sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Irlandês

A Outra História Americana



Com O Irlandês, Scorsese encontra Pacino e reúne-se com De Niro, Pesci e Keitel 
para o contar de um épico da máfia estadunidense


Por João Paulo Barreto

Quando John Kennedy, o então presidente dos Estados Unidos, foi assassinado em 1963 durante uma carreata em um convencível ao lado da sua bela esposa Jackie, a comoção para o povo estadunidense foi gigantesca. Essa parte da História do país, hoje governado por um moleque mimado, sempre foi retratada no cinema como um momento de imenso pesar. Mas esse pesar não era unânime.

Em O Irlandês, duas faces desse momento são desenhadas por Martin Scorsese em um mesmo quadro. Ao fundo, mulheres choram ao ouvir no jornal as notícias acerca do que acabara de acontecer em Dallas. À frente, em primeiro plano, o sindicalista Jimmy Hoffa (Pacino) e o assassino da máfia Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título, apenas observam com olhos atentos o quão conveniente aquele assassinato lhes parece para os seus negócios escusos. Com um simples enquadramento e um contraste preciso entre lágrimas inocentes, consternação e senso de oportunidade, Scorsese define o peso do seu filme como um registro da verdadeira História Americana.

Assim, é como uma visita à real História do país ianque que se apresenta o novo trabalho do diretor de Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino. Desta vez, aprofundando de maneira grandiloquente o ambiente da máfia que já havia desenhado com maestria nas três obras citadas. Em O Irlandês, Scorsese se permite ir além. Com 3h e 30min de duração, a obra é um passeio pela história contemporânea da terra do tio Sam, mas pela óptica daqueles que realmente fizeram a roda girar. Daqueles que colocaram escroques como Nixon para governar e alcançaram semelhante intento no atual momento do país.

Frank Sheeran, Hoffa e Bill Bufalino observam a bandeira a meio mastro

“VOCÊ PINTA CASAS?”

Quando ouvimos Hoffa perguntar a Frank se ele gostaria de fazer parte daquela História, é exatamente a versão com H maiúsculo da palavra que é proferida. Foram aqueles homens que fizeram as engrenagens da política suja, movida a dinheiro banhado em sangue, girar naquele país que tanto se orgulha de ser a pretensa terra da liberdade e da oportunidade. A terra do “sonho americano”, onde todos podem ser vencedores, é colocada mais uma vez pelo cineasta como um desenho preciso da ascensão de homens através da violência. Como disse Balzac, por trás de toda grande fortuna há um crime. E Hoffa, cujo desaparecimento notório marcou a História do país, mal sabia que com aquele convite a Sheeran, desenhava um ponto de ruptura em sua vida conturbada por um comportamento errático no que tange ao orgulho e à vaidade.

E como centro dessa trajetória está Frank Sheeran, que começa sua ascensão através de pequenos delitos ainda jovem (os efeitos digitais a rejuvenescer De Niro impressionam), desviando para os líderes da máfia local carregamentos de carne que transporta em seu caminhão refrigerado. Não tarda a ser descoberto em suas pequenas artimanhas, mas é neste momento que se aproxima ainda mais dos contatos dentro daquele ambiente escuso do estado da Pensilvânia. Ao ser apresentado a Russell Bufalino (Joe Pesci), chefe da máfia local, uma amizade imediata tem inicio, e Sheeran acaba por se tornar um assassino a mando de Russell e de outros chefes locais.

O choque da morte de Kennedy: oportunidade

Nessa estrutura, Scorsese divide sua narrativa ao contar a saga de décadas dentro das vidas sombrias daquelas pessoas. Diferente de Goodfellas, quando o tempo era demarcado de maneira precisa cronologicamente, com cartelas a indicar em qual momento do século XX a trajetória de Henry Hill se localizava, The Irishman insere esse violento crescimento de Frank Sheeran durante o pós-guerra de maneira mais sutil. Ao optar pela quebra da quarta parede, inserindo um já idoso Sheeran a conversar com o espectador (algo característico dos seus filmes), o diretor ítalo-americano propõe viagens no tempo em flashbacks que trabalham a linha narrativa como um mosaico a desenhar os anos de máfia daqueles homens. 

E tudo acontecendo através do tempo de uma viagem de carro entre a Pensilvânia e Detroit, caminho desenhado por Sheeran num mapa a servir como eficiente metáfora para a sinuosa vida daqueles homens.  E nesta construção gradativa, quando acompanhamos toda aquela trajetória do irlandês vivido por De Niro, entendemos de maneira dolorosa toda a culpa e consciência pesada que seus atos lhe trouxeram como fardo para uma velhice solitária e amarga.

MARCAS REGISTRADAS

Sem preciosismo ou olhar superestimado, é inegável que estamos diante de um momento precioso da cinefilia quando entramos em uma sala de cinema para assistir a uma nova obra dirigida por Martin Scorsese. Em uma carreira de mais de 50 anos, o cineasta, que também é preservacionista, construiu uma reputação de respeito dentro da indústria do entretenimento que poucos profissionais gozam hoje em dia. Oriundo da geração baby boomers da década de 1970, quando nomes de então garotos como Coppola, Friedkin, Spielberg, De Palma, entre outros, surgiram para desafiar os mandachuvas dos grandes estúdios, Scorsese passou toda sua carreira dedicando-se à criação de um cinema próprio, no qual elementos de seu entorno pessoal de vida eram inseridos, reconstruídos e ressignificados.

Sheeran (De Niro) e seu momento chave 

Os conflitos interiores dentro da fé católica; a cor vermelha em elementos cênicos a representar esse afundar dentro da criminalidade (aqui, uma cerimônia em homenagem a Sheeran traz em seus abajures vermelhos essa exata representação); a câmera fluída a desenhar panorâmicas e a levar a audiência na apresentação daqueles personagens soturnos; a trilha sonora inspirada, que tem na presença de Robbie Robertson, da The Band, a consultoria exata na seleção de um soundtrack preciso. Um exemplo deste aspecto está no equivalente para Layla, de Clapton, em um momento icônico de Goodfellas, que encontra, aqui, uma sequência à altura na utilização de Sleep Walk, da dupla Santo & Johnny.

Reencontrar todos estes elementos reunidos em um novo trabalho do homem por trás de Os Bons Companheiros é algo deveras significativo. E ver, ainda, nomes como Robert De Niro, Joe Pesci e Harvey Keitel creditados em uma obra dirigida por ele em 2019, quase meio século após Taxi Driver, Touro Indomável e Mean Streets, e ainda contar com a primeira parceria de Scorsese com Al Pacino, coroa de maneira precisa esse momento.

Sim, nós também estamos testemunhando parte da História.  


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