A Outra História Americana
Com O Irlandês, Scorsese encontra
Pacino e reúne-se com De Niro, Pesci e Keitel
para o contar de um épico da
máfia estadunidense
Por João Paulo Barreto
Quando John Kennedy, o então presidente dos Estados Unidos, foi
assassinado em 1963 durante uma carreata em um convencível ao lado da sua bela
esposa Jackie, a comoção para o povo estadunidense foi gigantesca. Essa parte
da História do país, hoje governado por um moleque mimado, sempre foi retratada
no cinema como um momento de imenso pesar. Mas esse pesar não era unânime.
Em O Irlandês, duas
faces desse momento são desenhadas por Martin Scorsese em um mesmo quadro. Ao
fundo, mulheres choram ao ouvir no jornal as notícias acerca do que acabara de
acontecer em Dallas. À frente, em primeiro plano, o sindicalista Jimmy Hoffa
(Pacino) e o assassino da máfia Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título,
apenas observam com olhos atentos o quão conveniente aquele assassinato lhes
parece para os seus negócios escusos. Com um simples enquadramento e um
contraste preciso entre lágrimas inocentes, consternação e senso de
oportunidade, Scorsese define o peso do seu filme como um registro da
verdadeira História Americana.
Assim, é como uma visita à real História do país ianque que se
apresenta o novo trabalho do diretor de
Caminhos Perigosos, Os Bons
Companheiros e Cassino. Desta vez,
aprofundando de maneira grandiloquente o ambiente da máfia que já havia
desenhado com maestria nas três obras citadas. Em O Irlandês, Scorsese se permite ir além. Com 3h e 30min de duração,
a obra é um passeio pela história contemporânea da terra do tio Sam, mas pela
óptica daqueles que realmente fizeram a roda girar. Daqueles que colocaram
escroques como Nixon para governar e alcançaram semelhante intento no atual
momento do país.
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Frank Sheeran, Hoffa e Bill Bufalino observam a bandeira a meio mastro |
“VOCÊ PINTA CASAS?”
Quando ouvimos Hoffa perguntar a Frank se ele gostaria de
fazer parte daquela História, é exatamente a versão com H maiúsculo da palavra que
é proferida. Foram aqueles homens que fizeram as engrenagens da política suja,
movida a dinheiro banhado em sangue, girar naquele país que tanto se orgulha de
ser a pretensa terra da liberdade e da oportunidade. A terra do “sonho
americano”, onde todos podem ser vencedores, é colocada mais uma vez pelo
cineasta como um desenho preciso da ascensão de homens através da violência.
Como disse Balzac, por trás de toda grande fortuna há um crime. E Hoffa, cujo
desaparecimento notório marcou a História do país, mal sabia que com aquele
convite a Sheeran, desenhava um ponto de ruptura em sua vida conturbada por um
comportamento errático no que tange ao orgulho e à vaidade.
E como centro dessa trajetória está Frank Sheeran, que começa
sua ascensão através de pequenos delitos ainda jovem (os efeitos digitais a
rejuvenescer De Niro impressionam), desviando para os líderes da máfia local
carregamentos de carne que transporta em seu caminhão refrigerado. Não tarda a
ser descoberto em suas pequenas artimanhas, mas é neste momento que se aproxima
ainda mais dos contatos dentro daquele ambiente escuso do estado da
Pensilvânia. Ao ser apresentado a Russell Bufalino (Joe Pesci), chefe da máfia
local, uma amizade imediata tem inicio, e Sheeran acaba por se tornar um
assassino a mando de Russell e de outros chefes locais.
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O choque da morte de Kennedy: oportunidade |
Nessa estrutura, Scorsese divide sua narrativa ao contar a
saga de décadas dentro das vidas sombrias daquelas pessoas. Diferente de Goodfellas, quando o tempo era demarcado
de maneira precisa cronologicamente, com cartelas a indicar em qual momento do
século XX a trajetória de Henry Hill se localizava, The Irishman insere esse violento crescimento de Frank Sheeran
durante o pós-guerra de maneira mais sutil. Ao optar pela quebra da quarta
parede, inserindo um já idoso Sheeran a conversar com o espectador (algo
característico dos seus filmes), o diretor ítalo-americano propõe viagens no
tempo em flashbacks que trabalham a linha narrativa como um mosaico a desenhar
os anos de máfia daqueles homens.
E tudo acontecendo através do tempo de uma
viagem de carro entre a Pensilvânia e Detroit, caminho desenhado por Sheeran
num mapa a servir como eficiente metáfora para a sinuosa vida daqueles homens. E nesta construção gradativa, quando
acompanhamos toda aquela trajetória do irlandês vivido por De Niro, entendemos
de maneira dolorosa toda a culpa e consciência pesada que seus atos lhe
trouxeram como fardo para uma velhice solitária e amarga.
MARCAS REGISTRADAS
Sem preciosismo ou olhar superestimado, é inegável que
estamos diante de um momento precioso da cinefilia quando entramos em uma sala
de cinema para assistir a uma nova obra dirigida por Martin Scorsese. Em uma
carreira de mais de 50 anos, o cineasta, que também é preservacionista,
construiu uma reputação de respeito dentro da indústria do entretenimento que
poucos profissionais gozam hoje em dia. Oriundo da geração baby boomers da década de 1970, quando nomes de então garotos como
Coppola, Friedkin, Spielberg, De Palma, entre outros, surgiram para desafiar os
mandachuvas dos grandes estúdios, Scorsese passou toda sua carreira
dedicando-se à criação de um cinema próprio, no qual elementos de seu entorno
pessoal de vida eram inseridos, reconstruídos e ressignificados.
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Sheeran (De Niro) e seu momento chave |
Os conflitos interiores dentro da fé católica; a cor
vermelha em elementos cênicos a representar esse afundar dentro da
criminalidade (aqui, uma cerimônia em homenagem a Sheeran traz em seus abajures
vermelhos essa exata representação); a câmera fluída a desenhar panorâmicas e a
levar a audiência na apresentação daqueles personagens soturnos; a trilha
sonora inspirada, que tem na presença de Robbie Robertson, da The Band, a consultoria exata na seleção
de um soundtrack preciso. Um exemplo deste aspecto está no equivalente para Layla, de Clapton, em um momento icônico
de Goodfellas, que encontra, aqui,
uma sequência à altura na utilização de Sleep
Walk, da dupla Santo & Johnny.
Reencontrar todos estes elementos reunidos em um novo
trabalho do homem por trás de Os Bons
Companheiros é algo deveras significativo. E ver, ainda, nomes como Robert De
Niro, Joe Pesci e Harvey Keitel creditados em uma obra dirigida por ele em
2019, quase meio século após Taxi Driver,
Touro Indomável e Mean Streets, e ainda contar com a primeira parceria de
Scorsese com Al Pacino, coroa de maneira precisa esse momento.
Sim, nós também estamos testemunhando parte da História.
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