domingo, 31 de maio de 2020

Let it Be - 50 anos



O Fim do Sonho


Há 50 anos, Let it Be, o último disco lançado pelos Beatles, chegava às lojas e firmava-se 
como o epitáfio preciso de uma banda cuja influência e músicas seriam eternas


Por João Paulo Barreto

Apesar de não ter sido o último álbum efetivamente gravado por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr (este seria o canto dos cisnes, Abbey Road, gravado e lançado no segundo semestre de 1969, com sua famosa faixa de pedestres na capa), Let it Be, gravado de maneira conturbada no começo daquele mesmo ano, mas lançado somente em maio de 1970, registrou o que quase seria um melancólico final para a maior banda de rock da História.

Concebido como um plano de retorno aos palcos (os Beatles não faziam shows desde 1966), era originalmente chamado de Projeto Get Back, que tinha sua faixa título a simbolizar justamente essa volta às canções cujas apresentações ao vivo seriam foco do álbum. Além do disco, a banda, encabeçada por uma ideia original de Paul, planejou lançar em filme todo o processo de concepção do LP, com as sessões de gravação no frio e pouco acolhedor Estúdio Twickenham sendo registradas por uma equipe de filmagens. A ideia foi colocada em prática, mas o que acabou sendo visto nos arquivos foi o declínio emocional de quatro amigos cujas personalidades se formaram juntas, mas que alcançavam, naquele ponto, um maturidade e vontade de se lançar em diferentes caminhos. Curioso pensar que o mais velho dos quatro, Ringo, tinha apenas 29 anos naquele janeiro de 1969, mês em que o disco foi gravado.

Clima tenso: os rapazes durante as sessões no Estúdio Twickenham

No entanto, o que vemos nas imagens captadas não se tratava apenas de animosidades. Havia ainda sorrisos e a cumplicidade familiar entre aqueles gênios. Para se entender como aquele momento de tensão chegou, uma série de fatores precisa ser colocada à mesa. E, não, não sejamos simplórios e medíocres em culpar apenas Yoko Ono por aquela separação. Para além desse apontar egoísta de dedo, vale lembrar que a morte do empresário Brian Epstein, em 1966, fez com que os quatro milionários garotos precisassem tirar o foco de suas composições para prestar atenção em suas finanças. Ainda assim, mesmo com o peso da perda do homem por trás das cortinas, naquele ano eles iniciaram as gravações de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o que muitos consideram o melhor disco de rock da História.

Porém, os conflitos entre Lennon e Macca acerca de quem deveria assumir a gestão financeira da banda (Paul queria o sogro, Lee Eastman; John queria o empresário dos Stones, o notório pilantra Allen Klein) começaram a corroer a unicidade do grupo a partir de 1967. Somando-se a isso os baques dos, considerados à época, “fracassos” do filme e disco Magical Mystery Tour, e a tumultuada gravação “solo, mas em conjunto” do White Album, é possível se justificar o crescente desânimo dos jovens adultos em permanecerem juntos.

Billy Preston cumprimenta Paul na chegada ao prédio da Apple

NOVO LOCAL

Após perceberem que o Estúdio Twickenham não propiciaria o conforto necessário para as gravações fluírem, a banda deixou o lugar e seguiu para a sede de seu selo, a Apple, na notória Savile Row, Londres, local onde, no dia 30 daquele janeiro de 1969, realizariam no telhado do prédio sua última apresentação ao vivo. A mudança colaborou para um melhor astral, corroborada pela presença do tecladista Billy Preston no estúdio. Lá, as execuções passaram a fluir melhor. Para o guitarrista e membro da Cavern Beatles, exímia banda baiana cover dos rapazes de Liverpool, Eric Assmar, o pulso de Paul McCartney foi primordial para a criação do disco. “Percebo nesse trabalho uma presença criativa mais consistente por parte de Paul, em relação a John, o que pode ser explicado em parte por conta de McCartney ter tomado mais a frente da condução do trabalho e dos arranjos, enquanto Lennon ainda lidava com o vício da heroína, fora os problemas internos da banda, o que na prática acabou limitando sua participação no álbum”, pontua o músico.

Seu colega de banda na Cavern, o guitarrista Ted Simões, salienta, ainda, a ideia do disco se diferenciar de projetos como Revolver e Sgt. Peppers por conta de seu planejamento para uma possível volta da banda aos palcos. “Depois de passar um período apenas lançando músicas e discos sem se preocupar em tocá-las para um público, em Let it Be eles se preocuparam em criar canções para que pudessem ser executadas ao vivo. Isso é muito difícil. É bem complicado você compor um disco pensando em uma coisa e, depois, compor pensando em outra. É bem desafiador. E eu acho que todas as canções ali são belíssimas para se tocar ao vivo”, opina o músico.

A Cavern Beatles em sua fase Sgt.Peppers: Ted e Eric ao centro

LET IT BE... NAKED

Mesmo com todas as tentativas de levar o disco à frente, seu lançamento acabou por ser adiado. As masters, então, ficaram paradas na Apple durante os meses seguintes de 1969. Foi quando, a convite de George Harrison e John Lennon, Phil Spector embarcou na ideia de moldar as novas canções para o lançamento que não mais se chamaria Get Back, mas, sim, Let it Be. Experiente produtor, Spector trazia na bagagem trabalhos como Be My Baby, das Ronettes, e Unchained Melody, dos Righteous Brothers. Para o álbum dos Beatles, trouxe experimentações orquestrais em canções como The Long and Winding Road e colocou em prática o seu notório processo de produção chamado Wall of Sound, que consistia em um explorar mais denso das capacidades musicais em estúdio , com reverberações, ecos e camadas sonoras.


Marcelo Costa e seus três momentos Let it Be
Foto: Lilliane Callegari 
Tudo isso, após lançado em 1970, não agradou Paul McCartney, que só escutaria o álbum da forma como queria em 2003, com o lançamento de Let it Be... Naked, versão, como o próprio nome entrega, “nua”, do que seria o disco dos Beatles. Para o crítico musical e editor do site Scream&Yell, Marcelo Costa, há algo além de uma simples preferência em saber qual das duas versões é “a melhor”. “Aprendemos a amar o Let it Be do jeito que ele é, porque passamos a vida ouvindo-o dessa maneira. Não somos o Paul, ou seja, não temos uma ligação pessoal de artista e obra que possa comprometer esse amor. Dito isto, Let it Be... Naked é maravilhoso por nos permitir ouvir o mesmo álbum de duas maneiras diferentes. É fato que toda a orquestração deixou tudo meio exagerado, e a versão “Naked” carrega uma beleza delicada perto do arranjo de Phil Spector, mas não é caso de escolher essa ou aquela, e, sim, de se apaixonar pelas duas”, explica o jornalista.

Anda em sua análise acerca do que representa o legado do disco, Marcelo Costa emociona com sua definição. “Let it Be simboliza o atestado de que tudo na vida pode acabar, que podemos nos reconstruir e seguir em frente. Esses quatro rapazes mudaram a cultura mundial em diversos âmbitos extrapolando a música. E seguiram em frente. É uma despedida triste, carregada de dor, frieza e distanciamento, e que marca muito exatamente porque estamos falando de pessoas que se amavam e que eram grandes amigos um do outro, mas que, no fim, foram engolidos por algo que era maior do que eles e maior do que a banda: a própria História. Eles deixaram para a História lições de vida importantes e grandes canções. Pode se esperar mais da vida?” 

Speaking words of wisdom...

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/06/2020




quinta-feira, 28 de maio de 2020

O Adeus a Conceição Senna

A diretora, atirz e escritora, Conceição Senna, que partiu dia 27, aos 83 anos


LUTO Na partida da atriz, escritora e cineasta baiana, Conceição Senna, o cinema brasileiro perde o pioneirismo de uma das lutadoras pela afirmação da mulher nordestina no audiovisual 


Por João Paulo Barreto e Rafael Carvalho

Faleceu na quarta-feira, aos 83 anos, no Rio de Janeiro, a diretora, escritora e atriz baiana, Conceição Senna. Natural de Valente, Conceição teve papel importante na filmografia baiana, atuando em obras pilares como o censurado à época Caveira My Friend, de Álvaro Guimarães; O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha; o marco da ficção cientifica do baiana, Abrigo Nuclear, filme de Roberto Pires; Coronel Delmiro Gouveia, filme de Geraldo Sarno;  A Coleção Invisível, de Bernard Attal, além de Iracema – Uma Transa Amazônica, na qual atuou sob a batuta do companheiro de longa data, seu esposo, o também baiano Orlando Senna, que co-dirigiu o filme ao lado de Jorge Bodanzky.  

