forçado a dominar seus medos diante do desemprego iminente que representa a sombra a torturar a si mesmo a aos seus colegas de obra. O terror na vida de Jorge assume outras faces além do sobrenatural. Mas é na figura do soldador mascarado que Gabriela Amaral ilustra de modo exato e sombrio o desespero a espreitar o homem. E na tentativa de desanuviar sua ausência como pai bem como suas frustrações como símbolo a ser visto como exemplo, ele força um convívio natural com a filha quando a leva para passear no parque, cena que beira o cômico de tão trágica.

Cena chave a definir o elo inexistente entre pai e filha

Comicidade essa que a cineasta confere de forma sagaz, como na cena do aniversário de Dalva, que, com seu bolo de nome escrito errado e ausência de qualquer traço infantil, denota esse trágico beirando o cômico que já havíamos visto no seu curta de 2012, A Mão que Afaga. Rimos, mas com os dentes trincados. Além deste, é com admiração que percebemos em um dos seus primeiros curtas, Uma Primavera, lá de 2011, um ensaio para essa proposta vinculada à perda da inocência infantil. Após trazer o mal escondido na natureza educada, mas provocada ao limite em O Animal Cordial, a cineasta alcançou em A Sombra do Pai uma maturidade que impressiona. O cinema de gênero brasileiro tem em Gabriela Amaral Almeida sua representante mais engenhosa. Que venham os próximos. Isso, claro, se o terror que toma conta do Brasil permitir.

*Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, dia 05/05/2019

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