domingo, 29 de dezembro de 2019

Cats


O público como gato escaldado


Constrangedor visual e dramaticamente, adaptação do musical Cats 
para as telas te dá vontade de ver a peça teatral

Por João Paulo Barreto


Qual a ideia de resultado plausível no que se refere a efeitos visuais que um filme quer transmitir (ou quiçá alcançar) quando coloca todo o seu elenco formado tanto por rostos conhecidos quanto por quase anônimos dentro de um artifício cujo resultado aplicativos de câmeras de celular conseguem construir melhor do que o exibido nos cinemas?

Dirigido por Tom Hopper e estrelado por diversos desses rostos, Cats, a adaptação para a telona do bem sucedido musical de teatro escrito por Andrew Lloyd Weber em 1981, nos faz sair do cinema com essa pergunta na cabeça. Não somente pela estranheza que cada uma das cenas leva à mente do espectador por conta de aspecto visual de sobreposição tosca de pelos de gato em rosto de atores, mas, também, por esse fato trazer a noção exata do quão não adaptável para o cinema aquela peça teatral é.

E tal estranheza não é apenas uma questão de gosto pessoal diante das imagens vistas. Em termos de utilizar o “estranho” e o “tosco” como atributos cinematográficos, nomes como o de Tim Burton, por exemplo, já fazem isso há muito tempo e encantam com resultados muito melhores que os de Hopper aqui. Não. O que acontece com Cats é justamente a ideia de tentar disfarçar através de sua não maquiagem uma proposta de live-action que simplesmente diminui qualquer impacto dramático que seu elenco (muito esforçadamente, saliento) tenta trazer à tona.

Aquele efeito básico de aplicativo engraçadinho de celular

BARATAS DANÇARINAS

Diferente da adaptação realizada em 1998, quando a própria peça teatral foi transposta para um projeto filmado pelo diretor David Mallet, com a presença de diversos atores que se juntaram ao elenco de bailarinos, a versão Cats de 2019 deixa de possuir qualquer razão em sua existência justamente por levar ao seu público a reflexão de que tal experiência, se vista em um palco de teatro, possivelmente alcançaria melhores resultados do que a que temos na sala de cinema.

Na história, a gata abandonada Victoria (Fancesca Hayward) encontra um grupo de gatos de rua que vivem no bando dos jellicle, felinos dançarinos e cantores liderados por Old Deuteronomy (Judi Dench) e que têm na boêmia e na glória dos velhos tempos representados por figuras como Gus - O Gato Teatral (Ian McKellen) e Bustopher Jones (James Corden) suas rotinas de ode à nostalgia.

As baratas dançarinas: constrangedor 

De número musical em número musical, vamos sendo apresentados a diversos personagens felinos e suas personalidades. A melhor delas está em James Corden, que sabe usar bem sua presença física rechonchuda como meio de comédia, e em Ian McKellen, que consegue, mesmo com seu rosto felino, trazer peso para a melancolia de seu personagem cujos dias de brilho desvanecem.

Mas o que fica na memória, de fato, são os momentos de constrangimento alheio, como quando um grupo de ratos e baratas humanóides dançam (e são degustadas) para a gata vivida por Rebel Wilson. É neste ponto em que o público, diante daquela tentativa preguiçosa de se fazer comédia, percebe o desastre daquele projeto e seu fracasso ao tentar empreender qualquer gag visual que cause alguma graça.

E desanima ver o esforço gigante (e não recompensado) de uma atriz e cantora de tamanho talento quanto Jennifer Hudson, que até tenta inserir peso em sua personagem combalida pela rejeição e fracasso, mas acaba por perder-se em uma expressão constante de tristeza que se embaça no efeito felino de seu rosto. Ao menos na sua voz marcante durante o número musical, um vislumbre desse talento.

Mas aí já é tarde demais. A lembrança das baratas humanóides cantando, dançando e alimentando gatos já nos marcou.

*Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, dia 30/12/2019

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Playmobil - O Filme


Desbravando a Imaginação Infantil


Ao dar vida aos bonequinhos que ilustraram brincadeiras de várias gerações, Playmobil – O Filme diverte com bom timing cômico e reverência aos musicais Disney

Por João Paulo Barreto

Desde que o primeiro filme para cinema tendo os brinquedos Lego como tema surgiu em 2014 (para TV, as produções são anteriores), foi perceptível o filão que a Warner Bros. tinha em mãos. Ao utilizar uma marca de bonequinhos de montar conhecida mundialmente, metade do caminho em relação a apresentar uma nova franquia de sucesso para crianças e adolescentes (adultos, também, convenhamos) do século XXI, abastecidas desde sempre com tais brinquedos, já estava andado. Faltava apenas conceder personalidades cômicas aos seus personagens, utilizar vozes hilárias, uma história que explorasse seus diversos mundos e pronto. Lá estava um sucesso que gerou grana, continuações e outros filmes temáticos a explorar seus personagens (como o próprio Batman, cuja licença já é da Warner).

Assim, não tardaria muito para que outro brinquedo clássico que estimula imaginações de crianças há décadas seguisse ideia semelhante e chegasse às telas de cinema com uma história que visita seus diversos mundos, traz várias referências à cinefilia e à cultura pop como um todo e, reconheço, se sai bem na função de divertir adultos e, possivelmente, crianças. A criança que ainda mora em mim (piegas, eu sei) se divertiu, ao menos. Playmobil – O Filme segue exatamente essa cartilha de preencher 100 minutos com as várias possibilidades de imaginação que muitos pequeninos tiveram ao crescer em contato com os pouco articulados bonequinhos e seus vários cenários criados para catapultar vendas.

Personagens em busca 

O diretor estadunidense, Lino DiSalvo, experiente animador oriundo do Walt Disney Studios, em entrevista para  A Tarde, afirma que, ter um tema que reside na imaginação de diversas crianças e adultos há tanto tempo, foi algo que o desafiou na possibilidade de dar vida a um brinquedo notório por uma expressão única e uma limitação em seus movimentos. No entanto, encontrou um bom artifício.

“Playmobil é um tipo de brinquedo que você tem originalmente na vida real. Conhecemos sua expressão única. Por isso, foi  uma decisão na animação fazer os olhos dos Playmobils de uma maneira mais expressiva. Assim, eu poderia conseguir "atuações" maiores e expressar emoções de maneira mais ampla. No filme, muitas das expressões que você vê foram criadas em desenhos à mão. A minha parte preferida da animação é a atuação”, explica DiSalvo.

Diretor Lino DiSalvo

DIVERSOS MUNDOS

Com esse detalhe das expressões dos bonequinhos resolvido, mas ainda mantendo a marca das carinhas sorridentes como algo contínuo, caberia ao diretor e seus roteiristas utilizarem a proposta de visitar os muitos mundos que os cenários de Playmobil oferecem para criar uma narrativa fluída e que se aproveitasse bem dessa já estabelecida premissa de vários ambientes.