Como diretora, Conceição teve seu foco em documentários, tendo filmado três deles: Memórias de Sangue, de 1987, filme sobre a cidade de Canudos, local onde passou sua infância; Brilhante, documentário de 2006 sobre um revisitar ao município de Lençóis, local onde o diretor Orlando Senna filmou, em 1977, Diamante Bruto, longa que tinha José Wilker como protagonista. Em 2018, Conceição lançou o terceiro e último filme, Anjos de Ipanema,documentário sobre o movimento cultural em torno do píer de Ipanema, local de confluência de diversas personalidades da música, cinema teatro e literatura no Rio de Janeiro dos anos 1970.

Orlando e Conceição Senna em foto dos anos 1970

DOCUMENTÁRIO BIOGRÁFICO   

Lara Belov, que co-dirigiu ao lado de Jamile Fortunato o documentário O Amor Dentro da Câmera, fala sobre a perda de Conceição, cuja história e parceria ao lado de Orlando Senna se tornaram tema do longa ainda a ser lançado. “Já estamos na fase de finalização do filme, colocando os créditos. Eu conheci Conceição ainda na minha adolescência, quando fiz uma oficina de roteiro em Lençóis. Jamile fez uma oficina com Orlando. Começamos uma amizade que nos ligou muito. Fui estudar em Cuba, onde ela e Orlando viveram anos antes. Ela era apresentadora de um programa na TV cubana chamado Ventanas al Sul, que teve a maior audiência em Cuba nos anos 1980 e 1990”, pontua Lara.

A importância de Conceição Senna na valorização das mulheres dentro do audiovisual também é salientada por Lara. “Num momento em que era ainda mais difícil para as mulheres fazer a sua arte, seu trabalho, ela sempre lutou por fazer isso. Uma pessoa emotiva, que falava o que queria, que expressava seus sentimentos. Ela tinha uma sinceridade enorme. Conceição não teve filhos biológicos, mas teve muitos ‘filhos’ e ‘filhas’ por onde ela passou”, declara Lara Belov.

Conceição e a diretora Lara Belov durante gravações Foto: Jamile Fortunato

A produtora baiana, Solange Souza, da Araça Filmes, que produziu o documentário Brilhante, 
também destaca a importância de Conceição, sua presença no audiovisual brasileiro e luta contra o preconceito a nordestinos e mulheres. “Para mim, ela foi mais que uma amiga. Foi uma irmã, uma mãe. Sempre dizia para gente que tínhamos que enfrentar esse preconceito isso com a cara e a coragem. Principalmente as mulheres. Sempre estava presente em negociações do audiovisual brasileiro. Como atriz, escritora, diretora e roteirista. No período em que Orlando foi secretário de Cultura, as reuniões sempre aconteciam em sua casa. Ela e Orlando foram importantes articuladores na Cultura do audiovisual”, afirma Solange.

Foto do acervo pessoal da produtora Solange Souza com Conceição 

Em 2018, por ocasião do Cine Ceará, A TARDE conversou com Conceição por telefone acerca de sua trajetória e sobre filme, Anjos de Ipanema, que seria exibido no festival. Sobre seus dois filmes anteriores, Conceição trouxe lembranças preciosas. “Quando Orlando esteve lá em Lençóis para filmar Diamante Bruto, a cidade estava desmoronando. Ele captou muito da beleza do lugar. O filme deu muita visibilidade a Lençóis. Tanto que, hoje, trata-se de um dos pólos turísticos principais do Brasil. Quando voltei lá para filmar Brilhante, eu quis abordar o mote do ‘pode um filme transformar uma cidade?’, uma vez que foi justamente isso que o trabalho de Orlando fez”, declarou a cineasta à época.

Com o último filme, Anjos de Ipanema, Conceição revisitou memórias afetivas de uma época intensa, quando viveu o movimento cultural e hippie na capital fluminense dos anos 1970, lugar onde viveu até os últimos dias. Na mesma conversa, ela me falou que havia encerrado sua contribuição cinematográfica com Anjos.  “Esse é o meu terceiro e último filme. Nos três, eu busquei de alguma forma abordar as transformações que passavam as cidades onde vivi, Canudos, Lençóis e Rio. Mas, sendo baiana, quis homenagear a Bahia presente no Rio, cidade que escolhi passar meus dias. Aqui tem o chamado ‘Quadrilátero Baiano de Ipanema’, quarteirão formado por ruas cujos nomes levam homenagens a heróis da História da Bahia e após homenagear Canudos e Lençóis nos meus dois primeiros filmes, foquei no Rio”, disse-me Conceição com empolgação naquele dia.

Honra de ter entrevistado Conceição durante Cine Ceará em 2018 Foto: Luiz Zanin

Tendo vivido os anos 1970 na capital fluminense em toda uma efervescência cultural que escapava do cabresto dos anos de chumbo, Conceição se recorda de uma resistência dentro da arte. “Foi uma época marcante culturalmente, onde as pessoas falavam muito de amor, paz, solidariedade, coisas em falta nos dias de hoje”, disse-me com certo pesar na voz, mas que não deixava seu sorriso fugir por inteiro.

Autora do romance autobiográfico A Menina, a guerra e as almas (que deve se tornar filme pelas mãos da diretora Manuela Dias), na mesma conversa, Conceição disse que planejava encerrar sua carreira como diretora para focar na literatura.

É dessa serenidade que vou me lembrar. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/05/2020


domingo, 24 de maio de 2020

Série Baiana Pequeno Gigante | Papo com equipe


Choque Político Baiano 


13 EPISÓDIOS Série baiana Pequeno Gigante, exibida na TVE às quintas-feiras,
traz nas relações políticas de Salvador reflexão acerca do jogo mesquinho
de interesses que tem na base popular suas vitimas imediatas 

Por João Paulo Barreto

Dentro de um choque entre raízes afetivas e culturais, ambições, escrúpulos e caráter, a construção do protagonista de Pequeno Gigante, série baiana que chega ao seu terceiro episódio semanal (de um total de 13) na próxima quinta, na TVE Bahia, se dá entre os diversos conflitos que o personagem do parlamentar Davi Passos (vivido por Guilherme Silva, de Café com Canela) tem no seu constante nado com tubarões dentro da política soteropolitana.

Vereador de origem pobre, defensor da comunidade onde cresceu, a Nova Nigéria, e em luta contra a especulação imobiliária que ameaça a existência do lar onde vive até hoje, Davi é um símbolo de contraste da política a qual estamos acostumados a ver. Homem negro, sobrevivente desde criança, quando ainda vivia em (e foi expulso de) Itaparica, das injúrias e tentativas de apagamento que as classes privilegiadas e predatórias infligiam em sua existência, a figura de Davi como um político de ideais firmes, mas distantes da ingenuidade, dá a Pequeno Gigante, desde seu episódio inicial, uma pertinente discussão acerca do que significa fazer política social.

Guilherme Silva, no papel do vereador Davi Passos: dilemas e conflitos (FOTO: CAIO LÍRIO)

Desde a sua abertura, com a fogueira do progresso a destruir seu lar na ilha, até as mesmas chamas criminosas voltarem a destruir sonhos na sua fase adulta, em Nova Nigéria, a figura de Davi é trazida como a de um sobrevivente. Nesse ínterim, o conhecemos como um articulador, alguém que dominou a citada arte de nadar com predadores da política. E de saber, também, lidar com os dois lados daqueles interesses. Na festa onde o seu padrinho político, o cacique político, senador Saul Dias Mendonça (um dos mestres do teatro baiano, Harildo Déda, que traz a Saul a leitura de Maquiavel em uma direta referência a outro já finado cacique), decidirá quem será o seu candidato a prefeitura de Salvador, uma série de nuances e olhares que desenham como funciona a promiscuidade de interesses naquele jogo. 

Em uma rima contrastante, a rival política de Davi, a vereadora Amanda (Ana Tereza Mendes), é questionada acerca de seus interesses naquele confronto com o colega. A pergunta direta e repetida acerca do que ela quer exatamente delineia para a audiência interpretações variadas, e vai encontrar um paralelo direto na cena seguinte, quando um favor sexual é recompensado com cocaína em uma boca do tráfico dentro da Nova Nigéria. O jogo de interesses políticos e de dominação é o mesmo, mudando apenas os riscos imediatos e a submissão violenta. 

