domingo, 28 de julho de 2019

Eu Não Sou Uma Bruxa


O absurdo como reflexão de uma realidade



Eu Não Sou uma Bruxa traz análise da manipulação 
cultural como meio de manter duras existências estagnadas 


Por João Paulo Barreto

Entre a sagacidade de uma voraz crítica à exploração política, financeira e midiática de uma crença folclórica e quase religiosa atrelada à ignorância alheia e à utilização de um realismo fantástico que caminha de mãos dadas com a brutalidade de um mundo misógino, Eu Não Sou uma Bruxa apresenta sua protagonista, uma garota de nove anos inicialmente sem nome que, acusada de ser uma bruxa, tem à sua frente a imposição da escolha de aceitar tal rótulo ou ser transformada em uma cabra.

Esse é o começo do primeiro longa dirigido pela experiente cineasta Rungano Nyoni. Nascida em Zâmbia, Nyoni tem em seu currículo uma série de curtas metragens, incluindo a co-autoria do soberbo roteiro de The Mass of Men (O Peso dos Homens), filme vencedor do Panorama Internacional Coisa de Cinema em 2013. Trazendo sua lente para reais relatos de acusações de bruxarias ocorridas na mesma Zâmbia, África, a cineasta criou uma potente análise da citada utilização da fé como modo de dominação física e intelectual. Na presença da criança acusada de bruxaria, a noção precisa do início de uma doutrinação baseada na exploração perene de seres humanos.

Shula e sua prisão física e mental dentro de um esquema de manipulação

Levada para viver em uma espécie de campo para bruxas junto a outras mulheres, sendo a maioria composta por idosas (algo que denota tal perenidade) também acusadas, puramente na base do “achismo”, de bruxaria pelas autoridades e cidadãos locais, a pequenina recebe o nome de Shula (algo como “desenraizada”), refletindo, assim, o tratamento hostil que concedem à criança. No local, são obrigadas a trabalhar em lavouras e, exibidas como atração turística, são vitimas do olhar estrangeiro em uma clara alusão à omissão e ao secular estripar da África pela presença do branco. Da mesma maneira, não somente uma observação pontual ao olhar externo, mas, também, uma forma de trazer a denúncia para a exploração desse folclore utilizado como justificativa a condenar tais mulheres a trabalhos braçais em plantações e sem qualquer remuneração. A presença de um oficial do governo conhecido como Sr. Banda (Henry BJ Phiri) que se mantém como guardião de Shula  demonstra bem esse oportunismo atrelado a uma dominação política através da ignorância.

SURREALISMO E TRAGICIDADE

Nyoni, em seu roteiro, insere toques de surrealismo fantástico, quando vemos todas as supostas bruxas presas a carretéis. Com cordas de pano atreladas às suas costas, limitam seus movimentos, mantendo-as presas não somente de maneira física àquela realidade, mas, também, mental.  Na presença da estreante Maggie Mulubwa, com sua expressão observadora e, ao mesmo tempo, desafiante e triste, que se transforma em sorrisos momentâneos e tão carregados de tristeza quanto, a cineasta Rungano Nyoni tem um tesouro que traduz exatamente o peso de seu filme.

O podres poderes e a opressão intelectual em prol do econômico e político

Como Shula, a pequena Maggie traduz sua tragicidade de forma dolorosa, como quando afirma se arrepender de ter escolhido ser uma bruxa ao invés de cabra, ou quando escuta através de um chifre o som de crianças em uma escola. A fotografia, aqui, é de David Gallego, notório diretor de fotografia responsável pelos tons de O Abraço da Serpente, de Ciro Guerra. Uma das cenas que fazem essa presença de Gallego notável é quando Shula se vê dentro de um crânio de um animal, sendo mirada no contemplar de sua realidade trágica por olhares estrangeiros, em um enquadramento preciso de Nyoni a salientar a prisão tanto corpórea quanto intelectual de Shula.

