sábado, 20 de junho de 2020

Partida | Papo com Caco Ciocler e Georgette Fadel


Viagem Insólita 


Com Partida, cineasta Caco Ciocler traz melancólica, porém, contundente e esperançosa análise do diálogo entre diferentes ideologias políticas 
no rastro da ascensão fascista da eleição de 2018 

Por João Paulo Barreto

Diante da tragédia social e política oriunda da ascensão e vitória nas urnas de uma candidatura calcada no espalhar de notícias falsas, baseada em um discurso de ódio a minorias, de exclusão da Cultura como meio de fomento e desenvolvimento do cidadão, e alimentada pelo uso calculado do fanatismo religioso como meio de angariar votos, o medo e a apreensão de muitas pessoas naquele não tão distante outubro de 2018 eram palpáveis. Tal tragicidade anunciada acabou por ser confirmada de maneira ainda mais pesarosa, uma vez que, menos de dois anos depois, mais de quarenta mil brasileiros e brasileiras (em números oficiais) foram vitimas da irresponsabilidade insanamente calculista de um projeto de governo que prega o descaso e o caos na Saúde Pública do país que finge governar para todos.

No melancólico Partida, o cineasta Caco Ciocler nos transporta para aquele final de 2018 de maneira a nos fazer refletir sobre o que poderíamos ter sido caso fosse outro o resultado daquele trágico dia. Com a tristeza e o choque do domingo no segundo turno da eleição para presidente abrindo sua mescla de documentário e ficção, e com a última semana daquele ano a ilustrar a busca pela compreensão na rotina de seis dias de um grupo de profissionais da arte durante uma utópica viagem de ônibus de São Paulo ao Uruguai na esperança de conhecer o ex-presidente José “Pepe” Mujica, Ciocler traz para Partida a tentativa de um diálogo entre dois possíveis lados da política. Lados que, apesar de contrastantes em ideologias e meios de vida, compartilham, ao menos, um pouco de humanidade. Tal diálogo preside na figura da atriz Georgette Fadel, alguém cuja posição de esquerda se torna uma busca por um modo mais justo de enxergar a sociedade e o mundo como um lugar comum a todos, e o choque de suas profundas ideias com a superficialidade opinativa da direita representada pelo empresário e ator Léo Steinbruch, cujas opiniões se restringem ao sarcasmo e à rasteira e solúvel ojeriza ao PT e aos, em suas palavras, “16 anos no poder sem nada resolver”.

Caco Ciocler dirige Georgette Fadel em cena tensa de Partida
  
FICÇÃO E REALIDADE

Na estrutura de sua direção e captação de seus atores em cena, Ciocler aparece orientando-os a não representar, mas, sim, deixar suas ideias fluírem. O filme, porém, não é totalmente espontâneo em suas falas, tendo, em uma quebra de parede, os momentos de preparação para tais diálogos trazidos à tona ao espectador. Mas isso, importante frisar, não serve como um desencantar do público diante do encontro com algo engendrado em sua construção, mas como uma percepção de como a arte como profissão e a função social daqueles artistas são indissociáveis. Em suas ideias contrastantes, os “personagens interpretados” por Fadel e Steinbruch se opõem ideologicamente, mas são exatamente os dois cidadãos brasileiros que se embatem dentro daquele confinamento sobre os eixos do ônibus a viajar para o Uruguai.

”Esse jogo entre ficção e realidade sempre teve uma intenção que existisse”, explica o diretor Caco Ciocler. “A principio, eu orientei que não deveria haver personagens. Mas é óbvio, e eu digo isso no filme, é óbvio que os personagens naturalmente começarão a aparecer. E é muito interessante ouvir, por exemplo, o Léo Steinbruch dizer, depois dessa experiência, que não sabia mais o que era ele e o que era o personagem. Ele me disse apenas que sabia que tinha que reagir de um jeito que interessasse ao filme, mas que não era exatamente ele ali”, pontua Ciocler que, em Partida, dirige seu segundo longa. 

Georgette em momento de descontração durante a longa viagem

EMBATES

Dentro de um espaço de confinamento que poderia representar naquele contexto a noção de busca por um diálogo comum em um transporte que nos leve adiante, tal qual é o Brasil como lugar onde diversos povos e culturas de diferentes crenças e ideologias precisam coexistir, Partida tem na presença pungente de Georgette Fadel seu diálogo mais pertinente. E isso é dito não por um ponto de vista voltado a uma visão mais vinculada à esquerda em um posicionamento político necessário, mas por se fazer notório e óbvio que, diante da tragédia brasileira iniciada em abril de 2016 e consumada em outubro de 2018, a proposta de uma forma de governo voltada apenas para privilegiados economicamente não é algo mais cabível em um país onde a fome começa novamente a se fazer presente.

“A esquerda e a direita não são dois lados. Para mim, a esquerda é plenamente viva. Eu vejo a esquerda como uma escuta aberta. Eu vejo a verdadeira esquerda como uma possibilidade de se construir um planeta melhor a todo mundo junto, a cada momento. Ou seja, a inclusão plena de tudo e de todos. Já a direita é como uma visão de mundo que pressupõe a felicidade do que? De uma família apenas? Dos iguais? Dos brancos iguais? Não sei. De parte da população como uma tribo que ignora as outras tribos?”, pontua a diferença entre as escolhas políticas e sociais a atriz Georgette Fadel que, apesar da busca pelo diálogo, salienta a dureza do embate entre ela e Léo. “Esse conflito entre eu e ele foi muito cruel durante a viagem toda. Realmente, era impossível que um fosse até o outro, politicamente. Claro que não no nível pessoal. Eu fiquei amiga do Léo. Mas, se formos para o front, eu vou estar de um lado e ele vai estar do outro”, salienta.

Mujica, Fadel e Ciocler em cena central do filme

“PEPE” MUJICA

Em seu desfecho, Partida consegue, mesmo tendo sido concebido em um momento que não imaginávamos a intensidade das trevas nas quais o atual governo empurraria o Brasil, trazer uma reflexão oriunda de uma das mentes políticas mais precisas na necessidade de uma revisão social e econômica de um futuro que urge em ser menos injusto e excludente. No encontro com o ex-presidente José “Pepe” Mujica, em sua última cena, apesar de merecidamente comemorada por todos, o filme de Ciocler nos coloca em um choque de realidade que reflete, naquele dezembro de 2018, precisamente esse atual e tão sombrio 2020.

“No futuro, corremos o perigo de que, com muito dinheiro, os mais ricos poderão comprar anos de vida”, responde Mujica quando questionado acerca dos anos que estão por vir. Isso em dezembro de 2018. Observando o que ocorre hoje, quando acontece um colapso propositalmente planejado e genocida da saúde pública brasileira, quando vivemos há mais de um mês sem um ministro da Saúde e há quase dois anos sem um real presidente da República, é palpável quem e para quem se governa nesse nosso triste Brasil sequestrado pela mentira.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 21/06/2020


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