Comunidade da Nova Nigéria luta contra o monstro da especulação imobiliária (FOTO: CAIO LÍRIO)


DICOTOMIA SOCIAL

Pequeno Gigante tem seu time de roteiristas formado por Anderson Soares Caldas (que também dirige a série), Gustavo Erick, Jarbas Éssi, Sylvio Gonlçalves Vitor Sousa e Lia Vasconcelos. Aqui, Lia explica que o planejamento do roteiro e da montagem para a cena da festa funcionou de modo a salientar uma dicotomia social, uma vez que a reunião de luxo que a festa onde o grupo de políticos se encontra é entrecortada por uma festa que acontece em paralelo na Nova Nigéria, local onde a base eleitoral de Davi reside. “Queríamos apresentar as contradições sociais através da comparação, por isso utilizamos o recurso da montagem paralela. As duas sequências foram bem trabalhadas para que pudéssemos enfatizar a dicotomia social, as distinções de classe, e, ao mesmo tempo, o gosto pelo poder, as alianças e jogos de interesse, que não dependem de categoria social, como fica evidente na cena”, explica Lia.

Na citada rivalidade entre o idealismo atento e nada ingênuo de Davi, a ambição bem como o instinto de afirmação e sobrevivência de Amanda, se dá um embate que leva o espectador a refletir sobe como aquelas alianças e competições se refletem em uma realidade dentro da política local de Salvador. A cidade, que passou nos últimos 12 anos por uma mudança trágica em seu gabarito arquitetônico, com as mudanças no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), que permitiram alterações predatórias em locais como a orla e Paralela, tem tais temas tratados com sagacidade pelas mãos e mentes por trás da escrita dos 13 episódios. 

Oriundo da comunidade, Davi luta na política baiana contra a despropriação (FOTO: CAIO LÍRIO)

Co-roteirista, Vitor Sousa pontua, ainda, que o argumento original da série foi escrito justamente em 2010, “período em que o mercado imobiliário efervescia e os debates e conchavos políticos sobre o PDDU se alinhavavam. O curioso é que, mesmo 10 anos depois, esses temas ainda estão muito em evidência hoje”, salienta Vitor. Sobre a situação da Salvador de 2020 ainda a se refletir na série, o co-autor destaca justamente tais reflexos. ”Penso que a arte tem mesmo essa missão de levantar um espelho para a sociedade e, nesse sentido, Pequeno Gigante é um espelho que cabe exatamente no cenário que vivemos atualmente”, finaliza

ETNIA E GÊNERO

Para o diretor da série, Anderson Soares Caldas, as personagens femininas da série constroem com firmeza essas relações de poder. “Tais relações quase sempre estão nas mãos dos homens. E no geral são homens heterossexuais, brancos, que estão nas posições de poder. Com as personagens femininas, queremos trazer essa reflexão. São mulheres fortes e que conseguem construir os espaços delas. Não é aquela história machista da mulher que está por trás do grande homem, mas aquela que o faz junto ao homem. E que constrói o que ela está querendo construir”, esclarece o diretor.

No papel do vereador Davi Passos, Guilherme Silva traz uma presença em cena que coloca seu personagem como alguém que sabe onde pisa, manejando com sagacidade estratégica aquelas cordas. Diante dos conflitos externos daqueles conchavos políticos, com esquivas e ataques planejados, cercado de falsas gentilezas e sorrisos milimetricamente medidos dentro daquele mundo hipócrita de interesses, Davi segue construindo sua carreira buscando manter-se fiel ao que acredita dentro de sua criação e origem. Assim, é instigante pensar em como tais conflitos se tornarão internos na consciência de Davi. 

Milena Passos (Evana Jeyssan): presença feminina e firme na série (FOTO: CAIO LIRIO) 

Experiente ator nos palcos baianos e do sudeste, Guilherme classifica a sua experiência no papel de Davi como uma vitória. “Eu, como uma pessoa preta, um homem negro, ver essa representação dentro de um roteiro escrito para uma série de televisão, isso é muito bom. Batemos de frente com isso a todo tempo. E é um processo muito mais de sobrevivência do que vivência. De como nós, negros, enfrentamos na sociedade a própria questão do racismo sistemático. Isso é exaustivo, mas a gente continua perfurando esses bloqueios para chegar onde precisamos,” salienta Guilherme. Sobre a construção do seu personagem e seus choques políticos, o ator explica o recrutamento de Davi desde a infância para aquele mundo: “Ele tem esse acompanhamento da sagacidade para as questões políticas desde cedo. Isso vem de uma manutenção dessa honra, a qual Negro Mármore, seu mestre de capoeira, passou para ele. A valorização da sua cultura. Dele como um indivíduo pertencente”, finaliza o ator.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 25/05/2020



domingo, 17 de maio de 2020

UM CRIME ENTRE NÓS | Entrevista - Luciana Temer e Adriana Yañez


Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, a cada hora, no Brasil, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. Além disso, segundo estudo do Ministério da Saúde, a maioria das vitimas de abuso sexual tem até cinco anos de idade. Um estudo trazido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que 82% das vitimas de estupro são do sexo feminino, sendo a maioria delas negras e jovens, e que, segundo relatório de atividades da Childhood Pela Proteção da Infância, surgem, a cada ano, 500 mil casos de exploração sexual infantil.

Diante de tais fatos e estatísticas, a urgência de uma obra como “Um Crime Entre Nós” (2020), e o necessário alcance da mesma para o maior número possível de pessoas, é algo prioritário. Mas para além dos números e frieza das porcentagens e estudos citados, o que o filme dirigido por Adriana Yañez traz ao seu público é humanidade. Prioritariamente humanidade, mas, também, afeto e empatia para as crianças traumatizadas e que, por consequência, se tornam adultos para sempre marcados.

A obra será lançada online nessa segunda, 18 de maio, no GNT Play e na página oficial do Instituto Liberta no Facebook. A data marca o Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infantil. A partir das 11h, no mesmo canal, acontece um debate com as presenças da jornalista Eliane Trindade, da ativista Amanda Ferreira, do advogado e coordenador do Instituto Alana, Pedro Hartung, e com a cineasta Adriana Yañez, bem como da diretora do Instituto Liberta, a professora Luciana Temer.

Conversei com Adriana e Luciana sobre o processo de criação do impactante documentário, bem como sobre as ações do Instituto Liberta na luta contra o abuso e exploração sexual infantil no Brasil. Adriana trabalha há mais de 10 anos com documentários, como diretora e roteirista. Seus filmes “A Sandália de Lampião” e “Vila Fiat Lux” foram selecionados para vários festivais dentro e fora do Brasil. Luciana é advogada e professora da PUC-SP e da Uninove, é presidente do Instituto Liberta; foi secretária de Esporte, Lazer e Juventude do Estado de São Paulo (2001-2002, gestão Alckmin) e secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (2013-2016, gestão Haddad). Confira o papo!

A partir do dia 19, o documentário estará disponível nas plataformas GNT Play, com acesso liberado por uma semana, e VIDEOCAMP, plataforma online gratuita para exibições públicas.

A cineastas Adriana Yañez

Trazer um tema de tamanha urgência para o espectador em um documentário é algo bastante desafiador no aspecto da capacidade de transmitir ao público tal urgência. Seu filme consegue isso de maneira pontual ao mesclar, junto ao peso dos depoimentos das vítimas, as falas com as animações que ilustram, sem cair no óbvio ou no gratuito, aquelas situações monstruosas para a audiência. Algo que traz um poder imenso de reflexão ao filme. Você poderia falar um pouco sobre esse processo de criação relacionando a narração em off, com os depoimentos e a animação?
ADRIANA YAÑEZ - As entrevistas com as pessoas da rede de proteção oferecem um panorama muito profundo da questão e olhares muito sensíveis às histórias das vítimas. Mas acredito que as histórias individuais, as experiências vividas com todas as suas particularidades, nos fazem nos aproximar de qualquer tema de uma outra maneira. É como melhor podemos compreender a dor, o alívio, o medo, o desamparo. Conecta com a nossa humanidade. Pedir à uma criança vítima de violência que sexual pra que conte a própria história para ser gravada é algo inconcebível, por melhores que sejam as intenções. Gravaríamos a história, teríamos o controle sobre ela e a criança continuaria no mesmo lugar, talvez mais fragilizada, por ter revivido a experiência ao contá-la e ainda imaginar que sua história seria exposta sem que ela entendesse muito bem como. A partir desses pensamentos, acessamos um número enorme de relatos de meninas e meninos através de conversas com vítimas que hoje são adultas, conversas com pessoas da rede de atendimento e publicações. Eu quis manter o discurso em primeira pessoa na maior parte para preservar a subjetividade de cada universo particular. Com a escolha dos relatos, começamos a rabiscar traços para dar forma à essas narrativas. Assim surgiram as animações.