Durante a sessão, alguns risos nervosos surgiam entre os presentes na sala de cinema. Perceber a maneira como tais risadas eram abafadas rapidamente faz o espectador atento refletir sobre a proposta de Nyoni em trazer um tema tão violento, mas sem perder seus toques de reflexão diante do citado surrealismo que remete a contos infantis (o caminhão com os carretéis é um exemplo) ou a proposta de abordar o absurdo daquela situação inserindo momentos diretos de crítica àquele ambiente, como quando Shula é levada a um programa de entrevistas e o apresentador questiona a possibilidade dela não ser uma bruxa, mas, sim, apenas uma criança. A resposta acaba não vindo de ninguém. É o silêncio omisso que refletirá exatamente o trágico da vida de Shula.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 28/07/2019





quarta-feira, 17 de julho de 2019

Inocência Roubada


Sobre meninas e lobos



Autobiográfico e redentor, Inocência Roubada traz brutalidade da pedofilia e seus traumas

Por João Paulo Barreto

Desde sua cena de abertura, quando a atriz, dançarina e cineasta Andréa Bescond baila em um frenesi libertador, a proposta de expurgo de um sofrimento guardado é atrelada ao projeto Inocência Roubada (As Cócegas, no original, tenro e, exatamente por isso, ainda mais assustador título francês) de maneira evidente e sem concessões. Por isso mesmo, trata-se de uma obra cujo impacto no seu público é tão violento. Mas tal violência em momento algum é vista como manipuladora ou artificialmente inserida para chocar. A maneira como Bescond aborda suas próprias experiências traumáticas de vida e as compartilha com sua audiência chama a atenção, sim, pelo modo brutal como a mulher passou sua infância gradativamente destruída, mas é no processo de cura e libertação que reside a força do filme.

Baseado na vida pessoal da própria Andrea, que, durante a infância, sofreu constantes abusos sexuais cometidos por um amigo de seus pais, a história foi originalmente adaptada como um premiado espetáculo musical no qual as performances dos números realizados pela dançarina denotavam o poder que a dança tem no sentido de extravasar toda dor e traumas contidos em sua trajetória. Levar o mesmo tipo de abordagem para uma mídia diferente, no caso, o cinema, corria o risco de banalizar o projeto com uma aproximação dentro de um apelo para o melodrama, como a inserção de uma trilha sonora apelativa ou atuações maniqueístas, por exemplo. No entanto, o que nos é trazido é a representação de um mergulho naquelas experiências de maneira a nos inserir literalmente dentro de suas lembranças. E quando digo literalmente, é justamente isso que acontece.

Odette busca apoio de seus pais na sua superação

LABIRINTOS

Ao apresentar a pequena Odette, seu alter-ego no filme, Andréa nos leva por entre os labirintos de seu trauma. Utilizando uma inteligente montagem que caminha entre as lembranças do passado e o tempo real e presente, colocando o processo terapêutico como guia naquela experiência, Bescond e o co-diretor Eric Métayer (que faz uma pequena participação como o professor de dança de Odette) conduzem o espectador pela mente da mulher, colocando inicialmente suas sequelas em evidência, mas demonstrando a origem de cada uma delas dentro daquele processo de conhecimento, redescobrimento e, esperançosamente, superação. Assim, a condução do seu público diante dos traumas se apresenta gradativa.

Mantendo cenários, elementos e personagens que se misturam entre reminiscências e a realidade, na qual, por exemplo, a imagem de uma porta de banheiro pintada de rosa e com contornos infantis deixa de possuir essa ideia de inocência para denotar um simbolismo amargo, o filme constrói para seu espectador uma constante percepção dos gatilhos que iniciam Odette/Andréa em seu turbilhão emocional. Em outra passagem, a textura e aparência de uma toalha que lhe é estendida antes de entrar em cena a leva aos dias dos abusos e a um extravasar daquele período em apenas uma frase proferida por ela e recebida com surpresa pelos colegas. A dureza com que percebe sua fragilidade a faz pedir desculpas pela franqueza, sendo este talvez o momento de maior impacto da obra justamente por demonstrar sua prisão e vontade de escapar daquele tormento mental.

Um ensaio para a felicidade e para o equilíbrio mental

ESCAPE ONÍRICO

É quando Odette passa a utilizar aqueles artifícios psicológicos como brincadeiras internas em busca de seu conforto intimo, inserindo conversas com psiquiatras e encontro com amigos como fantasias mentais, tudo em busca de um escape, de uma fuga daquela sensação de aprisionamento e angústia. Bescond e Métayer, aliás, ainda conseguem inverter essa expectativa do espectador ao representar a fragilidade de Odette de forma sutil, quando, usando mais uma vez uma sagaz montagem, inserem em um único e breve momento a imagem da criança no meio de um jantar de adultos. Dessa vez, a sua fuga para não concede conforto a Odette.

Deste modo, Inocência Roubada utiliza esse artifício onírico de sua protagonista como uma simultânea desconstrução de seus medos e preparação para a dureza de sua realidade, quando precisa encarar seu tenebroso passado sem a possibilidade de ter aquele esconderijo.

