Sequências de
Guerra

traz abordagem profunda e fatos reais do Brasil no conflito, bem como liberdade
para um viés calcado no fantástico
Por João Paulo Barreto
Dentro dos quadrinhos voltados para um público não infantil,
o tema das guerras e suas consequências físicas e psicológicas nos seres
humanos sempre foi um terreno
incrivelmente fértil para abordagens mais densas e desafiadoras. Tais desafios de
narrativas chegam tanto a desenhistas quanto a roteiristas, inclusive. Pensar
em obras como Persépolis, Ás Inimigo,
Maus, Leões de Bagdá, O Árabe do Futuro, Crônicas de Jerusalém, para citar
algumas, nos dá uma confirmação de como a insanidade dos conflitos bélicos,
além de suas consequências monstruosas, podem gerar obras de reflexões urgentes,
e que, muitas vezes, são oriundas das próprias vivências dos artistas por trás
da criação daquelas páginas. Em outras, o estudo aprofundado e a fidelidade às
pesquisas de fatos em torno do período histórico rendem narrativas que,
baseadas em fatos real, trazem ao leitor uma imersão dentro daqueles dias
sombrios. Do mesmo modo, a liberdade criativa e imaginativa de desenhistas e
roteiristas podem mesclar aquelas realidades a situações em que o fantástico
oferece resultados catárticos e recompensas narrativas que preencham as
imersões destes mesmos leitores.


Arquivos Secretos da Segunda Guerra Mundial é um exemplo desse tipo de proposta. Com 160 páginas, o quadrinho lançado pela Editora Draco alcançou mais de 300% de sua meta de financiamento coletivo, permitindo, assim, a editora investir em um acabamento de qualidade, imprimir e lançar o material no mercado. Dentre as histórias na coletânea, Ligeiro, desenhada pelo artista baiano, Ademir Leal, e roteirizada por Celso Menezes, aborda a participação brasileira na Segunda Guerra durante as missões dos pracinhas na Itália fascista de Mussolini. "Como apreciador de temas militares, venho estudando sempre sobre os fatos e histórias da FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra Mundial com historiadores, tendo meu próprio acervo digital contendo imagens de armamentos, uniformes, mapas, livros e datas de conflitos. Com isso, facilitou a elaboração da HQ Ligeiro usando essas referências, tornando-se prazerosa em fazer e estruturar o contexto com o roteiro, e entregar o projeto conforme Celso e Raphael (Fernandes, editor) esperavam", explica Ademir acerca do processo de junção do texto escrito por Celso com sua arte.


Ainda no quesito da criação textual e casamento com imagens, o roteirista Celso Menezes já vem de experiências prévias na abordagem acerca da Segunda Guerra. Autor de Jambocks!,quadrinho lançado há dez anos e que traz uma abordagem voltada para a Força Aérea Brasileira, Celso trouxe para a escrita de Ligeiro essa experiência alcançada durante suas entrevistas e pesquisas. "Quando pesquisei para o Jambocks!, reuni material para uns dez livros, pelo menos. Quando o Raphael (Fernandes, editor) fez a proposta, não demorou muito para eu me lembrar de algo que tivesse achado interessante. Cada cena e personagem foram baseados em algo ou alguém que existiu. Eu só adaptei para as vinte páginas. Sobre os layouts, eu tento deixar o artista livre para explorar seu talento como narrador visual. Às vezes, eu detalho uma cena para uma melhor compreensão, mas, no geral, eu tento deixar algumas lacunas para serem exploradas pelo desenhista. E, assim como foi com o Felipe Massafera, em Jambocks!, toda colaboração do Ademir engrandeceu o resultado. Cada vez que chegava uma página, eu notava como ele é um artista nato", elogia Celso.
Dono de um traço realista, Ademir Leal cita diversos nomes centrais que o influenciaram no desenvolvimento de um talento impressionante para o desenho gráfico. "Sempre fui apaixonado pela arte do realismo, no estilo de pintura barroco de Caravaggio, dos artistas mais atuais como Norman Rockewell, Frank Frazetta e quadrinistas como Alex Ross, Stuart Immonen, Olivier Coipel e Riccardo Federici. Tenho me inspirado nesses artistas e em vários outros", explica. Do mesmo modo que diversos desses nomes, Ademir também começou a treinar seu traço artístico ainda na infância, tendo a disciplina e o foco como direcionamentos. "Sou autodidata. Comecei a desenhar desde os 4 anos de idade, e sempre tive em mente de que queria seguir nessa área como profissional. Há 15 anos, não imaginaria que estaria voltado para área digital, quadrinhos e gráficos. Meus planos eram trabalhar como retratista e pintura em tela. Mas, hoje, trabalho com tudo. Sempre estudo tudo que é voltado para artes, seja tradicional ou digital", explica o desenhista.

Página de abertura da história Ligeiro
GUERRA ATUAL
Em um tema tão importante quanto o resgate da História, principalmente em um 2020 no qual somos governados por pretensos autoritários que carregam em seus discursos ações que rimam com um neofascismo centrado no espalhar de informações falsas, falar da Segunda Guerra Mundial, mesmo através dos quadrinhos, é um modo de salientar ações de luta contra esse mesmo fascismo que baseou atuais correntes políticas extremistas. Celso Menezes aborda essa ideia de preservação histórica a partir de sua pesquisa. "Apesar do trabalho de resgate e conservação da memória e patrimônio histórico no Brasil serem uma vergonha desde sempre, há um vasto material produzido através de conversas com veteranos. Tive a felicidade de entrevistar alguns da FAB (Força Aérea Brasileira) e isso enriqueceu muito a minha pesquisa", explica Celso.
Do mesmo modo, a abordagem da escrita perante os acontecimentos trágicos em uma guerra é algo que se torna uma marca do tipo de história. Porém, a abordagem de soldados brasileiros diferencia Ligeiro de outros quadrinhos. "As estruturas dos acontecimentos e dramas já foram muito exploradas. O medo de morrer, o temor de matar, o frio, a lama, a fome, os colegas sendo mortos... tudo isso é meio universal numa guerra. O que eu acho que diferencia o brasileiro é um certo senso de humor e capacidade de adaptação a dificuldades. Em Ligeiro, eu tento passar um pouco disso. Apesar da situação tensa que os personagens estão passando, sempre há um espaço para o inusitado", finaliza Celso Menezes.
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