Na história, Charlie e Marla, dois órfãos vividos por Gabriel Bateman e Anya Taylor-Joy (que precisa criar o irmão caçula rebelde) são transportados para o mundo dos Playmobils, onde encontram diversos personagens, em especial um grupo de selvagens que acaba sequestrando Gabriel (agora transformado em um Viking). Na busca pelo irmão, os tais mundos são visitados por Marla, o que acaba servindo para DiSalvo inserir vários temas, o que vai desde as batalhas campais que remetem a Coração Valente a lutas em arenas lembrando obras como Gladiador.

Entre todos estes, porém, o que mais diverte é um breve mundo do velho oeste onde inicialmente vai parar Marla. Com inserções a referenciar o faroeste espaguete de Sergio Leone (lembrando das raízes italianas de Lino DiSalvo), essa passagem tem nos close-ups clássicos e em sua reverencial trilha uma momento de regozijo para os adultos fãs do Western na sessão a acompanhar os filhos.

Homage a Sergio Leone

MÚSICAS E ATORES REAIS

Lino DiSalvo traz para seu primeiro longa metragem como diretor uma vasta experiência na animação. Porém, para ele, a direção de atores de verdade, em cenas que não fossem animadas (popularmente conhecidas como live-action), foi uma experiência que lhe deu um pouco de medo.

“Para mim, dirigir pessoas de verdade, sendo que eu venho de uma carreira ligada unicamente à animação, foi algo muito assustador (risos). Quando você desenha algo e faz a animação, você tem o controle sobre aquelas expressões. Você pode, por exemplo, apagar uma sobrancelha e a ajustar melhor. Mas, claro, quando há uma pessoa atuando e você dirige, quem detém esse poder é ela,“ explica o diretor entre sorrisos. O diretor resume sua atividade como diretor de atores reais: “Meu trabalho no set era que, emocionalmente os atores estivessem no lugar preciso ,” explica DiSalvo.

Playmobil utiliza, ainda, uma ferramenta narrativa em seu desenvolvimento que remete aos clássicos Disney (mesmo que tenha sido deixada acertadamente de lado em filmes como os da Pixar e Dreamworks). Trata-se dos números musicais no desenvolvimento de seus personagens. Um tanto cansativo em alguns momentos, mesmo tendo essa ideia de homenagem pregada pelo cineasta.

“Eu amo a ideia vinda do cinema clássico em que um personagem consegue se expressar através de uma música. Eu me lembro de, quando criança, ver estas animações musicadas e cada parte delas era algo muito especial. Honrar esse tipo de cinema representa muito para mim”, finaliza Lino.

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 23/12/2019




sábado, 21 de dezembro de 2019

Star Wars - A Ascensão Skywalker



O Declínio Imperialista

Apesar de previsível em suas reviravoltas, novo Star Wars encerra com boa reflexão político-social, emoção e espetáculo visual a trilogia Jedi dessa década

Por João Paulo Barreto

Após dois filmes nos quais a emoção do reencontro com velhos personagens, bem como com elementos pilares da clássica trilogia Star Wars, se sobrepunha dentro da trama em termos de impacto junto às audiências compostas tanto por fãs fervorosos como por apenas apreciadores de ficção espacial e da saga criada por George Lucas, o fechamento da nova série de longas iniciada em 2015 sob a batuta de J.J. Abrams retorna à essência original da ideia de Guerra nas Estrelas como um contexto prioritariamente da luta de classes por sobrevivência.

Sim, basicamente, neste último capítulo da terceira trilogia, o que se propõe é colocar em evidência a ideia precisa de uma resistência indo contra um opressor (ou ideia opressora) que retorna gradativamente à sua força de dominação, tentando espalhar seu poder (ou influência) através da violência (ou de ofertas falsamente promissoras que, ao final, só beneficiarão os seus), mas que bate de frente com a união de pessoas cientes que aquele mal não pode retornar das trevas.

Sim, qualquer semelhança com a realidade, infelizmente, não é mera coincidência e, ainda mais infelizmente, aqui, na nossa galáxia do real, o Lado Sombrio da Força está vencendo. E, sim. É exatamente isso. Tomei a liberdade de salientar um contexto político brasileiro nessa crítica. Nunca é demais lembrar-se do abismo do nosso próprio “Dark Side” e pretenso “Império”.

Rey e seu momento da verdade no despertar de sua Força

UNIÃO FAZ A FORÇA

Por este caminho, é bastante pontual que em seu tomo de encerramento, a trilogia volte à premissa original do clássico de 1977, colocando como argumento central a batalha pela sobrevivência de diversos povos unidos por um ideal de vida e contra a dominação armamentícia e econômica de um Império capaz de destruir todo um planeta com o fugaz apertar de um canhão.  Neste intento, a salvação reside na jovem padawan Ray (Daisy Ridley), que segue seu treinamento Jedi dessa vez sob a batuta da general Leia Organa (Carrie Fisher), irmã de seu antigo mestre, o falecido Luke Skywalker (Mark Hamil).

No reencontro com atormentado e dúbio vilão Kylo Ren (Adam Driver), mais do que uma simples dicotomia entre os símbolos do bem e do mal é trazida pelo filme de J.J. Abrams. Aqui, encontramos o personagem do rapaz corrompido desde a infância pelas ideias maléficas daquele lado obscuro citado acima, que acaba por se tornar um patricida, mas que, gradativamente, percebe o grau da manipulação que sofreu (o que não o redime de seu crime, pontuo). Lá, a jovem conhecida como catadora de sucata, mas que se nota possuidora de um poder Jedi que, neste episódio, percebemos esconder muito mais do que o “simples” equilíbrio da Força.

Na união das duas forças manipuladas pela tentação do Lado Sombrio, exatamente o que é necessário para suprir de energia renovada tal símbolo maléfico representado pelo retorno do Império. O que vemos a seguir, porém, é o acordar de uma autopercepção: a de que a força para destruir aquele mal residia na própria jovem. Intocada, Imperceptível. Bastava a sapiência de notá-la e usá-la de maneira perspicaz. Ok, não é necessário ligar os pontos aqui para compreender o simbolismo de Star Wars - ­ A Ascensão Skywalker em tempos tão sombrios e de levantar de forças obscuras em todo planeta Terra.

Eterna princesa Leia (Carrie Fisher): despedida 

FÓRMULA VS ESPETÁCULO VISUAL

Apesar de sua estrutura previsível de reviravoltas no que tange às batalhas espaciais, o encerramento da franquia pelas mãos J.J. Abrams (um declarado aficionado pelo universo Star Wars), faz jus a um objeto de culto de diversos fã radicais, que, óbvio, torcerão o nariz do mesmo modo como fizeram para muitas coisas vistas nos dois primeiros filmes. Porém, mesmo com seus perceptíveis problemas dentro dessa previsibilidade em seu desfecho, como resolução para a saga reiniciada há quatro anos, este último capítulo entrega visualmente os melhores momentos dos três filmes que integram a trilogia.