Da mesma forma, as leituras das cartas no final têm um grande poder no que se refere à humanização daquelas vítimas, dando um rosto àqueles números e estatísticas, dando-lhe vozes. A fala de Ana, que ao final conta sua trajetória traumática pós abusos infantis que a marcaram até a vida adulta, permite a audiência ter essa maior proximidade com ela e, por consequência, com aquelas pessoas, uma maior empatia por elas. A sua aproximação com Ana e com outras vítimas de abusos se deu seguindo algum processo específico de planejamento? Você poderia falar um pouco desse aspecto do filme?
ADRIANA YAÑEZ - Senti durante o processo que o filme abriu uma fresta de escuta que escancara o silêncio e invisibilidade a que se destina a maioria das vítimas de violência sexual. Pra além da pesquisa, de conversas, entrevistas e leituras, fui procurada e ouvi muitas histórias espontaneamente. Cheguei a passar horas da madrugada com a cozinheira do hotel em que estávamos hospedados quando ela soube o que aquela equipe estava fazendo em Recife. Ela precisava contar sua história. Da mesma forma, Ana era uma das pessoas que estava passando na rua e convidamos pra entrevistar. Nesse espaço, não perguntei a ninguém sobre histórias pessoais de violência, mas ela viu nessa conversa uma oportunidade pra falar algo que não tinha falado a ninguém a vida inteira. Acredito que ela precisava tornar visível o que foi desacreditado e invisibilisado ao longo de todos esses anos. A presença da câmera às vezes desperta isso. Procuro acolher com muito respeito e responsabilidade.

Logo após a fala de Ana, uma pessoa já adulta e com uma trajetória de vida traumática que poderia ter sido evitada caso sua infância tivesse sido diferente, você corta para a imprescindível abordagem da necessidade de se falar de sexualidade nas escolas, para crianças. Com os recentes ataques políticos relacionando o uso de métodos pedagógicos como ferramentas visando resultados eleitorais, como foi feito o planejamento dessa abordagem essencial tanto para o filme como para a resolução de um problema social que precisa, sim, ser trabalhado desde a infância?
ADRIANA YAÑEZ - A educação é uma chave fundamental para o combate à violência sexual infantil. A escola se mostrou, em todas as pesquisas, o principal espaço de denúncia e encaminhamento desses casos. Falar de sexualidade com crianças é dar ferramentas de autoproteção pra que ela conheça o próprio corpo, os limites que deve colocar para as outras pessoas, o que não deve aceitar e como pedir ajuda caso esteja sentindo algo errado. A falta de informação e a falta de atenção no comportamento das crianças faz com que muitas delas sejam violentadas durante muitos anos sem que nenhum outro adulto saiba. Outro ponto elementar é o papel da educação na transformação do pensamento machista, racista e misógino que rege nossa cultura. Desde muito cedo, é preciso que as relações de gênero, a história, a cidadania e o respeito sejam trabalhados com as crianças, despertando questionamentos e consciência para pensar e fazer diferente. São conteúdos tão importantes quanto português e matemática, sem os quais não será possível transformar as desigualdades e violências estruturais. 

Debate que acontece no dia 18, Dia Nacional da Luta Contra o Abuso e Exploração Sexual Infantil

Porém, tal desesperança não significa de maneira nenhuma um conformismo, saliento. A fala da socióloga e terapeuta Adriana Araújo, inclusive, define de maneira precisa essa questão atrelada ao não conformismo, quando ela coloca em xeque a sociedade machista "na qual o homem pode fazer tudo; o homem branco e rico pode fazer tudo ainda mais e a mulher é sempre submissa e a mulher negra e pobre ainda mais". A força dos depoimentos é um ponto imenso no seu filme. Na construção do discurso e argumentos na montagem, como você seguiu esse norte para alcançar a eficiência do resultado final na conscientização e urgência da mensagem existente no documentário?
ADRIANA YAÑEZ - Nosso processo de construção do filme partiu da escuta de mais de 50 pessoas que trabalham na rede de enfrentamento à violência sexual infantil. A cada nova pessoa e organização que você escuta, mais se aproxima da complexidade do tema em um país tão grande e tão desigual. Entrevistamos pessoas de conhecimento e sabedoria preciosos, uma delas é a Mana (Adriana Araújo), que lidera o trabalho do Coletivo Mulher Vida em Olinda e está há anos na linha de frente atendendo vítimas de violência. Ela tem um olhar verdadeiramente humano e ao mesmo tempo análises muito lúcidas dos problemas estruturais que são causas e consequências desse ciclo de violência no Brasil. Muitas entrevistas duraram mais de 3 horas, fora todas as conversas off câmera. Fizemos um esforço grande na montagem para colocar essas pessoas e ideias em diálogo, abordando com seriedade os diferentes ângulos para a construção de uma reflexão que pudesse se aproximar da complexidade que o tema pede.

Essa construção narrativa, inclusive, de trazer à tona as opiniões retrógradas e prejudiciais daquelas pessoas, encontra um impacto imenso quando, na leitura das cartas, muitos dos entrevistados que traziam falas inóspitas de culpar a mulher pelos crimes que elas sofreram são confrontadas por suas próprias consciências. Você pode falar acerca dessa opção e como o resultados se deu de maneira exata no que se refere ao reflexo, também, que o longa poderá alcançar em muitos(as) espectadores(as) que vão assistir ao filme?
ADRIANA YAÑEZ - As leituras das cartas oferecem um contraste ao discurso naturalizado de constante culpabilização das vítimas de violência. Acho que estamos muito acostumados a reproduzir discursos prontos, gritar nossas opiniões e ouvir cada vez menos. A leitura dos relatos é um convite de pausa e reflexão. “Será que se você parar pra ouvir/ler alguém que viveu algo diferente de você, seria possível olhar de um outro ângulo? Reconsiderar suas certezas e ideias?”. Nesse sentido, o filme oferece vários convites ao espectador, oportunidades de rever e refletir sobre aquela velha opinião. 

A professora Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta

O filme Um Crime Entre Nós apresenta dados impactantes acerca dos índices relacionados à exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes. Como foi a preparação dessa estrutura do documentário e a importância de levar isso ao espectador?
LUCIANA TEMER - É um desafio gigante, porque a temática é muito difícil. Discutimos muito sobre isso. Quais eram os caminhos para a estruturação desse documentário? Ele foi construído para ser um instrumento. A gente quer sensibilizar as pessoas sobre essa temática. A missão do Instituto Liberta é fazer o Brasil falar sobre esse assunto, criar uma empatia das pessoas com essa situação e entender a dimensão desse problema, que é um problema gravíssimo, seriíssimo. A violência sexual não é uma exceção. A violência sexual é uma regra no cotidiano do nosso país. Temos que apontar a gravidade disso e ao mesmo tempo apontar o que nós acreditamos ser um caminho, que é o caminho da educação. É por onde caminha o documentário. Pelas boas práticas. Levar esses processos de discussão às escolas, que é o que pode salvar nossa sociedade no final das contas.

