segunda-feira, 25 de março de 2019

Um Ato de Esperança



Emma Thompson entrega atuação primorosa ao viver juíza que luta contra o próprio pragmatismo

Embate ente razão e sensibilidade em Um Ato de Esperança


Por João Paulo Barreto


O pragmatismo versus o emocional é o que move Um Ato de Esperança, novo filme de Richard Eyre (diretor do marcante Iris, com Judi Dench). Emma Thompson vive Fiona Maye, uma personagem extremamente racional, de pensamento prático e atitudes calculadas como sua profissão de juíza exige. Observá-la em suas análises jurídicas, focada na leitura de autos enquanto advogados lhe conferem informações que ela escuta e analisa simultaneamente, e,  de imediato, muitas vezes censurando colegas pelos seus erros que ela corrige, é perceber como o domínio de seu campo de trabalho lhe é total e prioritário. De fala rápida, expressa apenas o necessário para se fazer compreendida, como quando dá instruções ao seu assistente ao telefone e desliga no meio da ligação quando já lhe passou suas ordens.

Essa concentração e foco, entretanto, não se evidenciam em sua vida conjugal. Casada há vinte anos, recebe queixas de seu marido (Stanley Tucci) por não ter a mesma dedicação com a vida a dois. Nesse momento, Eyre cria uma comparação precisa ao mostrá-la não escutando o marido falar, pois está a escrever sobre um julgamento no qual trabalha, quando o mesmo foco dividido, porém total, pode ser constatado quando quem fala com ela refere-se a assuntos de trabalho. O roteiro de Ian McEwan, também autor do livro que deu origem ao filme, cria pontes eficientes de comparação destes aspectos da vida de sua protagonista, que evita criar intimidades maiores até mesmo em conversas informais, como quando interrompe seu assistente quando este falava acerca de seu final de semana.

Ambos pragmáticos em suas crenças

PRAGMATISMO DESCONSTRUÍDO

Aos poucos, McEwan desconstrói sua protagonista ao inserir sinais de uma personalidade que, sim, é capaz de se deixar levar pelo emocional, como quando a vemos tocar o piano que a faz relembrar o momento em que este lhe foi presenteado, ou quando resolve conhecer um jovem paciente que sofre de leucemia e cujo dogma religioso como testemunha de Jeová o impede de receber transfusões de sangue se tornou um debate judicial que caberá à juíza decidir. Após diversos casos de vida ou morte que ela teve sob sua responsabilidade, este lhe dá o ímpeto de conversar com aquele rapaz obstinado que acredita no ensinamento religioso mesmo que sua vida se torne algo em jogo dentro daquele impasse. Neste ponto, o filme acerta ao não partir para uma abordagem denunciatória dentro de um contexto de fé versus razão, preferindo focar na personalidade obstinada, mas contraditoriamente frágil e repleta de dúvidas de Adam (FionnWhitehead), que passa a enxergar na figura da juíza uma influência que o tirou da inércia religiosa de seus pais.

Nesta escolha, uma suposta fragilidade do roteiro ao inserir um tema tão profundo que se desvencilha tão facilmente (sim, o garoto acaba por receber a transfusão) se justifica por percebermos como a ingenuidade do adolescente é evidente. E Fionn Whitehead, que dá a Adam um olhar perdido, fala insegura e carência à flor da pele, acerta ao construir seu personagem em uma mescla de rebeldia e total deslumbre por aquela figura que chama de “my lady”, que, mesmo sendo um tratamento formal jurídico, quando dito pelo rapaz, fica evidente tal deslumbramento romântico. E esse desvencilhar dos dogmas perante o racional concede a Adam algo que Fiona acaba trazendo para si. Ao tocar o violão no leito do hospital, a juíza acompanha os versos do poeta Yeats que o rapaz dedilha e aquele desvencilhar acaba sendo algo que embala ambos.

Sem idealizações românticas semelhantes às de Adam, o roteiro de Ian McEwan acerta ao dar ao espectador uma análise de como duas mentes fieis a comportamentos pragmáticos e, em relação ao adolescente, idiossincrático em uma linha que beira o absurdo, podem aprender uma com a outra. No caso de Fiona, dentro desse seu pragmatismo, permitindo que a magistrada pudesse se envolver emocionalmente trazendo para si uma reflexão acerca da própria vida sem emoções. No caso do jovem rapaz, por permitir, ainda que brevemente, pudesse experimentar em vida um horizonte mais amplo que o da Bíblia que o aprisionou.     

Em seu título original, aliás, The Children Act (algo como “o ato infantil”), o filme de Richard Eyre denota exatamente a proposta de seu roteiro, algo que, no título nacional, acaba por levar o espectador para uma premissa de dramalhão choroso que não faz jus ao eficiente resultado que a obra traz. Principalmente no que tange ao seu final repleto de reflexão e desesperança.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 25/03/2019


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