As lutas entre Rey e Kylo Ren em um oceano revolto, por exemplo, ou o momento em que certo personagem retorna para um emocional reencontro, compõem um belo cenário para um encerramento de peso.  Além disso, vale salientar o impacto do momento em que o elmo de Vader, como a representar todo um falho e vilanesco Império, é derrubado por um golpe de ambos, Kylo Ren e Rey, trazendo mais uma eficiente metáfora para a união daqueles dois pólos da Força contra um mal maior.

E quando um filme consegue te emocionar a partir do choro doloroso de um wookiee diante da perda de um dos personagens pilares daquele universo, bom, seu intento principal conseguiu ser alcançado. E isso em uma obra que lhe impede, mesmo dentro de um universo tão fantasioso, não esquecer, para o bem ou para o mal, do Lado Sombrio que está na realidade do lado de fora da sala de cinema.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 21/12/2019



sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Crime sem Saída


Caminhos Perigosos, Pontes Fechadas


Claustrofóbico e intenso em sua violência, Crime sem Saída, apesar do genérico nome nacional, reflete bem a metáfora das 21 Pontes fechadas do seu título original   


Por João Paulo Barreto

Há um frenesi constante nos 99 minutos de Crime sem Saída (título nacional genérico e preguiçoso que quebra o impacto e a metáfora de seu original, 21 Pontes) que colabora com precisão na criação de uma claustrofobia para seus personagens e, por consequência, para o seu público.

Na história da busca pela captura de dois suspeitos de assassinar oito policiais durante um roubo de drogas, e deixar a cena do crime com 50 quilos de cocaína, essa construção de uma atmosfera claustrofóbica, curiosamente, reflete não em um único local fechado como ponto de partida, mas, sim, toda a ilha de Manhattan. E tal ambientação, construída a partir da busca frenética de um policial honesto dentro de um ninho de ratos corruptos e fardados, alcança este intento não somente com enquadramentos e cenários sufocantes nas suas cenas de tiroteios, mas, de maneira inversa, também nas várias imagens aéreas da cidade de Nova York e das 21 pontes do rio Hudson, fechadas para impedir a fuga dos suspeitos.

Chadwick Boseman, notório ator que interpretou o Pantera Negra nos filmes da Marvel Studios, desenha com precisão a pressão sofrida por seu protagonista, o detetive Andre Davis, dentro daquela rede de corrupção e morte que gradativamente vai se estendendo como cenário para sua busca pelos dois supostos assassinos. Com uma conturbada herança familiar, o filho de um também policial famoso por sua competência, porém morto violentamente em ação, Andre segue os passos do pai dentro de um universo no qual sua sombra e lenda pesam-lhe nos ombros.

Boseman no papel do detetive Andre Davis: peso diante da lenda do pai

PONTES METAFÓRICAS
Aprofundando a trajetória dos dois supostos antagonistas que cometem os crimes (vividos por Stephen James e Taylor Kitsch) com peso semelhante ao que desenvolve o drama do próprio Andre Davis, Crime sem Saída concede uma reflexão acerca dos dois lados daquela trajetória de violência. A mesma violência que massacrou a infância de Andre, mas que, com o guia certo, pôde ser colocado nos trilhos da justiça, foi a que mutilou a família do jovem Michael, fazendo-o ceder a um impulso que, sem o mesmo tipo de guia e direcionado pela fúria constante da não aceitação, o levou para um caminho tortuoso cujo final refletiu em uma tragicidade.

Em seu título original, 21 Pontes, uma pertinente metáfora para tal construção dos personagens em fuga é construída. Ao desenvolver o personagem de Stephen James como um jovem de infância conturbada pela perda do irmão mais velho na guerra do Afeganistão e a tentativa desastrosa de seguir seus passos nas forças armadas, o filme tem no fechamento das pontes de Manhattan para impedir sua fuga, uma rima precisa para todos os caminhos que foram fechados na vida do jovem Michael.

Stephen James, que já havia brilhado em Raça e Se a Rua Beale Falasse, traz em seu olhar perdido durante seus tropeços criminosos, mas obstinado ao perceber o quão profundo é o abismo de corrupção miliciana em que se afunda, um peso essencial para a tragicidade de seu personagem.

Stephen James em sua simbólica cena

REALIDADES DISTINTAS
Nesse paralelo que a obra desenha, exibindo duas vidas oriundas de tragicidades semelhantes, mas escapando por diferentes caminhos, o filme constrói essa relação entre as existências conturbadas de suas duas figuras centrais. Michael, em seu desespero por perceber-se levado em um turbilhão do qual perdera qualquer controle, encontra pragmatismo e um pouco de fé na para encarar os olhos do seu talvez algoz, Andre.

A cena em questão coloca os dois homens cara a cara em um vagão de trem, em mais um dos símbolos da claustrofobia oferecida pelo diretor Brian Kirk (conhecido pela direção de alguns episódios de Game of Thrones). O momento põe os dois personagens apontando armas simultâneas entre si. Dois extremos de uma mesma origem de violência. Dois homens negros em desesperos semelhantes e, gradativamente, vitimas caçadas pelos mesmos algozes.

Em sua conclusão, a cena insere um terceiro personagem. Branco. Corrupto. Assassino. Manipulador. Como um símbolo vergonhoso para uma suposta justificativa para os atos de corrupção, o diálogo que fecha o filme traz uma ótima oportunidade para observar como funciona a deturpação de um sistema de segurança falido moralmente, onde policiais oprimem através do medo, impondo não autoridade, mas, sim, terror. Vindo de um país como os Estados Unidos, a mensagem contida em um filme de rótulo de ação é muito bem vinda à reflexão.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde dia 13/12/2019

domingo, 8 de dezembro de 2019

Western Stars


A Plenitude de um Mestre 


Mescla de documentário e performance ao vivo, Western Stars nos presenteia com um Bruce Springsteen, aos 70 anos, completo em sua sabedoria e talento


Por João Paulo Barreto

Há uma introspecção oferecida por Western Stars, mescla de documentário intimista e performance ao vivo de Bruce Springsteen, que alcança indivíduos além dos seus ávidos fãs que devem comparecer ao cinema para conferir tal experiência. O que Western Stars oferece ao espectador atento para essa pérola em cartaz no Circuito Sala de Arte é uma reflexão acerca da vida em sua completude. Acerca de erros cometidos em uma trajetória e acerca da necessidade de se perdoar no que tange a tais erros. Mas, sobretudo, Western Stars é sobre envelhecer com uma consciência tranquila e uma serenidade que possa lhe dar paz. Independente dos percalços que aquela sua trajetória lhe trouxe, o que esta obra pode lhe oferecer como ser humano, e isso não necessariamente exige uma familiaridade sua com a biografia do boss, é uma redenção intima e uma reflexão sobre o seu próprio envelhecer.