E um dos pontos que o filme aborda de maneira precisa é o fato de que os casos de abuso e violência sexual envolvendo crianças e adolescentes tornam-se , também, casos de feminicídio, que, no Brasil, possuem índices alarmantes. E isso se relaciona muito com os traumas que essas jovens têm e que carregam para sempre na vida adulta.
LUCIANA TEMER - A criança e o adolescente têm que ter direito ao desenvolvimento integral. Inclusive, o desenvolvimento sexual. O desenvolvimento sexual tem que ser saudável, tem que ser sadio. Essa sexualização precoce, que...(pausa). E, veja, aqui não tem nenhuma conotação moral. Ninguém aqui está falando de moralismo. A questão está na naturalização. E na verdade, eu acho que isso tem menos a ver com a questão da sexualização, e mais com a questão do machismo, da objetificação do corpo da mulher, que independe da idade que ela tem. Essa conotação...(suspiro) de que a mulher é um objeto a servir o homem. Isso é uma mentalidade muito machista e que está enraizada na nossa sociedade. Lembro de uma pessoa que viu o documentário perguntou por que falamos de dados de mortes de mulheres. "Mas não é um filme de criança, de adolescente?", ela perguntou. Quando você olha para esse contexto machista, ele tem a ver com feminicídio. A taxa de feminicídio tem tudo a ver com o fato de como a mulher é vista na sociedade. A criança já é vista dessa forma. Sexualizada, como propriedade do homem, e isso é algo que vai se construindo ao longo de todas as idades. Desde a menina até a adolescente, a jovem e a mulher. Eu acho que o que é muito feliz no documentário é que a gente sai de uma ideia macro, que é essa de ser uma questão de gênero. Porque a violência sexual no Brasil, lógico, abrange meninas e meninos, mas a característica ainda é muito relacionada às meninas vitimas. Desde essa situação de violência contra a mulher em geral até a situação da violência sexual contra crianças e adolescentes. 

Trailer do documentário


Essa normatização da sociedade perante os casos de exploração é algo que o filme, inclusive, pontua muito bem nas entrevistas com populares.
LUCIANA TEMER - São duas as grandes violências que o documentário coloca em evidência. O estupro de vulnerável, que as pessoas conhecem como uma situação de abuso, popularmente conhecido como abuso, e a situação da exploração sexual de crianças e adolescentes. Então, na verdade, você vai até chegar na exploração, que é o foco do Instituto Liberta. Quando você chega na situação da exploração, o que fica muito claro é que o Brasil não liga para a situação da exploração. Quando o Luciano Huck conversa com os populares lá em Manaus, ele fala: “mas ninguém chama o conselho tutelar? Ninguém chama a polícia?” E as pessoas fazem aquela cara de "não, já virou paisagem". Nesse momento, tem uma pessoa que fala: "é, tá errado. Mas já virou paisagem". É essa ideia de que já virou paisagem, em especial a exploração, que o filme quer mudar. E eu gosto de fazer essa diferenciação, porque a verdade é que o abuso, ele gera indignação social. Quando uma menina é abusada aos cinco, seis anos de idade, isso gera indignação nas pessoas. Agora, quando essa mesma menina é explorada sexualmente, o que você escuta? "Ela é uma sem vergonha. Ela está lá porque ela quer. Ela gosta de dinheiro". Essas são as falas que a gente escuta no documentário. Então, essa naturalização da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, é algo que a agente tem que olhar com muita seriedade. É fruto deste contexto machista, patriarcal e de objetificação do corpo da mulher. Eu acho que tentamos. Porque se a gente não chegar à raiz, a gente não vai resolver. Tem que chegar à raiz do problema para entender qual é esse problema. E, a partir daí, o que a gente quer? Queremos a construção de políticas públicas eficientes para tirar meninas e meninos dessa situação de violência. E uma coisa que a gente tenta muito desmistificar também é o seguinte: aqui no sudeste, em especial, quando você fala de exploração sexual, as pessoas falam para mim: "ah, sei é horrível. Ali no norte, nordeste, o turista que vem..." E aí eu faço muita questão de explicar para as pessoas que este é um recorte importante dentro da exploração sexual, mas a exploração sexual é muito mais do que isso. Porque exploração sexual acontece bem aqui no centro da cidade de São Paulo. Não é verdade que a exploração sexual é uma coisa somente do norte e nordeste, e do estrangeiro que vem para cá em busca de turismo sexual. A verdade é que essa situação é absolutamente naturalizada no Brasil inteiro. O que muda é o preço da menina e quem está pagando. Mas verdade é que nós temos essa situação naturalizada em todo o Brasil.

Algo que, pessoalmente, me incomoda muito é a ação religiosa como elemento moralizador e, muitas vezes, hipócrita, criando mais obstáculos do que pontes na conscientização social quanto a necessidade de informar acerca de tão urgente assunto. Principalmente nas escolas.
LUCIANA TEMER - Primeiro que a gente está falando de um assunto tabu. Sexo é um assunto tabu. Ainda é. Daí quando você pega a questão religiosa, você tem vários enfoques das diferentes religiões. Mas, normalmente, é um enfoque moralizador. Há muitas igrejas que são de vanguarda e focam mais nessas questões, mas, como regra, você tem a questão religiosa às vezes incidindo de forma perversa, restringindo a possibilidade de falar com franqueza e abertura sobre essa temática. Isso é muito ruim, logicamente. Muito ruim porque a gente defende no Instituto Liberta que falar sobre sexualidade é o ponto mais importante para a gente ajudar na prevenção. Mais do que apenas repressão. E essas situações não são averiguadas e, muitas vezes, não são punidas no Brasil adequadamente. E isso porque existe esse tabu, esse silêncio, ou no caso que você está me trazendo, não existe silêncio nenhum, está escancarada a questão. Mas, por alguma razão, a justiça não consegue chegar em uma punição. Porque não há empenho suficiente, por exemplo. Muitas vezes, há uma naturalização dessas violências. Uma relativização da importância. Lembro de que tivemos uma situação de alguns anos atrás onde um fazendeiro de 79 anos teve uma relação com duas meninas, uma de 13 e outra de 15 anos. E ele acabou sendo absorvido porque as meninas eram prostitutas conhecidas na cidade. Esse é o termo usado na decisão judicial. Então, você imagina um tribunal que diz que uma menina de treze anos é uma prostituta conhecida na cidade, e, portanto, o cara não teria praticado um crime. É um grande absurdo! Esse conceito social que marginaliza essas meninas ao invés de enxergá-las como vitimas. Voltando para a questão religiosa, eu acho que a religião tem um papel muito importante na sociedade. E ela é um instrumento muito poderoso que, se bem utilizado, pode ser muito interessante. O que eu mais tenho preocupação hoje é dos riscos que corremos de retrocessos a falar sobre sexualidade nas escolas. Hoje, nós temos um risco real de uma tentativa de cerceamento dessa possibilidade. E isso seria um grande retrocesso. Porque eu acho que a gente nem falava o suficiente ainda. A gente teria que falar mais e melhor nas escolas sobre essa temática. E talvez mais cedo. Porque tem uma lógica absurda de que você tem que falar sobre sexualidade com meninas de 14, 15 anos. E meninos, também. E eu sempre digo: é bom que ele/ela já vão com o filho no colo assistir à aula. Porque falar de sexualidade com uma menina de 15 anos é piada. Hoje em dia, as pessoas começam a vida sexual muito cedo. E nisso não vai nenhum julgamento moral. A questão é: a menina, desde que consciente e consentidamente, ela pode começar a vida sexual quando ela quiser. Mas tem que ser com consciência e consentimento. E isso não acontece nos casos de violência nem de exploração. Precisamos trabalhar com mais honestidade essa questão, mas, também, com franqueza e liberdade. E o espaço para fazer isso, no nosso entender, é nas escolas. A preocupação que eu vejo é um movimento conservador que, sim, tem relação com as igrejas, um movimento conservador que busca cercear a discussão da sexualidade nas escolas. Esse é o maior risco que a gente tem hoje.

É trágico que, muitas vezes, a religião seja utilizada como obstáculo para esse trabalho de conscientização.
LUCIANA TEMER - Sem o discurso moral, porque é muito complicado a gente falar de qualquer questão ligada à sexualidade, hoje, sem que você não seja acusado de estar incentivando crianças a terem relação precocemente, ou, muitas vezes ao contrário, você ser acusada de conservadorismo e captada por um discurso conservador que não é o nosso de forma nenhuma. Ao falar desse assunto, tem gente que xinga a gente. Chama a gente de conservador. E, ao contrário, também tem gente que diz que a gente está querendo liberar todo mundo. E não é uma coisa nem outra. O que a gente entende é: precisa haver uma consciência. E a consciência vem com educação, com instrução, com discussão. Temos que empoderar meninos e meninas para entender o que é violência sexual. Nós enxergamos, hoje, que tem muitos jovens submetidos voluntariamente a uma grande violência sexual. Por exemplo, nós fizemos um trabalho com jovens de seis escolas públicas, aqui em São Paulo. Na capital e no interior. Um trabalho de oito meses. Com um grupo de 30 jovens em cada escola falando sobre o que é violência e o que a violência sexual para eles. E foi incrível o trabalho. Porque os jovens estão se dando conta do nível de violência ao qual eles estão submetidos sem perceber. E isso é muito transformador. Agora, como é que a gente faz isso? Com diálogo. Com discussão. Com conversa sobre masculinidade, sobre feminismo, comportamentos sociais. Não é com cerceamento. Nem religioso, nem moral. Com respeito entre as pessoas. Respeito aos direitos. Direitos no sentido mais amplo.