Neste áspero reencontro no qual sua infância lhe é empurrada para o atual presente, qualquer traço de força dentro de Odette se perde. Seu único pilar ainda reside no afetuoso abraço e choro contido no calor paterno, uma vez que, da parte de sua mãe, uma muralha de negação e desprezo diante de seu drama lhe é apresentada. Está, porém, é apenas mais uma pedra na muralha que a aprisionou e da quel, enfim, se liberta.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/07/2019

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Um Homem Fiel



A maturidade alcançada na rotina sem encantos




Em Um Homem Fiel, diretor Louis Garrel traz análise acerca da confiança mútua em relacionamentos


Por João Paulo Barreto

Em seu segundo longa metragem como diretor, Louis Garrel, que também co-escreve o roteiro de Um Homem Fiel, traz boas reflexões acerca das escolhas, arrependimentos e segundas chances que relacionamentos são capazes de nos oferecer. Trata-se não somente de uma comédia de costumes (sem o tom pastelão característico, friso), mas de um filme que, com sutis toques de absurdo em sua proposta, permite ao espectador uma pertinente análise das dúvidas que perpassam mentes inseguras quando confrontadas por tentações ou pelo desencanto da rotina.

Com apenas 75 minutos, Garrel, que também atua, constrói um triangulo amoroso sem julgamentos a gêneros ou privilegiando comportamentos em detrimento do sexo oposto. Assim, concede ao seu público uma observação acerca de três pessoas cujas dúvidas em suas vidas a levam a decisões das quais, sim, podem se arrepender, mas são justamente tais escolhas que as levam à precisa ideia do que seria vida, levando em consideração ansiedades, percalços, paixões e, claro, o aterrador medo da solidão. Claro que o olhar externo nos dá uma segurança de análise, afinal, não vivemos exatamente as mesmas angústias daqueles indivíduos, mas a identificação com aqueles mesmos erros é o que torna Um Homem Fiel um filme tão cativante em seu desenvolvimento.

Abel e seu reencontro com Marianne: mágoas passadas 

TENTATIVA E ERRO?

É deste modo que conhecemos Marianne, Abel e Eve, o triangulo em questão. Quando Marianne decide terminar sua relação por se encontrar grávida de um amigo em comum com quem tem um caso, a saída de Abel da sua vida é bem direta, trazendo a percepção de um diálogo de abertura que prima pela naturalidade e adequação a uma situação que deve, de fato, ser lidada daquele modo pragmático, mesmo que um tanto absurdo e incomum. Mas a descrição como absurda, citada anteriormente, só é colocada em análise a partir do momento em que se esperaria uma reação mais enérgica do rapaz traído. Porém, o acerto aqui reside justamente nesse choque contido, nessa ideia de que o racional deve prevalecer. A ironia do seu título, inclusive, se apresenta logo de cara, quando Abel deixa o apartamento de Marianne para passar a noite com uma garota que, em suas próprias palavras, “já havia esquecido no dia seguinte”. E é precisamente essa a ideia de vida e erros atrelados a ela que citei anteriormente.

No reencontro com Marianne, nove anos depois e dentro de um momento trágico, um novo envolvimento amoroso acontece, mas com o peso de uma maturidade que acaba sendo inserida de maneira bastante orgânica. É aqui que se encontra o principal ponto de reflexão trazido pela obra. No surgimento da jovem Ève, que se revela apaixonada por Abel desde sua infância, e que, finalmente, consuma seu desejo pelo rapaz, uma reflexão sobre a citada perda do deslumbramento diante do encarar de uma certeza que parecia tão plena, mas que tem na rotina e no amadurecimento sua principal derrocada. “Costumava pensar nele quando estava com outros rapazes. Agora que estou com ele, em quem posso pensar?”, reflete a bela Ève.

Ève e sua realização amorosa com Abel: desencanto da rotina

A segurança de amar primeiramente a si mesmo é o que se revela como principal proposta de reflexão no roteiro de Garrel.  Na personagem de Marianne, vivida por uma Laetitia Casta em um estado de maturidade que contrasta precisamente com o calor da juventude que a Ève de Lily-Rose Depp traz, vemos a precisa ideia de parcimônia e ausência de impulsividade que somente o tempo lhe concede. Ao aceitar a reconstrução de um relacionamento que em qualquer outro contexto já teria sido deixado para trás, a mulher entende que, dentro daquela situação, não há julgamentos ou hipocrisia, afinal, ela mesma cometera erros com Abel no passado e teve oportunidades de corrigi-los. Aqui, apenas mais uma oportunidade de fazer a mesma correção e seguir em frente. Se na vida real fosse tão fácil quanto na ficção...

* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/07/2019