Ler isso pode soar romantizado e idiossincrático, mas a obra de Bruce Springsteen, que completou 70 anos de idade esse ano, dialoga com as pessoas de maneira singular, trazendo reflexos da experiência de uma trajetória com a qual muitos podem se identificar. Lutar contra os próprios demônios, angústias e apreensões é algo que aflige a muitos. É o meu caso. É o caso de muitas pessoas que seguem em frente em tempos tão estranhos e sombrios. Ter a capacidade para reconhecer e valorizar a arte e o poder de um compositor como ele, a força de sua escrita para alcançar um conforto pessoal mínimo, é algo deveras importante para quem se interessa por música como uma força de reflexão.

Bruce aos 70: a serenidade que a longa e sinuosa estrada trouxe

CARISMA E DIÁLOGO

Com um artista notório por seu carisma e criações capazes de dialogar com um público de diversas classes sociais e etnias, podemos encontrar um conforto em letras que abordam desde paixões amorosas (correspondidas ou não, como é o caso de Bobby Jean); dificuldades de uma vida de sufocos financeiros e sonhos despedaçados (The River); superação dessas mesmas dificuldades (Better Days); nostalgia de um tempo bem vivido, mas só reconhecido tardiamente (Glory Days); peso de uma pátria exploradora e corruptamente bélica (Born in the USA); denúncia contra a fascista brutalidade da polícia (American Skin – 41 Shots), além de um (entre vários) hinos do azarado em busca da própria estrela, como é o caso de Born to Run. Bruce Springsteen é aquele tipo de ídolo que, independente do mesmo trazer um som que lhe agrade, suas letras, em algum momento, vão falar diretamente aos seus ouvidos. Basta ficar atento(a).

ENTREGA PESSOAL

Em Western Stars, o boss revisita lembranças de sua vida, aborda seu envelhecimento, sua relação com a esposa Patti Scialfa, e concede ao público um presente especial: um show com o novo álbum homônimo tocado na integra direto de seu secular celeiro, em uma atmosfera brilhante, e acompanhado por uma orquestra com trinta integrantes. Nas faixas do disco, mais um documento da sinceridade e honestidade de um artista pleno, que não esconde os próprios tormentos, preferindo compartilhá-los, distante de qualquer auto-piedade, na busca do evoluir além deles. “É fácil se perder de si ou nunca encontrar a si mesmo. Quanto mais velho você fica, mais pesado aquela bagagem que você carrega e que não superou fica. É quando você foge. E eu cometi muito desse tipo de fuga ”, afirma Bruce, em sua inconfundível voz rouca, entregando um dos muitos diálogos redentores do filme. Em outro momento, ele fala da sua constante luta contra aquele sentimento que o atormenta, referindo-se à luta contra a depressão que quase o 
combaliu. 

Bruce e sua esposa, Patti Scialfa

Passei 35 anos tentando aprender a deixar para trás as partes destrutivas de minha persona. E ainda há dias em que eu preciso lutar conta isso”, salienta o chefe antes de introduzir uma das novas faixas, em um dos momentos mais marcantes da obra.

“Todos nós temos nossas partes despedaçadas. Emocionalmente, espiritualmente, nessa vida, ninguém consegue escapar sem se machucar. Nós estamos sempre tentando achar alguém cujas partes despedaçadas se encaixam com as nossas próprias e, assim, algo inteiro possa emergir”, reconhece Bruce, ao abordar seu casamento de quase trinta anos após vermos imagens de arquivo dos dois bem mais jovens em uma rima exata com a sintonia no palco.

De certa maneira, é bom ver o Boss sorrir, feliz. Se alguém que nos ajudou e fez refletir diante de tantos percalços consegue alcançar essa plenitude após caminhos tortuosos de uma vida, a esperança te aquece o peito de forma especial ao assistir a Western Stars.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/12/2019


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O Juízo


SOBRENATURAL VINGANÇA

Em O Juízo, o crescente destroçar psicológico e físico de um pai e sua racionalidade encontra paralelos na reparação histórica da escravidão no Brasil


Por João Paulo Barreto

A gradativa perda de uma sanidade ameaçada por vícios e fraquezas, juntamente a um estado de ganância cega e inescrupulosa, são o mote principal de O Juízo, novo filme de Andrucha Waddington. Com um título a abordar a proposta dessa perda de uma consciência mental (um juízo de comportamento intimo) diante do não compreensível sobrenatural, a obra de Waddington, escrita por Fernanda Torres, traz essa desconstrução de seu protagonista diante daquilo que ele não entende e que advém do intangível.  Junto a isso, também está aquilo que já o corrói há tempos dentro de um mundo e de uma vida material constituídos por um vício no alcoolismo e as consequentes derrotas atreladas ao mesmo.    

Na figura de um destroçado pai que tenta salvar um casamento fracassado, o drama de O Juízo, além do apropriar de uma alegoria do sobrenatural para contar uma história de vingança, tem nessa desconstrução de seu personagem central sua mais notável característica. Porém, para além dessa proposta direta de análise da quebra psíquica de um homem, Torres traz em sua escrita e título do filme uma questão de juízo e justiça que resvala em uma questão histórica. Na opressão de senhores do garimpo contra escravizados em busca de diamantes da salvação, o longa de Waddington concede ao seu público uma reflexão pertinente do real em uma rima precisa com o gênero do terror e suspense.

“A escravidão que aconteceu no Brasil é algo irreparável, mas que deve ser encarada. É algo que está dentro da sociedade brasileira de uma maneira muito violenta. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Então, é uma questão muito séria. A presença forte de Criolo no papel do Couraça colocou toda essa personificação neste personagem. A encarnação desse Couraça trouxe essa questão ao filme”, explica o diretor Andrucha Waddington.


Criolo e Felipe Camargo: peso em interpretações 

DESMONTAR FÍSICO

Em Augusto, o pai em questão, centra-se a tal desconstrução de um homem a ceder aos próprios fantasmas e àqueles que o cercam de maneira sobrenatural. No papel, Felipe Camargo, em sua postura combalida e expressão de constante pesar, coloca sua presença física de maneira a salientar exatamente essa ideia da loucura que gradativamente engole sua psique.  E Waddington salienta esse crescente de loucura de maneira surpreendente dentro de uma proposta de terror.