O filme traz essa reflexão muito forte acerca da ideia de “se tornar paisagem”, de banalizar algo que é muito sério. Ao final, a sensação que ficou em mim foi de pessimismo em relação ao Brasil.
LUCIANA TEMER - Existe uma inversão. A nossa luta tem que ser visando uma mudança cultural brasileira. E que pregue o respeito igualitário entre homens e mulheres. Entre os seres humanos. Lógico, estamos falando de toda uma dimensão. E eu sou professora de Direito Constitucional. Tenho uma militância nos direitos humanos há muito tempo. Quando você fala de ser feminista ou não ser feminista, você está falando, na verdade, de uma situação igualitária e que diz respeito à dignidade das pessoas. Isso independe de sexo, gênero, raça. Tem que ser um pressuposto de respeito das pessoas pelas pessoas. Independente de qualquer outra característica. Eu estou falando de uma coisa muito ampla, mas é claro que isso vai rebater na importante questão dentro desse quadro que é questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. A exploração sexual de crianças e adolescentes está baseada dentro de uma lógica de desrespeito. Desrespeito pelo outro. E, veja bem, a nossa sociedade resolveu dizer que fazer sexo com uma criança até 14 anos é crime punível com até 15 anos de prisão. Estupro de vulnerável. E resolveu dizer que fazer sexo com um(a) adolescente entre 14 e 18 anos em troca de algo, ou seja, com pagamento, que é a exploração sexual, é crime com pena de ate 10 anos de cadeia. A gente tem uma lei. E o que é uma lei? A lei é um consenso social. A nossa sociedade brasileira decidiu dizer que isso é crime. E isso é crime! Está no código penal. Ora, como é que isso é crime no código penal e existe esse nível de naturalização dessa prática? E aí a gente tem que fazer uma distinção entre o abuso e a exploração. Porque o abuso ele não é punido muitas vezes porque as crianças são muito pequenas, às vezes não conseguem configurar a violência. Às vezes as violações são tão intra-familiares que ficam no sigilo e ninguém fica sabendo. A criança também, às vezes, não tem consciência do que está acontecendo com ela. Mas o fato é: a sociedade tem algum olho sobre a violência sexual reconhecida como abuso. E gera uma indignação. Quando você olha para a exploração, a vitima, para a sociedade, é uma prostituta. E não importa se ela tem apenas 13 anos. A sociedade não olha com empatia. Ela marginaliza esta menina, este menino.

Ações sociais e de políticas públicas.
LUCIANA TEMER - Um dado importante e que aparece no documentário, também: o Liberta encomendou do Datafolha em 2018 uma pesquisa para entender como é que a sociedade enxergava a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. E um dos resultados importantes que a gente teve foi de que, mesmo que a maioria das pessoas, quase a totalidade, sabia que é crime pagar para fazer sexo com uma criança de 10, 15, 16 anos de idade. Mas dentro do universo de pessoas que viram ou sabem de uma situação de exploração sexual, não de abuso, mas de exploração sexual, só 24% denunciam. E por que só 24% denunciam? Porque não tem importância para a sociedade a exploração sexual. Não tem. Agora, a exploração sexual, além de ser uma grande violação dos direitos humanos, ela tem custos sociais gigantes. Que não são computados por essa sociedade. Porque essa menina, primeiro, vai sair da escola. 18% da evasão escolar no Brasil é de meninas que têm gravidez na adolescência. Tem o envolvimento com álcool e drogas, porque a questão do tráfico está muito ligada com a exploração sexual. E você tem meninas que vão tendo filhos e esses filhos vão entrando nesse ciclo perverso. São meninas que vão ficando submetidas a isso e que vão ser as adultas que, no futuro, serão vitimas de feminicidio. Porque elas saem das escolas, não se capacitam, ficam na dependência da exploração sexual ou elas vão arrumar um homem para tomas conta delas e vão ficar submetidas a essa violência. É um problema gigante. Um problema social gigante. E a gente precisa acordar para isso. O documentário tem esse objetivo. Fazer o Brasil falar desse assunto. É importante falar sobre esse assunto porque isso só muda com políticas públicas. A gente está falando de mudar uma consciência, mas estamos falando, também, de forçar políticas públicas efetivas. A política pública só se constrói a partir de pressão social. Pressão social só acontece com algo que incomoda a sociedade. Quando é que a questão da violência contra a mulher passou a ser pensada como política pública? E aí, sim, no Bolsa Família, no Minha Casa Minha Vida, as coisas são colocadas no nome da mulher. Por que? Porque começou um movimento social há mais de 30 anos que impulsionou esse desconforto social. E esse desconforto social gera uma pressão no governo e o governo começa a pensar em construir políticas públicas. Enquanto violência sexual contra crianças e adolescentes não for um desconforto social, não se vai pensar em políticas públicas consistentes para se acabar com isso. É simples assim.

Curiosamente, durante o filme, eu me peguei pensando (e me identificando e me censurando por pensar assim) em Travis, protagonista de Taxi Driver, do Martin Scorsese.
LUCIANA TEMER - Outro dia, eu vi uma charge em que o menino perguntava para o pai: “pai, se os bons matarem todas as pessoas más, só vão ficar os bons?” E o pai respondeu: “Não. Só vão ficar os assassinos”.




sábado, 16 de maio de 2020

Um Crime Entre Nós | Papo com a cineasta Adriana Yañez e com a diretora do Instituto Liberta, Luciana Temer


A brutal perda 
da Infância 



DOCUMENTÁRIO Com estreia amanhã no canal GNT e disponibilizado na página do Facebook do Instituto Liberta, Um Crime Entre Nós traz à sociedade um urgente foco para o combate ao abuso e à exploração sexual infantil

Por João Paulo Barreto


Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, a cada hora, no Brasil, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. Além disso, segundo estudo do Ministério da Saúde, a maioria das vitimas de abuso sexual tem até cinco anos de idade. Um estudo trazido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que 82% das vitimas de estupro são do sexo feminino, sendo a maioria delas negras e jovens, e que, segundo relatório de atividades da Childhood Pela Proteção da Infância, surgem, a cada ano, 500 mil casos de exploração sexual infantil. Diante de tais fatos e estatísticas, a urgência de uma obra como Um Crime Entre Nós, que será lançada on line amanhã, e o necessário alcance da mesma para o maior número possível de pessoas, é algo prioritário. Mas para além dos números e frieza das porcentagens e estudos citados, o que o filme dirigido por Adriana Yañez traz ao seu público é humanidade. Prioritariamente humanidade, mas, também, afeto e empatia para as crianças traumatizadas e que, por consequência, se tornam adultos para sempre marcados.

Amanhã, 18 de maio, é a data escolhida como o Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infantil. A ação requerida por tal data, porém, necessita de uma conscientização de todo o país quanto ao peso e seriedade que tal alerta deve trazer à nossa sociedade. Sociedade essa que tem no machismo e no patriarcado características que a serem modificadas em suas raízes. Sociedade essa que tem nas palavras do seu atual chefe do Executivo a normalização na ideia de gastar verba pública para (sic) “comer gente”; a normalização de alguém que afirma em plenário não estuprar uma mulher parlamentar por ela ser feia, que define os casos de feminicidio como “mimimi” e que usa um pronunciamento público para falar das características de “pegador” do próprio filho como uma qualidade a ser vendida. Sociedade machista essa que elegeu tal cidadão e que tem em sua natureza a normalização do estupro, bem como da prostituição de adolescentes e, por consequência, de crianças que são tratadas como objetos em uma troca mercantil na rotina social, e, também, dentro do turismo sexual.

Referência no acompanhamento a mulheres no sistema carcerário, dr. Dráuzio Varella 


CONTRA A OBJETIFICAÇÃO

Parte fundamental de sua ação conscientizadora, o Instituto Liberta foi um dos produtores do documentário dirigido por Adriana Yañez. A diretora-presidente do instituto, a professora de Direito Constitucional, Luciana Temer, aponta as diretrizes do Liberta nas ações de conscientização. “Com o documentário, queremos sensibilizar as pessoas sobre esse assunto. A missão do Instituto Liberta é fazer o Brasil falar sobre isso. Buscamos criar uma empatia nas pessoas para com essa situação. Entender a dimensão do problema, que é gravíssimo. A violência sexual não é uma exceção. É uma regra no cotidiano do nosso país. Temos que apontar o que acreditamos ser um caminho, que é o da educação. É por onde caminha o filme. O caminho das boas práticas, que está em levar esses processos de discussão para as escolas, que é o que pode salvar nossa sociedade no final das contas”, afirma Luciana.