Essa abordagem reside no construir de uma ambientação dentro do cinema de gênero que não necessariamente precisa apelar para os sustos fáceis, os conhecidos jump scares, para causar em seu público uma reação artificial diante dos elementos que o filme traz. Assim, naquela casa no interior de Minas Gerais, cercada por montanhas, matas e silêncio, Waddington alcança uma densa atmosfera de tensão que se vale bem mais da sugestão de um terror à espreita do que de algo palpável a gerar em sua audiência qualquer falsa catarse dentro do horror. “Lembro de um filme chamado Os Inocentes, dirigido por Jack Clayton. Um suspense com um toque de loucura, do sobrenatural. Uma obra absolutamente clássica. Foi uma grande inspiração para mim”, afirma Waddington acerca das influências na construção de O Juízo.

Fernanda Montenegro no papel da médium espírita Marta Amarantes

ARQUÉTIPOS E RELIGIOSIDADE

Na história, aqui, o espírito de um ex-escravo e garimpeiro volta em busca de vingança contra a família cujo ancestral o traiu, causando sua morte e a de sua filha. No papel do atormentado Couraça, Criolo cria um personagem cuja dor e um planejamento calculista contra o homem que o traiu anos antes guia sua jornada no pós-morte. Esse pós-morte é um dos pontos louváveis da obra, que, em um ambiente que remete à desolação de um Hotel Overlook, cria para o público uma sensação de sufocamento que, mesmo em um cenário de tamanha amplitude, consegue tornar palpável o desconforto do espectador diante do destroçar físico e psicológico daquele pai atormentado, vitima da vingança e da própria ganância.

“Como referência, de uma maneira geral, eu tenho todos os grandes filmes que vi em minha vida. É algo que fica dentro de você. Vendo essa ideia de um cara que vai com a família para uma casa e lá fica preso, com a loucura a dominá-lo, não tem como não pensar em O Iluminado. São arquétipos do gênero que se você não esbarrar em um, esbarrará em outro. Cabe a você se apropriar da história que está contando e fazê-la da maneira mais autoral e fidedigna para a dramaturgia que está levando para a tela,” salienta o cineasta.

É comum em diversas produções brasileiras vermos a religião espírita ser abordada de uma maneira que se mantém, na maioria das vezes, entre o romantismo e um tom pretensamente científico. Assim, ao inserir a personagem de Marta Amarantes, uma médium espírita em uma proposta que, apesar de se ater ao cinema de gênero, traz um conceito respeitoso e fiel ao espiritismo (e digo isso como alguém que, mesmo ateu, foi criado na doutrina kardecista). Uma abordagem bem vinda para uma obra que, apesar de calcada no fantástico, tem um consciente viés dentro da religião espírita. E com a presença de Fernanda Montenegro a viver a personagem de Marta, é alcançado um peso para um papel que poderia facilmente derrapar em um clichê místico, mas que tem em sua naturalidade outro ponto alto.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/12/2019

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Dorivando Saravá - O Preto que Virou Mar


O Dorivar de uma Vida



Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, doc de Henrique Dantas, 
mergulha na trajetória e na religiosidade Caymmi

Por João Paulo Barreto 


O poeta, cantor e compositor Tiganá Santana, em seu depoimento no documentário Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, traz uma exata definição para Dorival Caymmi e sua relação musical entre o real e a beleza de composições que parecem vindas de um outro lado dessa realidade. Tiganá afirma: “Caymmi é um lapidador do criar. Um homem que desvela descrições profundas do real. O belo dele parece vindo de outro lugar. Parece surreal.  Se a gente vai por tradições negras, a partir de uma leitura de religiões de matrizes africanas, não há efetivamente uma divisão entre dois mundos. Um mundo invisível, espiritual, o é a partir de um mundo tangível”, explica. Na sua exata análise acerca de Caymmi, Tiganá vai mais além: “Há, portanto, o outro lado. Não um outro mundo. Eu acho que Caymmi é um mediador a partir do criativo, das artes. Um mediador entre estes lados“, finaliza o músico.
É com essa apresentação que o norte do filme dirigido por Henrique Dantas, que tem sua estreia nessa sexta, dia 29, na 52ª edição do Festival de Brasília, é definido. Cadenciado em suas imagens poéticas de elementos a representar o lendário Dorival Caymmi e sua relação com o mar e com o Candomblé como um ato de resistência, o documentário se equilibra de maneira precisa entre um desenhar imagético e uma estrutura de depoimentos que guia a plateia pela trajetória do artista. Assim, a convidando a adentrar na profundidade daqueles objetos simbólicos de uma vida repleta de calma e parcimônia como foi a de Dorival. Da mesma maneira que se mergulha em um mar profundo e prístino.
Tiganá Santana fala sobre a poética de Caymmi
Henrique Dantas explica que os objetos simbólicos que trouxe em seu longa vêm de um planejamento minucioso. “Quando começo um filme, uma obra de arte (sou artista visual de formação, mestre e professor em artes visuais), eu entro em um estado de atenção focada naquele universo que quero apresentar”, explica. “Ao me deparar com a história de Caymmi, percebi que os filmes que foram realizados sobre ele eram obras biográficas feitas por pessoas que vivem no sudeste do país e que desconheciam a história preta de Caymmi na Bahia”, salienta o diretor. Um mergulho nessa história é o que é proposto aqui.
MERGULHO LITERAL
O mar se faz presente em sons, imagens e camadas sob as quais se desenrolam causos inesquecíveis do que significa “dorivar” a vida durante aquele mergulho de pouco mais de 85min representado pelo filme de Henrique Dantas. E esse ritmo conduz a audiência do começo ao final de sua trajetória, tanto da vida do Homem que tanto cantou Janaina quanto da série de estórias que degustamos sob o olhar de pessoas que vivenciaram aquele mundo Caymmiano.
Desta maneira, em Dorivando Saravá, desde o começo, é perceptível essa ideia de trazer para a obra mais do que um simples contar de uma trajetória tão rica quanto a do músico através do olhar daqueles que a viveram junto com ele ou que admiram tal existência plena. Ao inserir os citados símbolos da religiosidade de Matriz Africana tão cantada por Dorival em suas canções, a obra coloca em discussão uma necessidade urgente de trazer a música do compositor baiano como um instrumento, também, de resistência contra a violência sofrida por essas religiões em um Brasil neo-pentecostal, onde a política se misturou de maneira pútrida com as igrejas.
Gil aborda a influência de Caymmi em sua geração

Deste modo, a obra dirigida por Dantas traça uma forma de perceber como o abismo de intolerância religiosa que o Brasil adentrou é perigoso.  O movimento neopentecostal no mundo é algo assustador. Existem muitas igrejas no Brasil que falam mais do diabo do que de Deus e nessas técnicas de convencimento e persuasão vão levando as pessoas como gado para onde elas quiserem. Estudei em colégio de freiras em Ilhéus, e, com isso, li muito a Bíblia e posso garantir que nesse livro não existe o ódio plantado por esses falsos profetas,” explica Henrique.
Oriundo de uma época em que as religiões de Matriz Africana eram consideradas criminosas pela lei de então, Dorival Caymmi trouxe seu respeito por esse pilar representativo de boa parte do povo que vive aqui. Em tempos atuais, nos quais “cantoras” se recusam a falar o nome de Iemanjá em canções, olhar para o século XX e ver pessoas como Caymmi valorizando esse rico manancial de cultura e afeto dentro do Candomblé nos faz perceber como estar do lado certo da História é algo que devemos sentir orgulho por tal pertencimento.

O cineasta Henrique Dantas: reconhecer da própria negritude. 

AUTO-RECONHECIMENTO
O processo de pesquisa acerca desse Caymmi negro, não embranquecido por uma sociedade racista e hipócrita, deu ao cineasta Henrique Dantas uma oportunidade de mergulho em sua própria vida e em um salientar do seu auto-reconhecimento como homem negro.
“Meus filmes refletem muito meus mergulhos pessoais e, nesse caso específico, passei por um processo de transformação muito pessoal onde percebi e reconheci a minha própria negritude. Não movido apenas por filosofias ou desejos, mas, sim, por ter passado por experiências modificadoras”, afirma Henrique Dantas. O cineasta, durante o processo de filmagem de Dorivando Saravá, integrou, ainda, uma equipe de curadoria que o ajudou nesse processo pessoal de reflexão. “Sim. Algo muito importante foi o convite para integrar a comissão de seleção da Mostra de Cinema Negro Mahomed Bamba, quando me deparei com 130 filmes pretos que me mostraram muitas das situações que sofri minha vida inteira e não entendia que eram situações de racismo”, finaliza.
Temos na obra de Dorival Caymmi uma forma de nos reconhecermos como brasileiros, como oriundos de uma cultura rica, repleta de respeito e tolerância, que não cedeu nem cederá lugar para truculências oportunistas. Caymmi, que tanto trouxe a calma, o bom humor e a reflexão  como modo de vida, é alguém de imprescindível reencontro na sempre conectada, desatenta e fugaz rotina do século XXI. Permitir-se dorivar é algo que, curiosamente, se tornou urgente hoje em dia. Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar nos dá uma oportunidade única para tal intento.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 28/11/2019



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Irlandês

A Outra História Americana



Com O Irlandês, Scorsese encontra Pacino e reúne-se com De Niro, Pesci e Keitel 
para o contar de um épico da máfia estadunidense


Por João Paulo Barreto

Quando John Kennedy, o então presidente dos Estados Unidos, foi assassinado em 1963 durante uma carreata em um convencível ao lado da sua bela esposa Jackie, a comoção para o povo estadunidense foi gigantesca. Essa parte da História do país, hoje governado por um moleque mimado, sempre foi retratada no cinema como um momento de imenso pesar. Mas esse pesar não era unânime.

Em O Irlandês, duas faces desse momento são desenhadas por Martin Scorsese em um mesmo quadro. Ao fundo, mulheres choram ao ouvir no jornal as notícias acerca do que acabara de acontecer em Dallas. À frente, em primeiro plano, o sindicalista Jimmy Hoffa (Pacino) e o assassino da máfia Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título, apenas observam com olhos atentos o quão conveniente aquele assassinato lhes parece para os seus negócios escusos. Com um simples enquadramento e um contraste preciso entre lágrimas inocentes, consternação e senso de oportunidade, Scorsese define o peso do seu filme como um registro da verdadeira História Americana.

Assim, é como uma visita à real História do país ianque que se apresenta o novo trabalho do diretor de Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino. Desta vez, aprofundando de maneira grandiloquente o ambiente da máfia que já havia desenhado com maestria nas três obras citadas. Em O Irlandês, Scorsese se permite ir além. Com 3h e 30min de duração, a obra é um passeio pela história contemporânea da terra do tio Sam, mas pela óptica daqueles que realmente fizeram a roda girar. Daqueles que colocaram escroques como Nixon para governar e alcançaram semelhante intento no atual momento do país.

Frank Sheeran, Hoffa e Bill Bufalino observam a bandeira a meio mastro

“VOCÊ PINTA CASAS?”

Quando ouvimos Hoffa perguntar a Frank se ele gostaria de fazer parte daquela História, é exatamente a versão com H maiúsculo da palavra que é proferida. Foram aqueles homens que fizeram as engrenagens da política suja, movida a dinheiro banhado em sangue, girar naquele país que tanto se orgulha de ser a pretensa terra da liberdade e da oportunidade. A terra do “sonho americano”, onde todos podem ser vencedores, é colocada mais uma vez pelo cineasta como um desenho preciso da ascensão de homens através da violência. Como disse Balzac, por trás de toda grande fortuna há um crime. E Hoffa, cujo desaparecimento notório marcou a História do país, mal sabia que com aquele convite a Sheeran, desenhava um ponto de ruptura em sua vida conturbada por um comportamento errático no que tange ao orgulho e à vaidade.

E como centro dessa trajetória está Frank Sheeran, que começa sua ascensão através de pequenos delitos ainda jovem (os efeitos digitais a rejuvenescer De Niro impressionam), desviando para os líderes da máfia local carregamentos de carne que transporta em seu caminhão refrigerado. Não tarda a ser descoberto em suas pequenas artimanhas, mas é neste momento que se aproxima ainda mais dos contatos dentro daquele ambiente escuso do estado da Pensilvânia. Ao ser apresentado a Russell Bufalino (Joe Pesci), chefe da máfia local, uma amizade imediata tem inicio, e Sheeran acaba por se tornar um assassino a mando de Russell e de outros chefes locais.

O choque da morte de Kennedy: oportunidade

Nessa estrutura, Scorsese divide sua narrativa ao contar a saga de décadas dentro das vidas sombrias daquelas pessoas. Diferente de Goodfellas, quando o tempo era demarcado de maneira precisa cronologicamente, com cartelas a indicar em qual momento do século XX a trajetória de Henry Hill se localizava, The Irishman insere esse violento crescimento de Frank Sheeran durante o pós-guerra de maneira mais sutil. Ao optar pela quebra da quarta parede, inserindo um já idoso Sheeran a conversar com o espectador (algo característico dos seus filmes), o diretor ítalo-americano propõe viagens no tempo em flashbacks que trabalham a linha narrativa como um mosaico a desenhar os anos de máfia daqueles homens. 

E tudo acontecendo através do tempo de uma viagem de carro entre a Pensilvânia e Detroit, caminho desenhado por Sheeran num mapa a servir como eficiente metáfora para a sinuosa vida daqueles homens.  E nesta construção gradativa, quando acompanhamos toda aquela trajetória do irlandês vivido por De Niro, entendemos de maneira dolorosa toda a culpa e consciência pesada que seus atos lhe trouxeram como fardo para uma velhice solitária e amarga.