“A educação é uma chave fundamental para o combate à violência sexual infantil”, explica a diretora do documentário, Adriana Yañez, que traz, em pontual momento do filme, uma abordagem pedagógica em sala de aula. “A escola se mostrou, em todas as pesquisas, o principal espaço de denúncia e encaminhamento desses casos. Falar de sexualidade com crianças é dar ferramentas de autoproteção para que elas conheçam o próprio corpo; os limites que devem colocar para as outras pessoas; o que não devem aceitar e como pedir ajuda caso sentindo algo errado. A falta de informação e de atenção ao comportamento das crianças faz com que muitas delas sejam violentadas durante muitos anos sem que nenhum outro adulto saiba”, alerta.

A cineasta Adriana Yañez

A professora Luciana pontua, ainda, a urgência em se priorizar a infância. De não sensualizar crianças e adolescentes, algo que leva a uma consequente objetificação da mulher. “Crianças e adolescentes têm que ter direito ao desenvolvimento integral. Inclusive, o sexual. O desenvolvimento sexual tem que ser saudável e sadio. Essa sexualização precoce não tem, aqui, nenhuma conotação moral. Ninguém aqui está falando de moralismo”, explica a professora ao alertar para o risco de uma sociedade calcada no machismo e patriarcal. “A questão é a naturalização, e isso tem menos a ver com a questão da sexualização, e muito mais com o machismo. É a objetificação do corpo da mulher, que independe da idade que ela tem. Essa conotação de que a mulher é um objeto a servir ao homem. Isso é uma mentalidade muito machista e que está enraizada na nossa sociedade. Esse contexto machista, e que tem a ver com feminicidio, reflete o modo como a mulher é vista na sociedade. E a criança já é vista dessa forma, sexualizada, como propriedade do homem. Isso é algo que vai se construindo ao longo de todas as idades. Desde a menina até a adolescente, a jovem e a mulher”, finaliza.

A diretora do Instituto Liberta, a professora Luciana Temer


HUMANIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

Como observado, a urgência em se encarar e resolver o problema do abuso e da exploração sexual vai além das estatísticas e números trazidos. É preciso que a sociedade se incomode com isso. Enxergue a situação tal qual o absurdo que ela representa. No processo de entrevistas e leitura dos casos de abusos e explorações sofridas, o filme de Adriana Yañez nos traz uma angústia necessária. No uso das animações para ilustrar as vidas trágicas daquelas pessoas, bem como na força da leitura de depoimentos, algo além da reflexão é alcançado. O filme lhe traz um ímpeto de mudança. De ajudar naquela causa. E isso denota muito da missão alcançada pelo longa nessa conscientização. “As entrevistas com as pessoas da rede de proteção oferecem um panorama muito profundo da questão e olhares muito sensíveis às histórias das vítimas. Mas acredito que as histórias individuais, as experiências vividas com todas as suas particularidades, nos fazem nos aproximar de qualquer tema de uma outra maneira. É como melhor podemos compreender a dor, o alívio, o medo, o desamparo. Conecta com a nossa humanidade,” explica a cineasta acerca do aspecto de captação dos depoimentos para o filme.

Ao final, Um Crime Entre Nós nos deixa em uma posição de urgência, de nos fazer refletir e agir naquela mudança. Além de fazer valer a lei, que pune crimes de abuso e exploração sexual, a mudança também deve vir da sociedade como ser consciente e humano. Mudar a sociedade a partir da preservação das crianças. E isso somente a educação, distante de qualquer dogma religioso ou moralista, consegue. A diretora Adriana Yañez finaliza: “Outro ponto elementar é o papel da educação na transformação do pensamento machista, racista e misógino que rege nossa cultura. Desde muito cedo, é preciso que as relações de gênero, a história, a cidadania e o respeito sejam trabalhados com as crianças, despertando questionamentos e consciência para pensar e fazer diferente. São conteúdos tão importantes quanto português e matemática, sem os quais não será possível transformar as desigualdades e violências estruturais”.

Este é o norte a ser seguido.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/05/2020




sexta-feira, 8 de maio de 2020

Antologia da Crítica Pernambucana – Discursos sobre cinema na imprensa (1924 – 1948)

Pilares do Pensamento Crítico Nordestino



LIVRO Com importante reunião de textos da primeira metade do século XX, escritos de cinema que corriam risco de se perder ganham longevidade merecedora e valiosa à prolífica cena de Pernambuco 

Por João Paulo Barreto

Dentro de uma atual realidade de apagamento proposital e canalha da História do século XX no Brasil, a urgência em se registrar movimentos como o da crítica de cinematográfica no prolífico estado de Pernambuco, a partir dos anos 1920, demonstra-se, através da leitura do livro Antologia da Crítica Pernambucana – Discursos sobre cinema na imprensa (1924 – 1948), como uma ação crucial e enérgica de salvamento da memória de um país que se perde na fugacidade e futilidade de uma era de aparências digitais. Organizado pela realizadora e pesquisadora, Gabi Saegesser, e pelo também pesquisador e crítico de cinema, André Dib, o material tem como esmero fundamental a reunião de escritos que se encontravam dispersos, perdidos em arquivos de jornais e revistas que se esfarelavam e em microfilmagens de difícil acesso ao público interessado.

O livro passa por quatro períodos centrais na história dos discursos sobre cinema na imprensa tanto de Pernambuco quanto na do sudeste, cujas revistas Cinearte e A Scena Muda, bem como o jornal O Fã, trouxeram diversas publicações de autores oriundos de Recife, como Mário Mendonça, Evaldo Coutinho e Josué de Castro, nomes de grande importância para o pensamento crítico no nordeste. Iniciando pelo Ciclo de Recife, período que abrangeu 1923 a 1931, quando diversas produções ficcionais foram lançadas no estado, o livro adentra na chegada do cinema sonoro em Recife, com as diversas correntes pró e contra a inovação que tomaram conta dos escritos na imprensa. Após esse fato, vem a repercussão do lançamento do filme Coelho sai,em 1942, primeiro longa sonoro realizado no nordeste. Em seguida, aborda-se a histórica passagem de Orson Welles por Pernambuco, ocasião em que o diretor de Cidadão Kane captou imagens para o documentário It´s All True (1943), fato que alimentou muito do imaginário cinematográfico no estado. Encerrando com o surgimento dos primeiros cineclubes no estado, o livro traz registros na imprensa de Pernambuco para os principais acontecimentos cinematográficos durante a primeira metade do século XX.

Co-organizador do livro, o pesquisador e crítico de cinema, André Dib

Co-organizador, o crítico André Dib salienta a importância do registro de toda uma época que a obra traz. “Elegemos estes momentos principais, divididos em quatro capítulos no livro, para que possam mostrar como se pensava também a produção do cinema no Recife e a produção do cinema no mundo”, explica. Na questão crucial da preservação, Dib pontua ainda que “o esforço, quando foi definido esse recorte, ficou claro de que a ideia inicial ainda estava presente: preservar as formas de pensar cinema daqueles períodos. Se a gente não reúne o que estava disperso, talvez não ficasse tão claro como um patrimônio, mesmo. Um patrimônio que é o pensamento sobre cinema”, esclarece.

RECIFE E SUDESTE

Dentro dos quatro capítulos trazidos pelo livro, os aspectos da trajetória da crítica de cinema, que começou a ser produzida em Pernambuco a partir dos anos 1920, permitem ao leitor uma percepção da construção dos modos de observação da arte cinematográfica pela imprensa que se familiarizava com aquele tipo de expressão artística surgida em 1895. Inicialmente, como bem salientam os organizadores, os textos têm um perfil mais informativo acerca das produções. Após um período, surge o que é definido como textos reflexivos em um perfil “laudatório e ufanista”. As publicações de textos sobre os filmes do Ciclo do Recife, no decorrer daquela década, são destaques em impressos do sudeste, como os citados Cinearte e A Scena Muda. 