MARCAS REGISTRADAS

Sem preciosismo ou olhar superestimado, é inegável que estamos diante de um momento precioso da cinefilia quando entramos em uma sala de cinema para assistir a uma nova obra dirigida por Martin Scorsese. Em uma carreira de mais de 50 anos, o cineasta, que também é preservacionista, construiu uma reputação de respeito dentro da indústria do entretenimento que poucos profissionais gozam hoje em dia. Oriundo da geração baby boomers da década de 1970, quando nomes de então garotos como Coppola, Friedkin, Spielberg, De Palma, entre outros, surgiram para desafiar os mandachuvas dos grandes estúdios, Scorsese passou toda sua carreira dedicando-se à criação de um cinema próprio, no qual elementos de seu entorno pessoal de vida eram inseridos, reconstruídos e ressignificados.

Sheeran (De Niro) e seu momento chave 

Os conflitos interiores dentro da fé católica; a cor vermelha em elementos cênicos a representar esse afundar dentro da criminalidade (aqui, uma cerimônia em homenagem a Sheeran traz em seus abajures vermelhos essa exata representação); a câmera fluída a desenhar panorâmicas e a levar a audiência na apresentação daqueles personagens soturnos; a trilha sonora inspirada, que tem na presença de Robbie Robertson, da The Band, a consultoria exata na seleção de um soundtrack preciso. Um exemplo deste aspecto está no equivalente para Layla, de Clapton, em um momento icônico de Goodfellas, que encontra, aqui, uma sequência à altura na utilização de Sleep Walk, da dupla Santo & Johnny.

Reencontrar todos estes elementos reunidos em um novo trabalho do homem por trás de Os Bons Companheiros é algo deveras significativo. E ver, ainda, nomes como Robert De Niro, Joe Pesci e Harvey Keitel creditados em uma obra dirigida por ele em 2019, quase meio século após Taxi Driver, Touro Indomável e Mean Streets, e ainda contar com a primeira parceria de Scorsese com Al Pacino, coroa de maneira precisa esse momento.

Sim, nós também estamos testemunhando parte da História.  


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Ford vs. Ferrari


Vidas Fugazes e Velozes



Com Ford vs Ferrari, Christian Bale e Matt Damon vão além de um simples
contar da rivalidade de duas gigantes automobilísticas

Por João Paulo Barreto

Há um claro desafio no roteiro de Ford vs Ferrari: criar um clímax cinematográfico para uma obra que tem como pano de fundo uma prova automobilística que dura 24h. O lendário Le Mans, circuito localizado na França, era notório diante da adversidade proposta aos seus pilotos, que tinham que atravessá-lo durante um dia inteiro, revezando-se em horas ao volante, para testar os limites de engenharia das máquinas poderosas que guiavam. Além disso, obviamente, as próprias condições físicas daqueles homens eram colocadas em constante risco perante os perigos relacionados à alta velocidade em uma época que, comparada à atual Fórmula 1, avançadíssima tecnologicamente e com alta prioridade na segurança de seus profissionais, trazia, naquele tempo, vários riscos às vidas daqueles loucos por adrenalina.

Assim, para adaptar o roteiro escrito a seis mãos, o cineasta James Mangold (do excelente Logan) precisava se ater a algo mais eficiente que uma simples estrutura de apresentação de personagens e seus respectivos conflitos; à simplória criação de um antagonista; aos percalços criados por este embate, para, finalmente, trazer a glória emblemática e derradeira que um filme acerca de provas de velocidade possui como lugar comum. Deste modo, restou a Ford vs. Ferrari, além de uma utilização contida dos tais momentos de clímax dentro da proposta relacionada à alta velocidade, investir com maior cuidado em um desenvolvimento humano de seus personagens.

Na recente filmografia, a obra que mais se destaca nesse viés é Rush, longa de Ron Howard que aborda a rivalidade entre James Hunt e Niki Lauda. E foi justamente por se propor a trazer algo mais impactante dramaticamente do que um espetáculo visual para fãs do automobilismo, o trabalho de Howard chamou a atenção de maneira tão precisa. Aqui, porém, apesar de seu título, não é a tal rixa entre as duas famílias de construtores, a estadunidense e a italiana, que leva Ford vs Ferrari à frente.

Miles após vitória em Daytona

AMIZADE EXPLOSIVA

A proposta de Mangold reside na ideia de aprofundar a amizade entre o ex-piloto e designer automotivo Carroll Shelby (Matt Damon) e o piloto e engenheiro Ken Miles (Christian Bale), ao mesmo tempo que desenha para o seu público, leigo ou conhecedor no que tange ao automobilismo (eu me incluo no primeiro grupo), toda técnica necessária para a construção de carros de corrida.

Assim, mesmo que diversos momentos da obra tragam sequências eficientes de provas de velocidade (incluindo a citada corrida francesa, bem como a estadunidense Daytona, também com 24h de duração), é na relação entre seus dois protagonistas que o filme encontra sua verdadeira essência, ilustrando nesta cumplicidade uma demonstração crescente da mecânica por trás da construção dos veículos de alta performance.

Com um Matt Damon carregando pesado o forte sotaque texano para desenhar um frustrado Shelby, que teve que interromper sua carreira de piloto por conta de uma condição cardíaca, Mangold insere um personagem pragmático que, apesar de se render a momentos de fúria em sua frustração, consegue balancear bem a relação com o explosivo Ken Miles vivido por Bale. O britânico, aliás, surpreende mais uma vez na constituição física de seu personagem. Com uma magreza já característica em diversos de seus papeis, Christian Bale dá a Ken Miles algo além da aparência suja e de pele avermelhada pelo calor dos motores com os quais mantém contato durante quase todo o dia na profissão de mecânico.

Miles testa a potência de um novo motor

RIMA COMPORTAMENTAL

Explosivo em sua relação pessoal com aqueles que o cercam, temos no seu trato profissional uma variação exata para como é desenhado o Ken Miles de Christian Bale. É perceptível como seu personagem se deixa levar pela fúria somente quando o que está em jogo é o seu desempenho nas provas de alta velocidade. Um exemplo disso é quando, logo em sua introdução, o vemos lidar com ironia e calma diante de um cliente violento, mas, quando é sua participação em uma corrida que é colocada em jogo, golpes de martelo em uma lataria de carro, além de uma pesada ferramenta sendo atirada contra Shelby, tornam-se variações esperadas de seu comportamento que beira o psicótico.

Do mesmo modo, em seu trato familiar, a figura de um homem atento e cuidadoso com o filho, bem como paciente diante das justas cobranças de sua esposa diante da delicada situação financeira do seu lar, ajudam o público a notar como a construção de sua figura explosiva se restringe aos momentos por trás do volante. 
E essa comparação comportamental de sua figura diante das explosões causadas pela aceleração de possantes motores, criam uma eficiente rima em seu desenvolvimento, tornando Ken e o Ford que ele pilota quase que o mesmo elemento fílmico em cena.