Co-organizadora, a pesquisadora e realizadora, Gabi Saegesser Foto: Hans Santos

“A Cinearte, no Rio de Janeiro, pertencia ao Adhemar Gonzaga, que tinha uma produtora, era exibidor e estava envolvido em diversas áreas da atividade cinematográfica. Ela publicava muitos escritos do Mário Mendonça sobre o Ciclo do Recife. Adhemar, com toda essa atuação na área, tinha um desejo genuíno de que o cinema nacional fosse forte. Que fosse uma indústria. Ele tinha essa visão de empresário, visionário, de amante do cinema brasileiro”, contextualiza Dib.

KANE EM RECIFE

A visita do diretor Orson Welles a Recife e Olinda, em 1942, é um daqueles acontecimentos que, quase 80 anos depois, ainda alimenta o imaginário de muita gente, cinéfilos ou não. De passagem pela capital pernambucana na vagem de ida e volta do Rio para Fortaleza, o cineasta pôde se aproximar da cultura nordestina, tendo contato com jangadeiros, conhecendo o frevo e dando a opinião definitiva sobre a questão do cinema falado vs. mudo.

“Ele deu muitas entrevistas. E apesar de nada disso ter gerado textos críticos, incluímos na coletânea por conta dessa força do imaginário cinematográfico que representa essa presença de Orson Welles no Recife. Ele declarou vontade de dirigir um filme de cangaceiro e com ele no papel de Lampião. Ele assistiu a um espetáculo de frevo. Antes de ver, comentou que o frevo parecia uma tarantela. Uma coisa meio ofensiva para os pernambucanos. Não se sabe o que ele achou do espetáculo. Mas há textos na coletânea dizendo que a especulação é que ele teria mudado de opinião”, explica Dib. Sobre a questão do cinema mudo vs falado, o comentário de Welles “That’s a lero lero” ficou imortalizada. “O que importa é a liberdade do artista. E esse That´s a lero lero virou o título do filme do Lirio Ferreira e Amin Stepple”, relembra. 

Orson Welles, em 1942, desembarca no Recife
  
PRIMEIRO FILME SONORO

Um dos importantes pontos do livro, algo que salienta justamente essa necessidade do resgate de publicações, é o fato de que, perdida em um incêndio, a única cópia de Coelho sai, primeiro filme sonoro produzido no nordeste, só pode ter suas imagens acessadas através do registro da imprensa da época, que trouxe a produção, também, em uma versão filme-revista. “Hoje, só é possível conhecer o filme pelos textos que o descreveram e pelos anúncios, fotos de bastidores. A Scena Muda publicou fotos e textos sobre Coelho Sai. É curioso que é, também, uma adaptação musical. Coelho sai é um frevo de Nelson Ferreira, e virou essa revista, o filme-revista de atrações musicais e de performances. Envolveu toda a classe artística da época”, explica André Dib, que lamenta a perda trazendo um alerta: “É realmente uma pena que o filme se perdeu. Mas aí a gente vê a importância do registro da imprensa, e também dessa preservação desses registros. Porque, da mesma forma que se perdeu o filme, esses jornais também estão indo embora. Eles estão se esfarelando nos arquivos”, finaliza.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 09/05/2020


quinta-feira, 7 de maio de 2020

Palestra - História do Blues

Blues 
 Do Mississippi a Salvador 

O prodigioso guitarrista e doutor em Música pela UFBA, Eric Assmar

PALESTRA Referência no estudo do Blues no Brasil, guitarrista Eric Assmar apresenta nessa sexta, às 20h30, no YouTube, palestra musical sobre a história do grito negro que pariu o Rock and Roll 

Por João Paulo Barreto
Especial para A Tarde

Um mergulho pela História do Blues, passando pelo desenvolvimento do estilo musical desde seu surgimento com as work songs oriundas do período da escravidão dos povos afrodescendentes nos Estados Unidos do final do século XIX; pelo surgimento de ícones como Charley Patton (1891 - 1934), "Blind" Willie Johnson (1897 - 1945), dentre outro, avançando para pilares como Robert Johnson (1911 - 1938), Son House (1902 - 1988), T-Bone Walker (1910 - 1975), Muddy Waters (1913 - 1983), Howlin' Wolf (1910 - 1976), dentre muitos outros, e enveredando-se pela influência do estilo no Rock and Roll de Elvis Presley (1935 - ?) e daqueles oriundos da Inglaterra na presença de nomes como Yardbirds, Beatles, Led Zeppelin e Stones. Some a isso toda uma onda de influências que o estilo trouxe para a música feita no Brasil, que, a partir do anos 1980, passou ter seus próprios ícones do Blues na figura de artistas como André Christovam, Blues Etílicos, Celso Blues Boy (1956 – 2012), dentre outros, até chegar à Bahia de nomes como Álvaro Assmar (1958 – 2017), Talk’ in Blues e movimentos como o do Bar Ateliê e do Festival Wednesday Blues, em Salvador.

Ufa! Mas, calma, toda essa onda de informação será trazida a nós por um mestre. Quer dizer, mais que um mestre. Um doutor em Blues. O exímio guitarrista baiano, Eric Assmar, apresentará nessa sexta, dia 08, às 20h30, ao vivo em seu canal do YouTube, a palestra História do Blues: do Mississippi ao Rio Vermelho, na qual, em quase uma hora de papo, música e informação preciosa, contextualiza para os apreciadores do Blues a importância do estilo como identidade musical e Histórica no século XX. “É uma palestra que eu já tinha feito em algumas outras ocasiões e em alguns eventos privados e corporativos. Mas essa vai ser a primeira vez em que eu vou apresentar esse trabalho no formato on line”, explica Eric. 

Muddy Waters (1913 - 1983) - Pai do Chicago Blues

FORMATO

Em uma realidade de imprescindível confinamento para impedir uma propagação ainda maior da pandemia, a internet passou a servir como uma aproximação segura entre fãs e artistas. Pensando nisso e em um melhor aproveitamento por parte da audiência, Eric trará um formato de captação de áudio e imagem especial. “Já venho fazendo lives gratuítas em meu perfil do Instagram, participei do evento Bahia de Mãos Dadas, que trouxe vários artistas do nosso estado em uma campanha de levar arte às pessoas via internet e tornar menos sofrido esse momento. Então, para essa palestra, eu resolvi usar o meu canal do YouTube por entender que o acesso nas smartTvs é mais fácil para fazer esse link”, pontua.

No caráter histórico do Blues, Eric, que teve sua tese de doutorado voltada para o Estudo da Guitarra Blues, apresentará os principais elementos na formação do estilo musical. “Começo com a questão das worksongs, que serviram como base para o que viria a ser chamado de blues posteriormente. A escravidão dos povos negros nos trabalhos em campos de algodão, a diáspora, os cantos dos escravizados ouvidos nessas worksongs dos campos de trabalhos forçados dos Estados Unidos, e identificando o Blues como uma música que surge a partir, também, dessas referências com canções de matriz religiosa e de povos indígenas que habitavam a América do Norte. Vou estar no formato solo, cantando e tocando violão. É um conteúdo dedicado a pessoas que amam o blues de um modo geral. Ele não fica somente segmentado a músicos”, salienta. 

André Christovam - Principal nome no Blues brasileiro 

FIGURAS HISTÓRICAS

Além dos nomes citados no começo, Eric traz outros pilares do Blues para o papo, que contará com projeção de imagens para ilustrar as fases do Blues e, claro, música ao vivo para brindar às tais lendas do estilo. “Após a apresentação com as origens, na presença de nomes como Charley Patton, “Blind” Willie Johnson, Robert Johnson, Son House, sigo para a década de 1940, quando começa a eletrização do estilo, com melhores captações dos instrumentos. A partir daí, falo do que foi chamado de Chicago Blues, que é quando o estilo chega aos grandes centros urbanos. É quando surgem as bandas de Blues, com guitarras elétricas, baixo acústico ou elétrico e, claro, o uso de gaitas. Um dos grande nomes nesse período é o de Little Walter (1930 – 1968), figura chave na gaita do Blues”, finaliza Eric.

Diante de tanta frivolidade em tempos virtuais, nos quais a internet possui papel central na nossa rotina, poder ter acesso a algo como um breve compêndio da História do Blues, e, ainda, através de um dos seus maiores representantes na Bahia e Brasil, bom, só posso dizer que a próxima sexta feira trará mais satisfação a esses tempos de confinamento.

*Matéria publicada originalmente no Jornal A Tarde, dia 06/05/2020