Fugindo dos clichês comuns ao optar por não utilizar partes internas de motores para ilustrar a potência de duas cenas envolvendo carros, mas evidenciando o clássico design de suas máquinas de corrida, Ford vs. Ferrari acaba sendo uma precisa reconstrução histórica. Reconstrução de um período em que a ousadia de engenheiros e de pilotos insanos até encontrava freios em leis da física e da aerodinâmica, mas nessa citada loucura de seus personagens, a estrada à frente cedia espaço para algo tão fugaz e breve quanto aqueles momentos velozes: vidas humanas.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 15/11/2019



terça-feira, 29 de outubro de 2019

XV Panorama Internacional Coisa de Cinema


O Cinema no Centro!


Chegando à sua décima quinta edição, o Panorama Internacional Coisa de Cinema 

começa nessa quarta e apresenta mais de 120 filmes

Por João Paulo Barreto

Mais do que um simples slogan, a frase que estampa essa matéria, O Cinema no Centro!, denota precisamente a importância do festival Panorama Internacional Coisa de Cinema na missão de trazer vida ao Centro de Salvador e a salientar a sétima arte, censurada pelo atual (des)governo, como algo central na movimentação cultual e econômica do país. Quinze primaveras cinematográficas rimam com quinze edições do festival. Debutando em 2019, a mais importante janela de exibição fílmica em Salvador começa nessa quarta-feira, dia 30, e segue até o dia 06 de novembro. Nestes oito dias, a maratona cinéfila contará com mais de 120 filmes entre curtas e longas metragens que vão ocupar três espaços, sendo dois em Salvador (o Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha e a Sala Walter da Silveira) e o Cine Theatro Cachoeirano, localizado na cidade de Cachoeira, no recôncavo baiano.

Dentre os destaques, temos logo na abertura, no Espaço Itaú- Glauber, às 20h, o escolhido para representar o Brasil na corrida do Oscar, A Vida Invisível, filme de Karim Aïnouz (de Madame Satá). O filme venceu a Mostra Um Certo Olhar, da edição 2019 do festival de Cannes, e tem recebido boas críticas por onde passa. O longa conta a história das irmãs Eurídice e Guida Gusmão (Carol Duarte e Julia Stockler), duas jovens idealistas que se tornam vitimas de uma sociedade machista e paternalista,  sendo separadas durante os anos 1950 e vivendo um envelhecimento amargo e repleto de desencontros. Aos 80 anos de idade, Eurídice (vivida quando idosa por Fernanda Montenegro), encontra cartas escritas pela irmã desaparecida na juventude. A sessão de A Vida Invisível terá a presença de Carol Duarte, além do diretor Karim Aïnouz.

Outro destaque a lotar as salas do Espaço Itaú – Glauber na abertura do Panorama é o documentário Meu Amigo Fela. Dirigido por Joelzito Araújo, o filme traça um vivo retrato do multi-intrumentista nigeriano Fela Kuti. Falecido em 1997, Fela teve grande destaque como líder político, influenciando toda uma geração africana. Após o filme, um papo com o diretor Joelzito Araújo e o público presente acontece. As duas sessões terão entrada franca com ingressos sendo retirados duas horas antes dos filmes. A noite de abertura se encerra com a apresentação musical de Okwei  + Banda Awetto. Com o setlist baseado no repertório de Fela Kuti, o show acontece no saguão do Espaço Itaú – Glauber. A entrada tem preço simbólico de R$2 (inteira).

A Vida Invisível, filme de Karim Aïnouz

DIFICULDADES E SUPERAÇÕES

Para o diretor geral e um dos curadores do festival, o cineasta Cláudio Marques, a atual conjuntura política e a guerra contra a cultura promovida pela situação governamental, tem dificultado qualquer meio de produção cultural. “Psicologicamente, foi o pior ano para se produzir qualquer coisa desde o início dos anos 2000. Estamos sendo atacados frontalmente, mas também por trás, através de uma crescente burocracia que está asfixiando a produção de eventos, festivais e filmes no país. Está cada vez mais complicado! Eles querem que a gente desista. É uma asfixia”, afirma Cláudio.

Mas a superação do Panorama como essa citada janela de importância vital para a cultura cinematográfica na Bahia, juntamente com a experiência de já ter produzido quatorze edições anteriores, tornam possível o processo de alcançar mais um ano com as já esperadas, mas não menos complicadas, dificuldades. “Nós Já sabemos como fazer o Panorama. Vamos aprimorando aqui e ali, experimentando algumas coisas. Mas, trata-se de um formato consolidado. O Panorama é vital para Salvador, em termos de abertura para o mundo. Um dos festivais mais importantes e reconhecidos do país”, finaliza o cineasta..

Clássico soteropólitano de Edgard Navarro, Superoutro terá exibição de 30 anos

COMPETITIVAS E CLÁSSICOS

Como já é tradicional, o Panorama trará mostras competitivas de curtas e longas metragens baianos, estrangeiros e de outros estados do Brasil. Dentre os destaques estão Pacarrete, filme do Ceará que conta a história da protagonista título, uma já aposentada professora de dança que sonha em organizar um grande balé para a população local. O longa foi o vencedor do Festival de Gramado desse ano. Além deste, Uma Breve Miragem de Sol, filme com Fabrício Boliveira e dirigido por Eryk Rocha, que, para o curador Cláudio Marques, trata-se de uma obra necessária para a reflexão acerca dos tempos atuais. “É um filme pessimista, triste como os nossos tempos. A vontade de cessar a experiência humana. Não é isso que queremos, mas é muito disso que vivemos.”, complementa Cláudio.

Dentre os clássicos exibidos, o Panorama fará apresentações especiais em comemoração a diversos aniversários de lançamentos. 2019 marca os 30 anos de Superoutro , clássico baiano dirigido por Edgard Navarro e estrelado por Bertrand Duarte (a arte dessa edição do festival homenageia o filme, inclusive). Além disso, Meteorango Kid- O Herói Intergalático, outro clássico baiano, dirigido por André Luiz Oliveira, chega aos 50 anos ainda mais atual. Ambos serão exibidos em 35mm. Outro destaque é  Redenção, de Roberto Pires, primeiro longa produzido na Bahia, completa 60 anos, que também contará com sessão especial, juntamente a uma mostra especial em homenagem a Glauber Rocha, que completaria 80 anos de idade em 2019. O Panorama celebra a cultura em um ano cuja lembrança de uma história cinematográfica é perseguida na tentativa de apagá-la. Mas, resistiremos.

“Rever Redenção, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Meteorango Kid e Superoutro, filmes seminais da nossa cinematografia, em sequência, é uma oportunidade rara! É entender de onde viemos e uma chance para estabelecermos de uma maneira mais adequada o sentido dos nossos caminhos daqui para frente!”, finaliza Cláudio Marques.

A maratona cinéfila começa nesta quarta!

Pacarrete, vencedor em Gramado, terá sessão no Panorama